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Felipe González era advogado e François Mitterrand também. Margaret Thatcher era licenciada em química e Ronald Reagan era ator. Foram todos líderes dos respetivos países nos mesmos anos em que Francisco Pinto Balsemão foi primeiro-ministro, em Portugal. Francisco Pinto Balsemão também era advogado, também foi político, mas, antes de tudo, era jornalista e foi sempre jornalista. E é por isso que com ele acaba também uma era do jornalismo em Portugal. Pode haver quem ache que é um exagero – mas não é.

“Em fins de 1971, tinha as ideias mais arrumadas. Percebi que a minha vocação profissional estava ligada à comunicação social. Decidi, assim, usar parte do dinheiro recebido pela venda do Diário Popular no lançamento de uma nova publicação. Estava consciente dos riscos empresariais e políticos. Mas queria provar a mim próprio, à minha família, ao mundo jornalístico e ao mundo em geral que era capaz”. O relato de Balsemão, citado na biografia de Joaquim Vieira,  deixa poucas dúvidas sobre o que o movia – os 50 anos que se seguiram vão apenas confirmar.

Nas últimas horas, muitas pessoas partilharam as suas memórias sobre Francisco Pinto Balsemão. A maior parte falou de liberdade, de democracia. Muitos recordaram o amigo, vários elogiaram-no como patrão e houve quem lembrasse a alegria com que encarava a vida. Pode parecer um pormenor, mas não é. A alegria não é satisfação ou contentamento; é outra coisa, algo que incentiva a curiosidade e a vontade de experimentar por oposição à apatia ou ao desinteresse ou, pior, apenas um "business as usual". E essa alegria de Balsemão marcou os dois grandes projetos que fundou, o Expresso e a SIC, e contagiou dezenas (centenas) de pessoas que trabalharam com ele.

Foi com essa alegria que também se pode chamar de ânimo, motivação, vontade de fazer, que decidiu enviar para Londres, poucos meses antes do arranque do Expresso, três dos elementos que fariam parte da redação (Galamba Marques, Augusto Carvalho e Fernando Ulrich). Estiveram no Sunday Times e no Observer – a ver como se fazia um jornal moderno. Eram estagiários.

Este espírito de fazer bem, de fazer diferente, de procurar os melhores com quem aprender, fez escola. Não apenas no Expresso, mas no jornal que seria fundado, fundamentalmente, pela geração que se tornou jornalista no Expresso – o Público. A história tem destas coisas. Balsemão descartou fazer um diário quando planeou o Expresso, porque seria mais caro e não tinha dinheiro para isso. Vinte anos depois, o diário apareceu, fundado pelos “seus” e financiado por um dos grandes empresários portugueses do pós revolução, Belmiro de Azevedo.

Quando o Expresso passou a custar 30 cêntimos

Balsemão e o Expresso enfrentaram uma primeira crise de receitas no regresso do ex-primeiro ministro e fundador ao jornal, então como presidente do conselho de administração. Em 1983, Portugal vivia tempos difíceis e as receitas de publicidade, a fonte primordial de financiamento, estavam em queda. Em 1985, o preço de capa do jornal passa para 60 escudos (cerca de 30 cêntimos), um valor acima dos restantes semanários que não foram além dos 50 escudos e o dobro do preço anterior. Balsemão, conta-se na biografia de Joaquim Vieira, teve receio dessa decisão, mas acabou por concordar.

O tempo, e a evolução da economia portuguesa, acabaria por dar razão a esse aumento. O relatório e contas de 1986 mostra uma subida da tiragem média do jornal de 76 700 exemplares (em 1982) para 109 980, com as vendas a passarem de 56 500 contos (cerca de 280 mil euros) para 296 000 contos (cerca de 1,5 milhões de euros) e a publicidade de 180 000 contos (cerca de 900 mil euros) para 599 000 contos (cerca de 2,9 milhões de euros). O Expresso torna-se o semanário mais vendido no país e, em 1987, a audiência do Expresso era de 557 mil pessoas, mais do que a de todos os outros semanários em conjunto. É também em 1987 que Balsemão decide criar o Prémio Pessoa que se mantém até hoje.

Os anos que se seguem continuam a ser de crescimento e expansão. Em 1989, a faturação da Sojornal, empresa proprietária do Expresso era superior a 4,3 milhões de euros, a publicidade cresce acima dos 60%. É o tempo da compra do diário "A Capital" e da decisão de investir numa máquina de impressão própria com  custo de cerca de um milhão de contos – “porque assim não estamos dependentes de ninguém”, terá explicado Balsemão. O grupo passa também a deter 50% da distribuidora VASP.

É por tudo estar  a correr bem que um projeto como o Público pode ver a luz do dia. Belmiro de Azevedo viu convicção no grupo de jornalistas para quem já não fazia sentido estar uma semana à esperar para dar notícias – mas também viu os números de um setor que estava a crescer num país que estava a crescer. Vicente Jorge Silva, o líder do projeto, acaba por sair e com ele um grupo alargado que incluía Jorge Wemans, José Manuel Fernandes, Nuno Pacheco, Joaquim Fidalgo, José Queirós, Augusto M. Seabra e José Vítor Malheiros.

Estes são também os anos em que O Independente faz história na imprensa em Portugal. “De todos os concorrentes que tive, como diretor do Expresso, foi, de longe, o mais temível. Não tinha grandes figuras para lá do próprio Esteves Cardoso (que estaria no auge) e de Paulo Portas, o sub-diretor que estava longe do sucesso que veio a alcançar”, relata no seu livro “Confissões” José António Saraiva, durante 22 anos diretor do Expresso.

O Independente fica para a história mas nunca conseguirá vender mais que o jornal fundado por Balsemão que nos anos 90 chegará aos 200 mil exemplares. Será também a década da fundação da Impresa (1990), da conquista da licença de televisão com a qual é lançada a SIC e da parceria com a Abril com a qual lançaria uma vasta divisão de revistas. Todos estes movimentos convergiram na que terá sido, provavelmente, a melhor época para se ser jornalista em Portugal com projetos dinâmicos, vivos e com dinheiro para pagar ordenados que permitiam formar bons profissionais e mantê-los na profissão. Duraria cerca de 10 anos.

No início do século XXI, a partir do ano 2000, um novo modelo de comunicação e de informação emerge. A internet acontece-lhe, a ele, Balsemão, em pleno desafio da televisão, da Bolsa, dos custos crescentes com pessoas e ordenados. Também dos primeiros problemas públicos com a banca.

“A característica que Balsemão tem, que é muito importante para os empresários, é a maneira como lida com os bancos e como sabe antecipar os problemas. Ele avisa antes e isto é fundamental”, relata Fernando Ulrich, ex-estagiário do Expresso depois administrador e presidente do BPI e administrador não-executivo da Impresa. 

Em 2001, as receitas consolidadas do grupo caem 13% e a publicidade cai ainda mais, 30%. Nesse ano, a Impresa e a Sonae unem esforços no lançamento de uma empresa conjunta – a Portais Verticais liderada por Francisco Maria Balsemão, o filho do meio de Balsemão, e por Paulo Azevedo, o filho do meio de Belmiro de Azevedo. Não funcionou e as perdas terão sido de 500 mil a um milhão de euros. Não foi caso único – vivia-se a primeira crise dotcom e havia quase tantas ideias e experimentalismos como falhanços.

Nos anos seguintes, a Impresa passaria por várias mudanças, na direção editorial e na própria administração, enfrentaria um golpe palaciano liderado por alguém que cresceu no perímetro do grupo e da família, Nuno Vasconcellos, então líder da Ongoing, e filho do administrador, amigo e conselheiro de Balsemão, Luiz Vasconcellos numa teia que envolve também o Grupo Espírito Santo. São anos financeiramente difíceis na Impresa e que se tornam mais difíceis quando Portugal pede o resgate e a Troika entra no país.

"Ficar de braços cruzados, à espera que a tormenta passe ou nos leve de vez, não faz parte do nosso ADN”

A 22 de junho de 2010, Balsemão escreve aos colaboradores. “Caros amigos, seria pelo menos uma total inconsciência dizer-vos que não estou preocupado com a crise que vivemos em Portugal e noutros países europeus. Seria, pelo menos, enganoso dizer-vos que o Grupo Impresa não é afetado pela crise. Mas seria de um enorme laxismo , para não dizer de uma inaceitável cobardia, dizer-vos que não há nada a fazer, que não podemos, à nossa medida e à nossa maneira, contribuir para que as coisas melhorem, lutar contra o pessimismo e a resignação. Ficar de braços cruzados, à espera que a tormenta passe ou nos leve de vez, não faz parte do nosso ADN”.

Nos 15 anos anos que se seguiram, o futuro da Impresa inscreveu-se no quadro mais geral da derrocada de um modelo media suportado por audiências, vendas e publicidade, progressivamente substituído por um modelo de receitas em que os grandes vencedores são as empresas tecnológicas e o papel dos editores se tornou menosprezado em nome da democratização da informação e da desintermediação.

Num dos testemunhos que partilhou na noite de ontem, na SIC Notícias, Ricardo Costa contou que, a certa altura, o patrão da Impresa passou a trabalhar em casa à quarta-feira e que esse se tornou o dia mais infernal da semana “porque tinha a televisão sempre ligada” e passava o dia a tecer comentários. O mesmo contaria o diretor do Expresso, João Vieira Pereira, sobre os fins de semana de chuva em que Balsemão não podia jogar golfe. Seriam dias em que lia o jornal de fio a pavio e, na segunda-feira, “íamos à degola”.

Há, como sempre houve, quem veja nele 'apenas' um ator do poder – que também foi – e um representante das elites que mandam em Portugal. Tudo isso pode ser verdade e ainda assim continua a ser um símbolo da liberdade de pensar, não por acaso assinatura do jornal que fundou.

"Ainda hoje me considero jornalista. Tenho carteira profissional, tenho muito orgulho em tê-la, e tem o número 18" disse, em janeiro de 2023, o fundador do Expresso e da SIC ao diretor do semanário, João Vieira Pereira. "Para poder concretizar os meus projetos na área do jornalismo, tornei-me também empresário, agreguei capitais, sócios, aliados, portugueses e estrangeiros e para isso - e por isso - criei empresas".

Francisco Pinto de Balsemão gostava genuinamente de fazer jornalismo, de consumir jornalismo e de pensar jornalismo. Foi por causa disso, como fez questão de sublinhar, que fez empresas. Não é um detalhe irrelevante, pelo contrário, precisamente porque o jornalismo não é um negócio como os outros. O que vende mais, não é forçosamente o que se deve vender e conquistar leitores não é exatamente a mesma coisa que conquistar clientes. Essa linha pode irritar muita gente ou ser incompreendida para outros tantos, mas existe.

Are you making money?

Na biografia escrita por Joaquim Vieira, o autor conta que o próprio Balsemão foi a Londres agradecer ao dono do Sunday Times pelos estágios que tinha aceitado dar aos jornalistas do futuro Expresso. Cita o relato do fundador do Expresso: “Estava um pouco nervoso, porque ele era o grande homem dos media. Fiz um grande discurso sobre a liberdade de imprensa e ele ouviu, ouviu e disse: Are you making money? Tinha toda a razão. Sem dinheiro, fica-se refém dos bancos”.

Ler este relato hoje, num momento de profunda crise económica e muito mais do que económica, dos media e da própria Impresa, é uma espécie de profecia auto-realizada. E é provavelmente por aqui que passará não apenas o futuro da Impresa, mas do jornalismo. Por recuperar uma ideia de sustentabilidade em que a leitores, corresponde uma receita sustentável e com essa receita se pagam equipas e custos de fazer - efetivamente - jornalismo e de se cultivar - efetivamente - o debate e o pensamento crítico.

“O número 6 passou a ter tal importância na minha vida – a primeira edição do Expresso saiu a 6 de janeiro de 1972, o PPD foi lançado a 6 de maio de 1974, a SIC arrancou a 6 de outubro de 1992, a Impresa foi para a Bolsa a 6 de junho de 2000 e por aí fora” – [“Como criei o Expresso”, por Francisco Pinto Balsemão]. Morreu ontem, no dia 21 de outubro 

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