Acompanhe toda a atualidade informativa em 24noticias.sapo.pt

Um 

MACKENZIE

Provavelmente, nunca verão uma cerimónia fúnebre como esta – sem uma única lágrima derramada.

A cerimónia fúnebre da minha mãe é o maior espetáculo do ano, ou talvez de toda a sua vida.

A multidão de fãs no exterior do St. John’s Memorial Center não sabe disso. Pensam que a sua comparência em massa é uma coisa orgânica. Não estão a par do dinheiro que está a ser investido em publicidade, influenciadores, colunas de mexericos e bloguistas de livros.

Desde que a minha mãe morreu que os seus livros voltaram a liderar as tabelas de livros mais vendidos.

Olha só, mãe! Morreste e todos continuam a ganhar uma pipa de massa.

Os títulos dos jornais têm sido uma loucura nesta última semana, propondo todo o tipo de teorias mais descabeladas.

E. V. RENGE MORRE TRAGICAMENTE
NO AUGE DA SUA CARREIRA.
ACIDENTE OU…

É por isso que aquele homem ao fundo da sala está aqui.

De meia-idade, com um bigode esquisito, vestido de fato e gravata.

– Isto é uma cerimónia privada. Faça o favor de sair – diz-lhe secamente a minha avó num sussurro abafado.

Assim que o homem sai, o sorriso dela desaparece.

Não é preciso uma pessoa ser grande observadora para vislumbrar um coldre de pistola por baixo do casaco do homem: é um detetive policial. Foi lá a nossa casa há dois dias. Mal lhe abri a porta, começou a fazer-me perguntas sobre a minha mãe, até que a minha avó acorreu apressada na nossa direção, como uma galinha furiosa.

– Mackenzie, sai daqui, por favor – ordenou-me, interpondo-se entre mim e o detetive. De seguida, mal contornei a esquina do corredor, disse ao detetive num tom incisivo: – Devia ter vergonha, a falar com uma criança que acabou de perder a mãe.

E, agora, o homem é obrigado a ir-se embora outra vez.

Há vários dias que os jornais e bloguistas têm sugerido todo o tipo de teorias loucas acerca da morte da minha mãe. A verdade, segundo os investigadores, foi bastante mais trivial: a minha mãe escorregou, caiu e rachou a cabeça numa pedra enquanto dava o seu habitual passeio matinal, no bosque ao lado da nossa casa.

«Um infortúnio», foi o que lhe chamaram. Por coincidência, os bestsellers da minha mãe estão cheios de infortúnios e desventuras.

Não me interpretem mal, algumas pessoas podem ficar tristes.

A sua newsletter de sempre, agora ainda mais útil

Com o lançamento da nova marca de informação 24notícias, estamos a mudar a plataforma de newsletters, aproveitando para reforçar a informação que os leitores mais valorizam: a que lhes é útil, ajuda a tomar decisões e a entender o mundo.

Assine a nova newsletter do 24notícias aqui

Aquela cabra da Laima Roth, que neste momento está a falar com o editor como se isto fosse uma reunião qualquer de negócios? Claro. Há mais de vinte anos que é a agente literária da minha mãe. Pode agora dizer adeus aos futuros lançamentos dos livros que estavam a planear fazer. Mas de certeza que vai lucrar com as edições especiais, as sprayed edges, as caixas de livros e sei lá que mais. Este manancial nunca vai secar.

A cremação da minha mãe já foi há vários dias, numa cerimónia privada à qual compareceu apenas cerca de uma dúzia de pessoas. Mesmo assim, não houve lágrimas.

Esta cerimónia fúnebre é para efeitos de publicidade. Para os «amigos», dizem eles. Para lhe prestarem homenagem. As homenagens figuravam bem no topo da lista de prioridades da minha mãe, mas amigos? Não me parece que ela tivesse amigos de verdade, se bem que, nestas últimas duas horas, os discursos eloquentes que as pessoas têm estado a proferir deem a entender que ela era o próprio Shakespeare encarnado.

As ruas em redor do Memorial Center estão apinhadas de gente, mas o salão onde decorre o serviço fúnebre está fantasmagoricamente silencioso, ouvindo-se apenas sussurros a reverberar entre as paredes.

De um lado do salão está um gigante retrato de autor da minha mãe, com uma blusa rendada de gola alta e umas rosas vermelhas em pano de fundo. Por baixo está escrito «E. V. Renge». O fotógrafo de meia-idade e de aspeto bizarro contratado pela editora não para de lhe tirar fotografias de todos os ângulos possíveis. Com o editor-chefe, os agentes literários e o meu pai. O homem pediu-me para posar também, mas recusei-me.

Que se lixem todos.

Do outro lado do salão está uma fotografia da minha mãe no seu escritório. Está toda maquilhada e de cabelo arranjado, mas tem um ar um pouco sonhador, assim sentada em frente a uma estante de livros. Por baixo da fotografia informal lê-se o seu nome verdadeiro: Elizabeth Casper. Esta versão é para outras fontes, como o jornal local, a igreja que a minha avó frequenta e as instituições de caridade para as quais a minha mãe costumava fazer donativos.

Prefiro manter-me ao fundo do salão, longe deste espetáculo, ao lado do meu avô, que se está completamente nas tintas – e sempre esteve – para a minha mãe. Ou para a minha aparência, já agora.

A minha avó importa-se. Antes de sairmos de casa, pediu-me para não pôr o meu habitual batom preto e o eyeliner pesado.

«E veste algo apropriado.»

Uso quase sempre preto. O que, por acaso, é bastante apropriado para uma cerimónia fúnebre. Assim como o meu eyeliner preto e o batom, que pus na mesma.

A minha avó, claro, está vestida de Dior e com joias caras. Faz questão de falar com todos os presentes.

O meu pai vestiu um elegante fato preto e está com um ar deslumbrante. Está ligeiramente amuado, mas isso pode ser por causa da abstinência. Os pais dele vivem apenas a quatro horas de distância, mas têm ficado em nossa casa desde que a minha mãe morreu. A minha avó controla o consumo de álcool do meu pai, que costuma começar logo pela manhã. Agora que a minha mãe já não está cá, ela assumiu orgulhosamente o comando da família.

Quanto a mim? Quero chorar, a sério que quero, mas a realidade da situação ainda não me atingiu. Quero ficar triste, mas sempre senti que a minha mãe nunca se preocupou muito comigo. Isso fez de mim uma pessoa bastante amarga nestes últimos anos, e começámos a afastar-nos uma da outra.

O meu melhor amigo, o EJ, diz que sofro de luto retardado. Se calhar sou insensível. Pedi ao EJ para não vir, porque não queria que o meu melhor amigo visse quão lixada a minha vida tem sido, bem, praticamente desde que me lembro.

Irei vê-lo mais tarde, lá em casa, na festa com serviço de catering que acontece hoje à noite para o «círculo íntimo». De certeza que vai ser uma festa, embora eles lhe chamem uma celebração da vida.

Olho em volta do salão e faço uma careta quando vejo aquela figura familiar aproximar-se do meu pai e dar-lhe um aperto de mão. É o reitor da universidade onde estudo. Desvio o olhar e reviro os olhos. A minha mãe costumava dar-se com ele. «Para bem do teu futuro», disse-me ela certa vez. De facto, ela até deu uma palestra na minha faculdade e chegou mesmo a doar dinheiro. Não me surpreenderia nada se colocassem lá algum monumento em sua homenagem.

O terapeuta da minha mãe também cá está. Bem como dois dos seus editores. Os três assistentes dela. O advogado da nossa família. A maioria dos seus «amigos» não passa de pessoas com quem ela trabalhava de perto.

Quero chorar, a sério que quero, mas não consigo. Durante esta última semana, desde que aconteceu o acidente e enquanto estive em casa dos meus pais em vez de no meu apartamento na cidade, pensei constantemente nela, no que tínhamos, na nossa pequena família toda lixada. Sentia-me triste, mas não avassaladoramente triste como supostamente deveria estar.

O meu pai verifica algo no telemóvel, afasta-se apressadamente de toda a gente e vai em direção à porta. Aí, reparo noutro homem, de boné de basebol, que se vira e se afasta. O meu pai segue-o.

Esta seria uma boa altura para dizer ao meu pai que estou com dor de cabeça e prestes a ter um esgotamento nervoso – mentiras, claro – e que preciso de sair daqui. Sinto as emoções a fervilharem no meu interior, mas não consigo decifrá-las. O que mais quero é estar longe destas pessoas.

Saio para o corredor vazio que dá acesso a outro pequeno corredor e vejo o meu pai a falar com o homem desconhecido lá no fundo.

Começo a caminhar em direção a eles e abrando o passo quando ouço um sussurro abafado:

– Escumalha!

Mas que raio?

Dou um passo para o lado e coloco-me atrás da porta, de onde não consigo vê-los, embora consiga ouvi-los claramente.

– Aqui não! – silva ele. – Como te atreves?

– Como é que me atrevo? Tenho o direito de estar aqui.

– Sai. Já!

O homem ri-se baixinho.

– Ela suspeita de alguma coisa?

– Quem?

– A Mackenzie.

Sinto o coração a bater descompassado ao ouvir o meu nome.

– Não te atrevas a mencionar o nome da minha filha.

– Oh, então ela não suspeita de nada? Bem jogado, Benny-boy.

Benny-boy? O meu pai? Quem é que lhe chama isso?

– Já te disse para te ires embora – acrescenta o meu pai mais desesperadamente. – Vai-te só… embora. Falamos mais tarde.

Aproximo-me mais da entrada para espreitar, e o chão de madeira por baixo da alcatifa range – caraças, o chão range.

Raios partam…

Fico imóvel como um veado encandeado por faróis. Ouço passos abafados e o meu pai aparece à entrada. Assim que me vê, noto-lhe um olhar de pânico.

– Que conversa foi aquela? – pergunto, e espreito pela entrada, mas o homem misterioso já desapareceu.

O meu pai esfrega a cara com ambas as mãos.

– Nada.

– Estavas a discutir com alguém?

– Não, filha, só estava a falar. – Enfia a mão na parte de dentro do casaco e tira uma garrafa de bolso.

– Conheces aquele homem?

O meu pai dá um gole nervoso e expira lentamente.

– Nunca o tinha visto.

Uma mentira por de mais evidente.

Enfia a garrafa no bolso interior e pisca-me o olho.

– Estás bem?

– Não consigo estar aqui. Estas pessoas… – Não termino a frase e reviro os olhos, apontando na direção do salão principal.

– Eu sei. Eu sei. – O meu pai fecha os olhos e belisca a cana do nariz.

– E tu, estás bem?

O meu pai e a minha mãe não eram exatamente um casal perfeito. Sobretudo nestes últimos tempos. Discutiam mais do que nunca, e isso era apenas aquilo que eu via durante os fins de semana que passava com eles, porque tenho vivido os últimos dois anos num pequeno estúdio que aluguei na cidade, perto da faculdade.

Livro: "Com Amor, Mãe"

Autor: Iliana Xander

Editora: Singular

Data de lançamento: julho de 2025

Preço: € 19,99

Subscreva a Newsletter do É Desta que Leio Isto aqui e receba diretamente no seu e-mail, todas as semanas, sugestões de leitura, notícias e acesso a pré-publicações.

O meu pai inspira ruidosamente e expira através dos lábios franzidos, depois esboça um sorriso falso.

– Sim, miúda. – Dá-me uma palmadinha no ombro. – Vai ficar tudo bem. Podes ir-te embora daqui se quiseres.

– Encontramo-nos em casa – digo, e viro para o corredor que conduz à saída pelas traseiras.

O espetáculo maior vai ser lá fora, assim que toda a gente sair do Memorial Center. Os fãs de todos os cantos do país são os que estão realmente de luto. A editora já trouxe uma equipa interna de relações públicas para acompanhar o evento. Sim, eles chamam-lhe um evento. Um grupo de atores contratados irá causar o caos e gritar obscenidades e profanar um dos retratos da minha mãe, proclamando que E. V. Renge é um demónio. Porque, como sabem, não existe má publicidade. E sei isso porque fui informada de antemão. Logo depois de ter assinado um acordo de confidencialidade. Esta proeza conjurada em segredo pela agência de relações públicas vai supostamente instigar vendas loucas dos livros dela.

Não me apetece nada sair pela entrada principal e esbarrar em cheio contra um bando de paparazzi e de fãs desvairados.

Suspiro de alívio quando saio pela porta das traseiras do edifício e, certificando-me primeiro de que não está ninguém no parque de estacionamento, avanço para o meu carro.

O meu telemóvel toca.

– Graças a Deus – digo quando atendo. – Já saí de lá.

– Olá, Snarky, está quase a acabar. – A voz tranquilizadora do EJ é como um bálsamo para a minha alma.

– Vais lá ter, certo?

– Já estou a caminho. Talvez chegue lá primeiro do que tu.

– Cuidado com os paparazzi em frente ao portão principal, OK? – Destranco a porta do carro para entrar. – De certeza que vão lá estar… Só um segundo.

Há um envelope no banco do condutor e franzo a testa em confusão ao pegar nele.

– EJ, só um segundo. – Coloco a chamada em alta-voz, entro no carro e ponho-me a estudar o envelope. – Mas que raio…

– Está tudo bem? – pergunta ele.

– Não tenho bem a certeza – digo, sentindo o coração a bater acelerado enquanto leio as palavras escritas no envelope.

Do fã #1. XOXO

Dois

A fama, mesmo no mundo literário, vem acompanhada de elogios, correio de fãs, stalkers e, ocasionalmente, um aleatório frasco de urina ou roupa interior ensanguentada. Sim, há malucos à solta por aí. Não vou falar das coisas mais mórbidas. Também há muito disso.

Espreito com nervosismo pelas janelas do meu carro. O parque de estacionamento está apinhado de carros, mas não há uma única pessoa à vista.

– Kenz, o que é que se passa? – pergunta o EJ com preocupação em alta-voz.

– Correio de fãs – respondo, voltando a concentrar-me no envelope.

– Alguma coisa louca?

– O que é de loucos é que estava dentro do meu carro.

– Esqueceste-te de o trancar?

– Achas, meu? Só espero que não seja ricina ou algo do género. Eu devia era deitá-lo fora.

– Abre-o! Pode ser divertido.

O EJ fica sempre entusiasmado com as histórias dos fãs da minha mãe.

– OK, OK! – Rasgo o envelope.

Afasto cuidadosamente as bordas com as pontas das unhas pintadas de preto e espreito o interior. Todo o cuidado é pouco quando se trata de correio de fãs. Já aconteceram coisas muito estranhas. As pessoas enviam todo o tipo de coisas à minha mãe. Cartas de amor, ameaças, os seus próprios manuscritos, brinquedos, bolachas, madeixas de cabelo. Um frasco de urina: isso foi mesmo nojento. Um tipo qualquer enviou-lhe uma fotografia photoshopada dele e dela, coberta com o sémen dele.

– Vá lá, desembucha. O que é? – pergunta o EJ com impaciência.

– Tem papéis dentro. As cartas chorosas de alguém, se calhar.

– Lê-as.

O EJ adora este tipo de coisas arrepiantes. Formou-se na minha universidade há um ano e faz vários trabalhos de TI como freelancer. É hoje um programador brilhante, ganhando mais dinheiro aos vinte e três anos com trabalhos de codificação feitos online do que um adulto comum. Mas quando o conheci há vários anos, não passava de um nerd. Disse-me que teve de repetir um ano no 3.º ciclo do ensino básico porque faltava muito às aulas e passava o tempo todo agarrado ao computador em casa. Continua a ser um cromo, mas acabou por encontrar um grupo de pessoas que partilham dos mesmos interesses que ele. Às vezes, isso faz toda a diferença na vida.

Tiro os papéis do envelope e desdobro-os.

A carta está escrita à mão e é composta por três folhas, cada uma com uma das margens esfiapadas, como se tivessem sido arrancadas de um caderno de apontamentos.

– Vá lá! – instiga-me o EJ com impaciência.

– Espera! Chiça. A paciência é uma virtude, sabias?

A primeira folha tem apenas duas linhas, as quais leio lentamente em voz alta:

Queres saber um segredo?
Com amor, Mãe.