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Nunca me passou pela cabeça que fosse um perito em Proust, porque os seus livros de ficção são mais entre o Boris Vian e Celine, talvez.
Nunca li, nem um nem outro. Mas sei que são surrealistas.
Porque é que se interessou por Proust?
Eu comecei por fazer uma licenciatura em gestão. Depois decidi que queria fazer um mestrado em literatura. Fiz uma primeira cadeira, que era obrigatória, no mestrado literatura. E no final dessa cadeira, havia uma avaliação pessoal...
Onde foi esse mestrado?
Na Faculdade de Letras, em Lisboa. Então, havia uma avaliação do semestre com o professor responsável pelo curso, Miguel Tamen. Eu disse que as cadeiras estavam a correr bem, com boas notas, mas sentia que não seria capaz de fazer um mestrado porque não tinha feito leituras suficientes e de uma maneira sistemática. Perguntou-me o que é que me interessava em literatura, qual é que era o tema mais atraente. Eu respondi que era “mudar de ideias”, se calhar por ter vindo de gestão e agora estar em literatura. Mandou-me ler conversões de santos, etc, e depois ler outras coisas. A certa altura disse: “Agora, não o quero ver durante 40 dias”, aproximava-se a Quaresma. Foi-se embora nas férias do Carnaval e só voltaria depois da Páscoa.
Tamen é muito religioso.
Exato. E então, quando voltasse das férias da Páscoa, eu teria que ter lido a “À la recherche du temps perdu”. Comecei a ler e fiquei absolutamente fascinado.
Quando estava a ler o livro, lembrei-me de Mário de Sá Carneiro. São da mesma época, da mesma cidade, e ambos tinham problemas existenciais. Claro que Sá Carneiro não tem a profundidade do Proust, mas há muitas compatibilidades. Os dois eram meninos mimados, cheios de doenças que não se sabe se eram doenças, sustentados pelo pai a contragosto, nunca fizeram nada da vida, e acabaram por morrer - o Sá Carneiro suicidou-se - por uma angústia totalmente filosófica. São contemporâneos, não são?
Sim, com certeza, no sentido de ser muito associada a vida dele a uma certa futilidade, a meu ver aparente, uma fragilidade de saúde. Obviamente tiveram os dois em Paris, foram os dois sustentados pelos pais, e nunca tiveram muito trabalho, propriamente dito.
Nesse sentido, sim. Embora, eu ache que o Mário de Sá Carneiro, literariamente, nunca foi muito consistente, nem capaz de construir de uma maneira sistemática, como o Proust, a partir de...
Não se compara, sim. Mas voltemos ao livro, é importante porquê?
Então, eu acho que é um livro muito importante na história da literatura, por ser este salto do gigante na subjetividade, nesta capacidade de olhar para dentro e para a nossa podridão durante muito tempo, sem procurar desculpas, e de um ponto de vista quase autobiográfico. Embora ele venha desta linhagem que começa em Santo Agostinho, depois tem o...
É autobiográfico?
Sim, sim, autobiográfico. Embora o que queira dizer autobiografia é sempre problemático.
Mas é sobretudo importante porque eu acho que toda a literatura do Proust assenta numa ideia do triunfo dos derrotados, de às vezes a derrota ser o ponto a partir do qual nós conseguimos aceder ao que mais procuramos. Neste caso, acredita-se, à criação literária.
Mas quando se começa Proust - que é a única experiência que eu tenho - as primeiras duas páginas são a lê-lo a aconchegar-se na cama. É preciso um certo estado de espírito para ver ali alguma coisa de extraordinário.
E é preciso também, do ponto de vista de quem cria, uma confiança extraordinária para um autor que não era levado a sério dizer: é sobre isso que quero escrever.
E isso é uma das coisas que eu acho mais admiráveis no Proust, essa não-cedência a qualquer ideia de conformismo ou de conformidade.
Pois, como dizia um tio meu ao filho: “Tu és de esquerda porque eu sou rico e posso pagar tu seres de esquerda!”. (Risos)
É mais ou menos isso.
Mas a questão é que os livros, para mim, são todos biográficos.
Todos. Certo. De acordo.
São disfarçados, ou não. Explícitos, ou disfarçados.
Mas usa a própria vida abertamente, ou seja, é muito fácil, pelo menos para si, que o estudou, identificar quem são as pessoas que aparecem. Apesar de trocar não só os nomes, como as atitudes. Às vezes, pessoas que considera más, ou caráteres melhores. No fundo é o que toda a gente faz: usar o que escreve como uma espécie de terapia para desopilar as suas desgraças. Concorda?
Sim, concordo. E acho que há uma coisa que é extraordinária na vida do Proust, que acontece com muito poucos escritores, aliás, por exemplo, no caso de Pessoa, é um caso que talvez possa servir a acontecer a mesma coisa.Talvez também no Eça encontremos alguns vestígios disso. Mas que no Proust é o apogeu deste movimento, que é o de, parecer transformar a vida em arte, mas na verdade o que transforma é a arte em vida. Ou seja, o que acontece no caso do Proust, é que nós só conseguimos olhar para a biografia do Proust à luz do que escreveu sobre essa biografia.
Isso acontece, por exemplo, nas cartas que o Fernando Pessoa escreve ao João Gaspar Simões, ao Adolfo Casais Monteiro, sobre aos heterónimos. Que é esta ideia de que o artista tem tanta força, o Proust tem tanta força, que nós só conseguimos olhar para as pessoas à volta do Proust à luz do que o Proust escreve sobre elas. E, portanto, a biografia delas desaparece por inteiro.
O que é temível, se pensarmos que pode acontecer connosco.
Mas isso é uma lapaliçada. Ou seja, é evidente que isso é o que acontece com todos os escritores? Quer dizer, uns afirmam isso mais abertamente.
Lembro-me de uma discussão entre o William Burroughs e o Norman Mailler, exatamente sobre se os romances são biográficos ou não. E chegam à conclusão que sim, que os romances são sempre biográficos.
Quer dizer, há casos em que é difícil dizer que é biográfico, como por exemplo o “Memorial do convento” do Saramago, porque é difícil identificar o Saramago naquelas personagens.
Mas, provavelmente, o Saramago foi buscar, pessoas que ele conhecia, para fazer isso. Para enriquecer as personagens.
Para encher as personagens, sim.
Um personagem criado de raiz, aguenta como figurante num filme, ou seja, chega, diz uma boca e vai-se embora. Mas um personagem criado de raiz para ser um protagonista, acho impossível.
É verdade o que está lá a dizer, que isto acontece mais ou menos sempre na literatura. Mas acho que o caso do Proust é muito paradigmático e há um exemplo que prova bem isso, que é o facto do Proust nascee em Illiérs . É onde cresce, é onde a família tem casa, a família paterna. Na altura era um subúrbio chique de Paris.
Aqueles chalés de férias, como em Sintra na mesma época.
Exato. Era onde vivia a família dele, que era bastante endinheirada,
E depois ele vai escrever sobre essa terra e no livro dá-lhe o nome fictício de Combray. Só que o livro causa tanto impacto em França que hoje a terra já se chama Iliers-Combray e um dia vai se chamar só Combray. Ou seja, isto é um movimento de transformação da vida em arte. Também acontece, por exemplo, com o Eça. O livro “Cidade e as Serras” passa-se numa casa de família em Tormes. Mas Tormes não era o nome que tinha, mas agora a fundação Eça de Queiroz é lá.
Nesse aspecto, Henry Miller bate todos porque é o protagonista dos seus livros e as pessoas falam com ele, “Henry, tu, não sei o quê”, quer dizer, coloca-se na história que está a escrever e disse numa entrevista, que um dia ainda havia de escrever verdadeiramente todas as coisas que aconteceram. Ou seja, aquelas histórias detalhadíssimas que usa, acha que ainda não dizem tudo. Os diários dos Goncourt, também são parecidos nesse sentido.
Proust era bi ou homossexual? Há várias teorias, mas na prática diria que era homossexual.
É muito difícil de dizer porque parece estar sempre ciente que a correspondência dele, por exemplo, seria lida por pessoas a quem as cartas eram dirigidas e, portanto, há um grau de farsa nas cartas em que, muitas vezes, parece sugerir que tem relações com mulheres, etc. Mas não. Não temos nenhum indício que essas relações tenham existido ou sequer que se tenha sentido atraído por mulheres. Portanto, eu diria que sim.
Fala das mulheres, quer dizer, do pouco que eu li, fala das mulheres como se as apreciasse ...
Sim. Ou seja, a personagem dele no romance é com certeza heterossexual. Sem qualquer dúvida. Embora haja teorias que dizem o contrário, mas que não me parecem minimamente relevantes ou credíveis. Portanto, sim, era homossexual.
Embora, até que ponto é que essa homossexualidade se manifestava em relações, por exemplo, é controverso. Por exemplo, a criada dele, que o acompanhou nos últimos anos de vida diz que não era homossexual, ou pelo menos que nunca teve nenhum comportamento homossexual.
A criada que diz que a primeira vez que entrou num quarto não via nada por causa do fumo. (Risos)
Exatamente, exatamente. Portanto, a criada não viu nada ou pelo menos não quis deixar escrito.
Acho que a bissexualidade é uma coisa latente em todos os homens.
Claro, concordo.
O Bruno Charlus, a personagem do Pouce… a certa altura o Marcel diz que ele achava que eram homossexuais todos os homens do país, menos aqueles com quem ele tinha tido relações.
Isso parece uma afirmação do Oscar Wilde.
Sim, sim, sim. Coitado. Deu-se mal, o Oscar Wilde.
O Oscar Wilde deu-se mal porque caiu na asneira de engatar o filho de do Marquês de Queenberry, um homem com muito poder e que não levou aquilo a bem.
E era uma vergonha, nessa altura, ser homossexual.
Sim, sim. Por isso é que não é nada implausível que a criada não soubesse nada, porque não era uma coisa que se falasse.
O Alan Turing foi quimicamente castrado, isto já depois da II Guerra Mundial.
Pois foi. O homem que Inventou os computadores.
É engraçado, nós somos de uma geração em que a homossexualidade, pelo menos no nosso meio, já é aceite. Aceite é até uma palavra um bocado machista, digamos assim.
Já está... normalizada.
Normalizada, não é? O único país que eu conheço que está a retroceder, é os Estados Unidos. Se Trump aguentar quatro anos, acho que a homossexualidade vai ser reprimida. O casamento homossexual, de certeza.
Pois, vai haver pelo menos um ataque muito forte.
Voltando a Proust, teve uma morte horrível?
Sim, recusou-se a receber mais injeções porque achava que não o melhoravam. Ou seja, vem de um contexto familiar muito ligado à medicina. O pai e o irmão eram médicos muito prestigiados. E a certa altura consegue chegar a um acordo com os médicos que o tratavam, de que era de facto a melhor pessoa para autoprescrever os medicamentos. Porque era uma doença tão específica e tão difícil de compreender.
Era o que? Asma?
Era uma complicação respiratória, sim. Há várias teorias do que é que poderia ser, mas seria uma asma com febre dos fenos...
Não foi autopsiado?
Não foi autopsiado, não. E no final da vida já fazia muitas injeções de uma data de coisas contraditórias.
Depois tomava muita cafeína e anestesiantes. Aquilo era uma confusão. Em alguns momentos, no fim da vida, não queria tratar-se nem salvar-se. Por exemplo, ele está com sintomas de pneumonia e vai para a rua à meia-da-noite porque quer acabar uma parte da história e precisa de ir falar com uma pessoa.
Portanto, parece claro que tem uma morte muito agonizante e a descrição de Celeste Albarré, a criada de quarto, é espantosa, talvez a melhor parte do livro. Mas, se parece agoniante, também parece nunca se preocupou muito em curar-se.
Como é que conhecemos o que a criada escreveu?
Do “Monsieur Proust”, que é a biografia que escreveu sobre os anos que passou como criada dele. Escrevia bem, mas teve um ghostwriter. O Proust, a certa altura, começa-lhe a dizer “Ah, Celeste, devias começar a tirar notas”, porque ele achava, e com razão, que a Celeste Albarré era a melhor advogada de defesa que ele podia ter, em relação, por exemplo, à homossexualidade.
Parece bastante claro, ao longo da biografia, que ele condiciona a maneira como ela o vê para depois escrever o livro que ele quer que ela escreva. Que é um exercício extraordinário.
Isso é fantástico!
Sim. Que, aliás, não sei se será o caso, mas, por exemplo, nós sabemos que o Lobo Antunes também tem um americano que anda sempre com ele e que pode estar a preparar uma biografia em que olha só para os lados que quer que se vejam. Não sei se é esse o caso ou não.
Era uma pessoa angustiada ou era uma pessoa neurótica?
Eu acho que era como todos nós, não é? Angustiado e neurótico, mas... Tem sempre a angústia que... Ou seja, é muito fácil nós olharmos para o propósito hoje e pensarmos que era evidente para ele e para todos que ele era um génio absoluto. Mas de certeza que não era isso que ele pensava de si mesmo.
Acha que não?
Acho que só uma pessoa que se coloca no centro do mundo escreve tão minuciosamente acerca de si próprio.
Então era muito egocêntrico?
Sim, percebia que... Acho que, mais do que egocêntrico, era alguém que percebia que era a planta de onde ele próprio iria colher o seu livro. Ou seja, ele tinha que se ir alimentando e ir fazendo-se crescer porque era dali que ia extrair o seu trabalho. Mas, por outro lado, claro que não deve ser fácil uma pessoa crescer com um pai a dizer-lhe que o que faz não é nada.
Claro que isso, de certeza, gera dúvidas. O facto de ser constantemente achincalhado...
O André Gide rejeitou publicar o primeiro volume do “Em busca do tempo perdido” porque não estava para publicar snobs que só iam a festas. Obviamente que não deve ser fácil uma pessoa como o André Gide dizer isto sobre nós e continuarmos a achar que somos óptimos, não é?
Quer dizer, ninguém esperaria que uma pessoa com a imagem que ele tinha à sua volta o considerasse como um ser excepcional. Salvo a criada, que tem uma intimidade quase de mulher.
Sim, é natural que toda a gente o achasse um caso perdido. Até porque escrevia em jornais como o “Le Figaro” crónicas sociais sobre as festas. É como nós acharmos, no nosso tempo, que alguém que escreve na Nova Gente é um génio literário. Uma ideia bizarra.
Portanto, isso explica a postura do André Gide, não é?
Explica, mas a verdade é que há uma diferença entre aquilo que se escreves para ganhar dinheiro e aquilo que se escreves porque apetece escrever.
Claro. Conciliar as duas coisas não é fácil.
Sim, e embora não possamos pôr completamente de parte que ele não gostasse genuinamente de ir às festas, de falar sobre aquilo e de ter um lado snob muito acentuado, porque tinha. A fotografia da capa do meu livro)é isso, o Proust. É o Proust num contexto social, na fotografia inteira ele está rodeado de amigos e amigas a jogarem ténis.

Ele não jogava, mas, aliás, a roupa com que ele está vestido não era de alguém que estivesse a praticar desporto. Mas assistia porque era assim.
Quer dizer, isso é uma imagem que eu... Porque usando as comparações que fiz anteriormente, o James Joyce não era nada social. Nada.
Aliás, eu acho que conheceu o Proust numa festa.
Ah, conheceram-se?
Sim, conheceram-se e a história é muito engraçada porque é já muito perto do fim da vida do Proust e vão a uma festa de homenagem, já não me lembro a quem, salvo erro ao Picasso ou ao Stravinsky. Mas é daquelas festas em Paris que só podiam acontecer naquela altura e só em Paris. E são apresentados um ao outro e Proust dá uma boleia ao Joyce para casa. Não trocam uma única palavra, o Joyce vai a fumar dentro do carro e o Proust, já muito perto do fim da vida, vai com a janela aberta a tentar respirar. Portanto, o encontro destes dois génios é assim uma coisa bastante peculiar.
Outro exemplo de que falei, o Henry Miller, teve um emprego menos de um ano e disse que nunca mais trabalhava, porque achava que o trabalho era uma escravatura. Mas não tinha nenhum familiar que lhe desse dinheiro e não se envergonhava de pedir emprestado aos amigos. A certa altura escreve que tinha amigos de cinco dólares e de dez dólares.
Não, o Proust nunca aceitava dinheiro emprestado. É uma peculiaridade dele porque não gostava de estar numa posição de subalternidade.
Dava gorjetas muito elevadas e uma vez estava no Ritz e começa a distribuir gorjetas por todos os funcionários do hotel. Chega ao último e não tem gorjeta para lhe dar. Então pede-lhe 40 francos emprestados; o empregado empresta 40 francos a um homem que não conhece de lado nenhum e no dia seguinte Proust paga-lhe com juros.
No dia seguinte Proust vai pagar-lhe com juros o dinheiro que tinha emprestado. Eu não sei se foram mesmo 40 francos, mas era um valor muito, muito, muito elevado para uma gorjeta…
É injusto que nessa época só os ricos tivessem dinheiro para poder escrever e não fazer mais nada, não é? Por acaso há uma excepção, Robert Musil, autor de outro livro icónico, “Um homem sem qualidades”. Os amigos sustentaram-no para que pudesse trabalhar no livro.
Em Paris, então… os ricos eram os que estavam nos salões poéticos onde iam também os editores, a inteligência.
A “Recherche” foi toda publicada enquanto estava vivo?
Não. Não, e aliás, há partes no final, nos últimos livros, que são incongruentes. Por exemplo, personagens que estavam mortas e voltam a estar vivas.
São dois casos, não é nada extraordinário. A certa altura, a Celeste Albarré conta que ele lhe diz com grande felicidade “Celeste, hoje escrevi as palavras... Escrevi fim, no meu livro, acabei.” E ela pergunta: “Então e o processo de revisão?” E ele responde que isso é uma outra história.
E o processo de revisão era muito, muito demorado. Tanto que nós temos acesso às fotografias dos paparazzi, que eram acrescentos que ia pondo ao longo das folhas e, portanto, uma página podia expandir-se para três ou quatro, ou mais.
Já viu uma página emendada pelo Eça de Queiroz?
Não.
É uma coisa inacreditável.
Pois, do Proust é uma coisa espantosa.
Naquele tempo eram pessoas a fazer as emendas manualmente até ao fim daquele capítulo, pelo menos, aumentava ou diminuía imenso.
Pois. Era o terror dos tipógrafos. E depois o que acontece é que o irmão do Proust vai rever e, por exemplo, vai tomar decisões em relação ao título de um dos volumes porque coincidia com o título de um livro que tinha sido publicado há pouco tempo antes, portanto não podia ser aquele. E é ele que vai estabilizar o texto como nós o conhecemos nos últimos três volumes.
Tinha um irmão?
Tinha um irmão, que era também médico. E foi ele quem o tratou ao longo da guerra. Chamava-se Robert.
Era uma pessoa normal?
Sim, sim. Era muito corajoso, na guerra estava sempre a pedir para ser colocado mais à frente, nas linhas, para ajudar, porque era médico.
Então correu muitos riscos. Era também um adúltero muito prolífero! (Risos)
Mas todos os homens da sociedade nessa época eram adúlteros.
Sim, sim. Por exemplo, uma das possibilidades fortes para a mulher…
O Proust morre, e depois morre o Robert e todas as cartas ficam na mão da mulher do Robert, que era uma pessoa que não tinha nenhuma simpatia pelo Proust. Então destruiu algumas cartas, não se sabe se por raiva ou por indicação do próprio.
Há um explorador inglês do século XIX, Richard Burton, que descobriu a nascente do Nilo, disfarçou-se de árabe e foi a Meca, e muitas aventuras mais. Fez muitas traduções, inclusive “Os Lusíadas” e o “Kama Sutra”. Quando morreu, a mulher dele, uma vitoriana puritana, destruiu a tradução do “Kama Sutra”…
Os legados são uma coisa muito complicada. Dizem que os filhos do Eça de Queiroz também terminaram um livro inacabado dele, não me lembro qual.
Pois, nunca se sabe. O Proust parece que terá dito para destruirem as suas cartas. Portanto não é claro que a cunhada dele o tenha feito por raiva. Pode ter sido por ordens suas, mas a verdade é que ela tinha um rancor conhecido pelo Proust. Mas depois há a sobrinha que gostava muito dele… Nunca poderemos saber. Mas nada de essencial está por encontrar.
Cita esta frase do Proust: “O domínio pertence sempre a quem se encontra numa aparente inferioridade” É isso?
É. Sabemos que isso acontece no sado-masoquismo, em que quem domina é o masoquista. Se pensarmos, por exemplo, o Proust é um dos melhores escritores sobre flores, embora o pólen fosse uma das suas alergias. Isto acontece no amor, na saúde… A pessoa que é expulsa do salão é a que melhor vai descrever a maneira como se vê quem lá estava.
Há uma descrição dele sobre Barão de Charlus em que Proust diz que é homem por fora e mulher por dentro. Portanto tudo é um trocadilho.
Há a teoria que diz os homossexuais nasceram com o sexo errado; o Proust acha que não, que os homossexuais têm dentro de si uma mulher e um homem.
Esta outra frase dele: “Para o escritor, pensar e escrever é uma função dolorosa que o torna feliz, tal como para o atleta o esforço do treino é benéfico”. São tudo contradições como o Oscar Wilde gostava de fazer: “Só as pessoas muito superficiais é que não se preocupam com as aparências”.
O Proust conheceu o Oscar Wilde quando foi a Paris, antes do escândalo que o destruiu, e foi a grande sensação do momento. Então o Proust convida-o para jantar na casa dos pais dele. Quando o Proust chega, já o Wilde tinha chegado e estava na casa de banho. Quando sai de lá diz “a sua casa de banho é horrível” e sai porta fora, sem jantar! (Risos) O Proust passa a odiá-lo, compreensivelmente, por cauda disso.
Nos seus livros o Oscar Wilde é comparado a personagens ridículas. Mas há uma frase do Proust completamente Wildeana, que é: “Deixemos as mulheres bonitas para os homens sem imaginação” (Risos) Mas a ideia é que nós não devemos deixar que um cânone de beleza domine os nossos sentimentos.
As relações entre os homens e as mulheres mudaram muito ao longo do tempo. Sobretudo começaram a acelerar a partir da revolução industrial. As mulheres não tinham direito de voto em lado nenhum.
Há muitas pessoas que dizem que o Proust é entediante, mas não foi essa a minha experiência. Há uma certa trepidação quando começamos a ler uma coisa que nunca tínhamos lido antes. Tinha um professor na faculdade que dizia: “Se nós batermos com a cabeça na parede e ouvirmos um som oco, pode não ser da parede!”
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