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Deverá a violação ser um crime público? Esta é uma conversa que divide muitas das pessoas técnicas e especialistas nesta área, onde eu me incluo. À primeira vista, esta proposta pode parecer bem-intencionada: garantir que nenhum caso fique impune, mesmo que a vítima não denuncie. Mas por trás dessa aparência de zelo pela justiça, há riscos reais e consequências graves para quem mais importa: as vítimas.

Tornar a violação um crime público significa que qualquer pessoa — profissionais de saúde, familiares, agente de autoridade ou pessoas amigas —  pode desencadear um processo-crime, mesmo contra a vontade da vítima. Esta mudança coloca o foco na punição, mas negligencia completamente a vontade, a segurança e o bem-estar de quem sofreu a violência. E isso é profundamente problemático. Esta mudança pode parecer protectora, mas está centrada na perseguição penal e não no bem-estar da vítima: retira-lhe o direito à escolha, à autonomia e ao tempo de que precisa para recuperar do trauma.

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Sabemos que o momento em que uma vítima decide (ou não) denunciar é profundamente íntimo, delicado e complexo. Muitas vezes, são precisos anos até que a vítima se sinta segura, com ou sem o apoio necessário, para contar a sua história. Obrigar alguém a passar por um processo judicial — longo, invasivo e muitas vezes re-traumatizante — contra a sua vontade, é uma forma de violência institucional. Mesmo que estejam previstas algumas salvaguardas para respeitar a vontade e a privacidade da vítima – segredo de justiça, anonimato, direito ao esquecimento, suspensão provisória do processo a pedido da vítima –, não podemos esquecer o contexto atual e do nosso histórico em relação ao tratamento das vítimas na justiça e também no plano social. 

Vejamos o que já acontece noutros casos. Na violência doméstica, onde o crime é público, é muitas vezes a vítima que tem de mudar de vida. Muda de casa, muda de cidade, perde o emprego ou afasta-se da rede de apoio. E tudo isto acontece enquanto o agressor, por vezes, permanece intocado — no conforto da casa que nem sempre é dele, mas da própria vítima. Esta inversão de justiça não é ficção. É real. E acontece todos os dias. Que impacto terá, então, se começarmos a arrastar vítimas de violação para processos que não escolheram e para os quais não estão preparadas?

Além disso, este tipo de proposta ignora as razões pelas quais muitas vítimas não denunciam. Medo de que não acreditem nelas, receio de represálias, vergonha, laços familiares ou profissionais com o agressor, ou até a própria confusão emocional sobre o que viveram. Nenhuma destas razões é resolvida tornando o crime público. Pelo contrário, o risco é afastar ainda mais as vítimas dos serviços de apoio — com medo de que, ao falarem, o processo lhes escape das mãos.

Associações de apoio especializado à vítima de violência sexual:

Quebrar o Silêncio (apoio para homens e rapazes vítimas de abusos sexuais)
910 846 589
apoio@quebrarosilencio.pt

Associação de Mulheres Contra a Violência - AMCV
213 802 165
ca@amcv.org.pt

Emancipação, Igualdade e Recuperação - EIR UMAR
914 736 078
eir.centro@gmail.com

Há muito por fazer antes de tornar a violação um crime público

Antes de discutir se o crime deve ser público, devíamos garantir que os crimes de violação têm, de facto, consequências justas e proporcionais para quem os comete. Um exemplo gritante é o de um estudante universitário que violou uma colega em Coimbra. A jovem é violada, e o crime é provado. Ele diz que foi tudo consentido e “plenamente normal”. No entanto, os juízes consideraram as declarações "inverossímeis" face à prova produzida. O violador é condenado a indemnizar a vítima em 20 mil euros e a uma pena de prisão de quatro anos e seis meses. Mas a pena é suspensa na sua execução. Ou seja, não foi preso. Tudo porque “os tribunais não servem para destruir as vidas das pessoas". Mesmo quando se prova a violação, a vida das vítimas não tem valor face ao eventual futuro promissor do violador. O coletivo de juízes acabou por dar uma “palmadinha na mão” ao violador porque “os tribunais não servem para destruir as vidas das pessoas". Por isto entende-se que não servem para destruir a vida dos violadores, porque a vida das vítimas, essa, parece não ter valor.

Tomando este caso como exemplo — o que podemos verdadeiramente esperar para as vítimas se o crime passar a ser público? Que confiança podem ter num sistema que as obriga a denunciar, mas depois não as protege?

Antes de mudar a natureza pública do crime, por que não alargar significativamente o prazo de prescrição, que atualmente é de apenas 12 meses para adultos? Ou melhor ainda: porque não abolir por completo o limite para denunciar, tal como acontece em vários países? A maioria das vítimas demora anos, ou mesmo décadas, a reconhecer o que viveu como abuso e a sentir-se em condições de o verbalizar. Este é o verdadeiro obstáculo à justiça, e não o tipo legal do crime.

E ainda: porque não formar, com urgência, os juízes, magistrados, forças policiais e profissionais de saúde sobre trauma e as especificidades da violência sexual? Como podemos exigir que o sistema atue com justiça e sensibilidade se não está preparado, nem devidamente informado?

O longo silêncio das vítimas

No caso dos homens vítimas de violência sexual, a Quebrar o Silêncio sabe que o silêncio é muitas vezes imposto pela vergonha, pelo estigma, pelo medo de não serem levados a sério. Demoram, em média, mais de 20 anos a procurar ajuda. Se houver o risco de, ao procurar apoio, o crime ser automaticamente denunciado por terceiros, quantos darão o primeiro passo? Quantos continuarão em silêncio? E quantos ficarão sem qualquer tipo de ajuda por recearem serem empurrados para processos que não controlam?

Transformar o crime de violação num crime público pode afastar ainda mais homens e mulheres sobreviventes da rede de apoio. Pode ser mais uma porta que se fecha. Se o objectivo é proteger as vítimas, temos de começar por escutá-las. Garantir-lhes o direito de escolher. Dar-lhes tempo, espaço e segurança. A justiça não pode atropelar quem sofreu nem pode ser feita à revelia de quem sofreu o crime. E uma sociedade que denuncia em nome das vítimas, mas as abandona no momento em que mais precisam, não está a fazer justiça — está a exercer mais violência sobre os e as sobreviventes.

Ângelo Fernandes é o fundador da Quebrar o Silêncio — a primeira associação portuguesa de apoio especializado para homens e rapazes vítimas e sobreviventes de violência sexual — e autor de “De Que Falamos Quando Falamos de Violência Sexual Contra Crianças?”, um livro dirigido a pais, mães e pessoas cuidadoras com orientações para a prevenção do abuso sexual de crianças.