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A Diretiva Europeia sobre o combate à violência contra as mulheres e violência doméstica, aprovada em Abril de 2024 e com prazo de implementação até 2027, voltou a abrir portas à discussão e a levar os Estados a ir mais longe nas suas legislações nacionais. Portugal não foi exceção.

A matéria vinha sendo alvo de discussões várias no nosso país ao longo dos anos, mas só no passado dia 11 de Julho o Parlamento finalmente aprovou, na generalidade, a alteração da natureza do crime de violação, que passou de semipúblico para crime público, aliás à semelhança do que já tinha ocorrido anteriormente com o crime de violência doméstica.

A matéria tem vindo a suscitar alguma controvérsia e ampla discussão sobre se efetivamente este é um sinal de evolução legislativa no sentido de uma maior proteção da vítima ou, se, por outro lado, é retirar-lhe o pouco poder de decisão que ainda lhe restava depois de ser sujeita a prática tão hedionda.

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Até então, era à vítima que cabia o exercício da queixa e só com esta o Ministério Público poderia investigar. Passando para crime público, qualquer pessoa que tome conhecimento de notícia do crime poderá denunciá-lo levando o Ministério Público a abrir inquérito.

Estaremos a proteger mais as vítimas? As presentes e as futuras? Ou a retirar-lhes o poder de decidir? Estaremos a legislar de forma inconsequente e a empoderar o violador que, sem colaboração da vítima com a investigação e o sistema de justiça, poderá não ser condenando, reforçando-se o sentimento de impunidade?

É uma matéria complexa saber em que medida se consegue a proteção da vítima sujeita a uma violação. E esta, necessariamente, terá que ter um papel preponderante na forma como, pelo menos psicologicamente, irá ultrapassar aquilo a que foi sujeita, decidindo se quer ou não falar e em que medida. 

Tornar o crime público poderá levar a um forçar da vítima a confrontar-se com o crime de que foi alvo num momento em que ainda não está preparada para lidar com essa realidade. 

Como obter prova contra um agressor se a vítima não fala, não permite exames periciais na sua pessoa, não reage, não chora – levando a que se possa até duvidar de ter sido sujeita a um crime desta natureza? Como conseguir investigar, quando confrontados com o risco de aumento de falsas denuncias, num sistema já sobrecarregado e com falta de meios? Como condenar por um crime desta gravidade se a pessoa visada, não colabora (ou nega até os factos), nomeadamente se, num Estado de Direito, sabemos que in dúbio pro reu?

Associações de apoio especializado à vítima de violência sexual:

Quebrar o Silêncio (apoio para homens e rapazes vítimas de abusos sexuais)
910 846 589
apoio@quebrarosilencio.pt

Associação de Mulheres Contra a Violência - AMCV
213 802 165
ca@amcv.org.pt

Emancipação, Igualdade e Recuperação - EIR UMAR
914 736 078
eir.centro@gmail.com

Que sobre isso nunca o julgador tenha hesitações! De facto, in dúbio pro reu! Mas o legislador, pode, e deve ir mais longe! 

Atenta a natureza dos valores em causa, dar ou não início ao procedimento criminal não deve ficar na dependência de um particular, da vítima. O procedimento criminal deve iniciar-se logo que o conhecimento do crime, através de quem quer que seja, chegue ao Ministério Público ou aos órgãos de polícia criminal e deve prosseguir independentemente da vontade expressa pela vítima.

Alterar a natureza do tipo de crime tem também em vista proteger, os mais fracos, que, já sendo vítimas, não tenham qualquer capacidade de fazer a denúncia ou de prosseguir com ela. Não porque convictamente não queiram, mas porque (ainda) não conseguem.

Alterar a natureza do crime para crime público, elimina as limitações temporais legalmente previstas (por regra de seis meses) para o exercício da queixa, algo a que estão sujeitos os crimes semipúblicos (ou de natureza particular) – sem prejuízo dos crimes públicos estarem igualmente sujeitos à extinção do procedimento criminal por prescrição.

Alterar a natureza do tipo de crime esvazia do agressor qualquer possibilidade de pressão sobre a vítima para que não apresente queixa, pois nos crimes públicos o processo existe mesmo contra a vontade da vítima e prossegue mesmo que esta apresente desistência de queixa.

Não deixando de ser um crime eminentemente pessoal, afigura-se-nos que, num crime de violação o bem jurídico a proteger é mais do que individual, é coletivo. E nessa senda, não poderemos deixar exclusivamente nas mãos da vítima a faculdade de exercer, ou não, o direito de queixa. O titular deste direito tem que ser igualmente coletivo assim como o bem jurídico que se visa proteger. Até para proteção desse particular em concreto, dessa vítima.

O tema não deixará nunca de ser sensível, e a condenação dos agressores dependerá sempre de estreita colaboração com as vítimas, que, debaixo de uma enorme dor física e psicológica terão que ser capazes de o denunciar, identificar, permitir a recolha de prova em si próprias e elas próprias fornecerem demais prova. 

A vítima nunca poderá deixar de ser o princípio e o fim quando se trata de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexuais, mas precisamente por isso, saber que não está só, que a comunidade valoriza na mesma medida o tipo de crime e tudo fará para trazer à justiça os seus perpetradores, parece-nos uma evolução social, e a longo prazo (senão mesmo curto ou médio) um resultado de progresso da humanidade.

Rita Pimentel

Advogada