Acompanhe toda a atualidade informativa em 24noticias.sapo.pt

Os cidadãos das Américas Central e do Sul têm uma postura de amor-ódio em relação à América do Norte. O ódio vem da chamada “doutrina Monroe”, de 1823, altura em que o Presidente James Monroe, usava o slogan “A América para os americanos”, reforçada em 1904 pelo “corolário de Roosevelt”. Segundo Monroe, o continente americano como um todo devia deixar de aceitar colonos europeus. Roosevelt acrescentou que os Estados Unidos tinham o direito de influenciar a política e os negócios centro-sul-americanos a seu belo prazer, transformando uma cultura defensiva (em relação à Europa) numa política ativa de controlo regional.

À luz desta “filosofia” os Estados Unidos intervieram aberta e continuamente na política e economia dos países do Sul, impondo preços, tipos de produção e mesmo regimes políticos – geralmente defendendo os inúmeros ditadores que lhe eram favoráveis, ou atacando os democratas que queriam a independência dos seus países (daqui vem a expressão “República das Bananas”, cunhada em 1904 pelo jornalista O. Henry, referindo-se a um capitalismo de Estado que operava para uso exclusivo dos norte-americanos, através de dirigentes nacionais fantoches).

O “amor” vem do fascínio do muitos sul-americanos pelo padrão de vida dos Estados Unidos e pela ilusão de que se trata de um país verdadeiramente democrático, produtor dos melhores produtos do mundo, desde shampoo a máquinas agrícolas. Os sul-americanos mais ricos vão regularmente fazer compras aos “Estates” e os mais ricos ainda têm casas em Miami (a “capital da América do Sul”, diz-se) onde se fala mais castelhano do que inglês.

A verdade é que o interesse dos Estados Unidos pelas políticas praticadas na América do Sul mudou radicalmente nos últimos 25 anos – para dar uma data definidora, o ataque às Torres Gémeas de Nova Iorque em 2001). Por um lado, perceberam que já não havia um “perigo comunista” a Sul, uma vez que os países iam tendo ditaduras e/ou democracia por decisão própria e, tirando Cuba, nenhum regime comunista conseguia impor-se em povos “indisciplinados” e amantes da liberdade. Por outro lado o tal “perigo comunista” tinha mudado para África, até finalmente desaparecer: o perigo agora vinha dos movimentos (ou governos) islâmicos e havia áreas, como o SAEL em permanente estado de guerra. A política global norte americana passou do “perigo vermelho” para o “perigo islâmico”.

Escusado será dizer que o que interessa verdadeiramente a Washington é a parte comercial, ou seja, que um país permita as empresas norte-americana de garantir matérias primas baratas, especialmente petróleo e minerais raros (já vou adiantando: a Venezuela possui as maiores reservas de petróleo e de ouro do mundo).

Vamos então à Venezuela. Durante décadas foi o país mais rico da América Sul (em valores per-capita). A disparidade de rendimentos sempre foi brutal, com os habituais 1% da população a deter a maioria do capital, mas tinha uma classe média significativa (com 300.000 portugueses).

Desde o século XVI que vários caudilhos tentaram a separação de Espanha, mas só em 1830, o General Simon Bolívar conseguiu uma independência permanente, que levou a um regime nominalmente parlamentar, sem que a classe dominante deixasse de combater entre si, numa sucessão de governos ao sabor dos períodos de fome ou de abundância.

Durante a I Guerra Mundial foram descobertos os primeiros campos marítimos de petróleo, que provocaram uma economia de abundância até 1980 – o que não impediu a continuação de golpes e contra-golpes. As eleições de 1999 foram ganhas por Hugo Chávez, que se manteve no poder até à sua morte, em 2013.

Em 2007, Chávez passou a chamar ao seu autoritarismo crescente um “modelo bolivariano” de governação – na realidade, uma república de esquerda populista, que dificilmente pode ser ligada às ideias de Simon Bolivar. Desde 1997 que o país é a República Bolivariana da Venezuela.

A corrupção absorveu todos os recursos do país, que passou do mais rico da América do Sul ao mais pobre.

Em 2013, tornou-se presidente Nicolás Maduro, escolhido por Chávez em testamento. Sem experiência política, Maduro ficou na mão dos generais chavistas e também do governo comunista de Cuba, que enviou uma quantidade de polícia política para o país.

Entretanto a concessão do petróleo passou das empresas norte-americanas para uma estatal, PDVSA. Esta estatal não tem o know-how nem a capacidade de renovar equipamentos, pelo que a produção de petróleo baixou vertiginosamente. É este petróleo que alimenta a economia cubana e que Washington quer recuperar.

A única maneira de fazer Maduro cair seria uma revolução interna, uma vez que as sucessivas eleições são sempre falsificadas pelo governo. A última foi em 2024.

Calcula-se que desde o começo do “madurismo”, mais de 4 milhões de venezuelanos se tenham exilado nos países vizinhos. A nomenclatura que tem a Venezuela na mão não parece disposta a abdicar de Maduro e perder os seus privilégios. Auxiliada pelos cubanos, que precisam de petróleo, é improvável que saia do poder. Os norte-americanos não têm força para desestabilizar (ainda mais) o país e colocar um governo “democrático” que os favoreça.

Esta situação levou o presidente Trump, que tem pouca paciência para manobras políticas, a mandar uma força naval para o mar da Venezuela. Sob o pretexto de diminuir o tráfico de droga para os Estados Unidos, mandou a frota abater todas as lanchas venezuelanas que navegam nas águas internacionais. Até à data já foram afundadas 18 embarcações e cerca de 50 tripulantes. É de salientar que os barcos não foram abordados segundo as normas internacionais, que exigem que o atacante peça primeiro a identificação do alvo que deseja abordar. Trata-se, portanto, de assassinatos a sangue frio. Nem sequer se sabe se os tripulantes eram traficantes.

Mas Trump acaba de ir mais longe: dia 29 de Novembro fechou o espaço aéreo venezuelano. Isto significa que nenhum avião, qualquer que seja a nacionalidade, pode voar sobre o país. Equivale, em termos de direito internacional, a uma declaração de guerra. E já declarou, várias vezes, que vai invadir a Venezuela.

Assim, voltamos ao início deste artigo: se a invasão acontecer, vai provocar a união da maioria dos venezuelanos à volta de Maduro; vai recomeçar a interferência direta dos Estados Unidos na América do Sul; e vai reacender o anti-americanismo em toda a região. Além disso, mesmo conquistando o país (uma conquista sangrenta e improvável) será muito difícil os norte-americanos conseguirem extrair petróleo nessa situação.

Só desvantagens, nenhuma vantagem. Ah, convém não esquecer, vai tirar a Trump qualquer possibilidade de ganhar o Prémio Nobel da Paz para o ano...

__

A sua newsletter de sempre, agora ainda mais útil

Com o lançamento da nova marca de informação 24notícias, estamos a mudar a plataforma de newsletters, aproveitando para reforçar a informação que os leitores mais valorizam: a que lhes é útil, ajuda a tomar decisões e a entender o mundo.

Assine a nova newsletter do 24notícias aqui.