É uma tarde chuvosa de início de outono. Pedro, de sete anos, entretém-se a desenhar, pintar, recortar e colar. O irmão Santiago, de dez, está imerso num jogo de computador. Qualquer um que imagine esta cena poderá pensar que nela não existe nada de particularmente original ou diferente do habitual. Mas engana-se: estas crianças estão entre as primeiras a testar dois projetos totalmente inovadores que a Igreja Católica irá lançar nesta terça-feira, 30 de setembro, em Portugal, e cujo grande objetivo é a prevenção de violência sexual contra menores. “Mas é possível fazer-se isso através de atividades lúdicas?”, poderá perguntar, desconfiado, o leitor que tenha imaginado a cena aparentemente banal. Pela experiência de Pedro e Santiago – que o 7MARGENS acompanhou – tudo indica que sim.

Em causa estão o programa Girassol – composto por uma história e respetivo caderno de atividades, destinado a crianças dos sete aos nove anos – e o Lighthouse Game (traduzido à letra: Jogo do Farol) – que consiste num jogo digital para a faixa etária seguinte, dos dez aos doze. Ambos foram desenvolvidos pelo Grupo Vita, o organismo criado em maio de 2023 pela Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) para acolher e acompanhar as crianças e adultos vulneráveis vítimas de violência sexual no contexto da Igreja Católica.

Numa apresentação enviada em primeira mão ao 7MARGENS, o grupo explica que estes projetos nasceram de uma evidência: a de que “a violência sexual contra crianças e jovens é uma problemática com elevada prevalência, a nível global”. De resto, os números divulgados esta segunda-feira foram mais uma confirmação disso mesmo: só no primeiro semestre deste ano, a Polícia Judiciária registou 711 casos de abusos sexuais de crianças, tendo no ano passado sido registadas mais de mil participações de abuso sexual de menores em Portugal, algo que já não acontecia desde 2015.

Partindo dessa verificação, bem como da averiguação do “impacto negativo muito significativo, a curto, médio e longo prazo, não apenas nas vítimas, mas também nos seus familiares e amigos”, o organismo criado pela CEP concluiu rapidamente que seria necessário “um investimento em políticas públicas e em estratégias de intervenção e prevenção, ajustadas aos diversos públicos-alvo e contextos concretos”. E em particular na Igreja Católica, “tendo em conta os resultados evidenciados pelo relatório da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais contra as Crianças na Igreja Católica Portuguesa, em fevereiro de 2023, que realizou um primeiro estudo de prevalência sobre este fenómeno”.

Impunha-se, pois, “uma abordagem preventiva de natureza universal”, isto é, que envolvesse “todas as crianças nos vários contextos onde estas estão inseridas”, mas também os adultos – que “têm a responsabilidade de manter as crianças seguras e de saber identificar os possíveis sinais de alerta” – para “minimizar os fatores de risco e potenciar os fatores de proteção, promovendo uma cultura de cuidado e fomentando relações interpessoais saudáveis, alinhadas com os valores da Igreja Católica”. Foi com esse objetivo que o Grupo Vita decidiu pôr mãos à obra e, numa parceria com alunos de mestrado do ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa, desenvolver “programas preventivos inovadores”.

Um peddy paper e uma expedição cheios de emoção

Mas em que consistem, afinal, estes dois programas? Em comum, têm o facto de “abordar os temas que a investigação ao longo das últimas décadas tem indicado como particularmente relevantes neste contexto”, nomeadamente “como navegar pela Internet em segurança”, o que são “relações saudáveis”, quais os “sinais de relações abusivas”, ou “segredos e estratégias da pessoa agressora”. E ambos o fazem “recorrendo a estratégias lúdicas e ativas que estimulem a reflexão e o pensamento crítico”, adaptadas a cada faixa etária.

No caso do programa Girassol, isso é conseguido através de uma história protagonizada por seis crianças que formam uma equipa – a equipa Girassol – para participar num peddy paper. Munidos de um mapa, pistas e com desafios a cumprir em cada etapa, aqueles que leem a história passam a fazer parte da equipa, percorrendo ao longo das quase 130 páginas do seu caderno de atividades os diferentes locais do percurso (desde escola à igreja, passando pelo teleférico ou pelo parque de merendas), e abordando em cada um deles um tema diferente relacionado com a prevenção da violência sexual.

Assim, pelo caminho, as crianças são convidadas a desenvolver tarefas tão variadas como confecionar um “bolo das relações saudáveis”, sentir o perfume das flores e imaginar a que cheiram as emoções (alerta spoiler: algumas podem cheirar muito mal…), criar um “desconfortómetro” para avaliar as diferentes situações em que alguém pode tocar-lhes no corpo, ou montar um “quantos queres” para testar o que aprenderam.

Esta última foi a preferida de Pedro, que não descansou enquanto não pôs toda a gente à sua volta a dizer “quantos queria” e a responder às perguntas que iam calhando. Mas diga-se que, muito antes disso, já ele tinha sido conquistado pelas ilustrações da história, que ficaram a cargo da agência Gato de Bigode – em particular o girassol e os animais “fofinhos” que iam surgindo – e pelo facto de ser necessário completar esse mesmo girassol com pequenas pétalas para cortar e colar à medida que se resolve cada desafio.

Entretanto, o irmão Santiago embrenhava-se cada vez mais no Lighthouse Game, que convida os utilizadores a acompanharem um grupo de crianças um pouco mais velhas, juntamente com o seu professor de Educação Moral e Religiosa Católica (EMRC), chamado Francisco (uma homenagem ao falecido Papa?) numa expedição através de uma ilha misteriosa.

O jogo começa no farol – símbolo de orientação, proteção e segurança – e vai percorrendo diversos locais da ilha (a falésia, a praia, a fogueira…). Cada local corresponde a um nível, que é necessário completar através da realização de atividades como arrastar cartas ou palavras, fazer correspondências, escolher as opções corretas, descodificar enigmas ou encontrar palavras-chave numa sopa de letras. A dada altura, Santiago comentava: “Isto não é bem um jogo, é mais uma ficha de atividades digital…”, como que em tom de queixa. Mas quando lhe perguntámos o que achava de fazer essas atividades na sala de aula ou na catequese, não escondeu o entusiasmo.

Apesar de a linguagem se encontrar adaptada à idade, Santiago teve dúvidas sobre algumas das palavras que foram surgindo: “O que é aliciamento?”, perguntou. “E reciprocidade?”. Dificuldades que podem ser mais facilmente ultrapassadas quando o jogo é realizado em equipas de dois ou três elementos, e não individualmente, como o próprio Grupo Vita sugere. Além disso, o organismo da CEP prevê que haja sempre o chamado “adulto dinamizador” a acompanhar todas elas.

Em cada um dos cinco níveis do Lighthouse Game, é também sugerida uma atividade não digital, que permite complementar o jogo e consolidar as aprendizagens efetuadas, e ainda uma tarefa para realizar em casa, com os pais ou cuidadores.

E, como não podia deixar de ser, também há música envolvida. No caso do programa Girassol, as crianças são convidadas a aprender uma canção alusiva aos temas abordados. Já o programa Lighthouse Game desafia os participantes a puxarem pela criatividade e comporem o seu próprio tema musical com base nas experiências proporcionadas pelas diferentes atividades.

Ações de formação e um exemplo a seguir

Depois da sua apresentação na tarde desta terça-feira, 30 (que decorrerá a partir das 18h30, no Colégio de São José, em Lisboa) o Grupo Vita irá realizar diversas ações formativas sobre os dois programas, em formato online e presencial, destinadas a todos os adultos que, no contexto da Igreja Católica em Portugal, os desejem implementar.

Na perspetiva da coordenadora do organismo, Rute Agulhas, “estas atividades podem facilmente ser integradas nos conteúdos já previstos da disciplina de EMRC”. E embora a psicóloga reconheça que, por questões de tempo, a aplicação na catequese “possa ser mais difícil”, tal não significa que seja impossível. “Além disso, temos dirigentes dos escuteiros que também afirmam ser viável a sua utilização”, adianta ao 7MARGENS.

Apesar de ambos os programas contarem com um “Manual do Adulto Dinamizador”, que explicam detalhadamente como é que estes funcionam, a sua leitura não substitui a formação daqueles que pretendam implementá-los, alerta Rute Agulhas. “É preciso refletir com os adultos sobre como potenciar a aprendizagem, como incentivar a reflexão, o que fazer se uma criança der algum sinal de alerta. Porque apesar de serem desenhados numa lógica preventiva, diz-nos a literatura e a experiência que, muitas vezes, é no contexto destas atividades que surgem revelações de abuso. Logo, estes adultos têm de saber o que dizer/fazer e o que não dizer/fazer”, justifica a coordenadora do Grupo Vita e coautora dos dois programas.

As ações de formação terão início já no próximo mês de outubro, e, após as mesmas, os participantes poderão ter acesso a estes programas, sem quaisquer custos associados.

A implementação dos programas será depois monitorizada pelo Grupo Vita durante o ano letivo 2025/2026, com a colaboração de alunos de mestrado do ISCTE, de modo a avaliar o seu impacto e eficácia. O organismo está confiante num resultado positivo, tendo em conta que os projetos haviam já sido “pré-testados com um grupo de crianças (dez crianças dos seis aos nove anos de idade; 32 crianças dos 10 aos 14 anos de idade)”.

Seja como for, para o Grupo Vita não restam dúvidas: o lançamento destes programas “representa um passo determinante num caminho que tem vindo a ser traçado por todos, rumo a uma Igreja mais segura e acolhedora”. E mais do que isso: “A decisão da Igreja Católica em Portugal em apostar em programas preventivos inovadores, a nível nacional e internacional, constitui, ainda, um exemplo para a sociedade civil”, conclui o organismo da CEP.