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Mitos, equívocos e estigmas persistem, ainda, na rotulagem grafitada pela sociedade por cima do alvo da missão da Associação Candeia. Este é um aviso de boas-vindas mal colocamos o pé na Travessa da Luz, n.º2, em Lisboa, onde está plantada a sede da associação cujo foco é apoiar crianças e jovens que vivem em Casas de Acolhimento ou em contextos de vulnerabilidade social.
Um pesado portão castanho serve de escudo e porto de abrigo da Candeia, da Fundação Maria Droste e de outras Instituições Particulares de Solidariedade Social (Ten Academia, Just a Change e Dress for Sucess).
Transposto um enorme muro, somos recebidos num corredor de azulejos, cartão de visita do edifício secular amarelo. Francisca Afonso e Cunha, vogal da direção e coordenadora executiva da Candeia, acolhe o 24notícias e faz de cicerone neste condomínio do sector social.
Descemos uma pequena escadaria, cursamos pelo jardim e uma fonte, subimos novas escadas e mais de 100 metros de distância do portão principal entramos na nova casa desta IPSS, de janelas viradas para a Estrada da Luz. Sentada na sala de reuniões, Francisca Afonso e Cunha desfaz equívocos: “As Casas de Acolhimento não são orfanatos, ao contrário do que se pensa”, atira a vogal da Associação Candeia. Nem tão pouco são casas de correção.
Sem pinças, pega na palavra estigma. Admite a sua existência. “Continua a manifestar-se” sobre quem vive, ou viveu, numa Casa de Acolhimento. Os retratos de vidas fragilizadas colam na cabeça destes jovens a legenda de terem sido vítimas de violência, doméstica, sexual, física ou psicológica, a rejeição por parte das famílias biológicas ou retirados desse núcleo.
Ao raio-x seco e duro, Francisca Cunha acrescenta um outro dado, nem sempre percetível. “Às vezes, há a culpabilização da criança ou jovem. O que é que tu fizeste para ir parar a uma Casa de Acolhimento?”, lança para a discussão.
Alerta para o desconhecimento da sociedade desta realidade. “A Candeia trabalha para dar a conhecer que muitas destas crianças têm famílias presentes e trabalham para regressarem às famílias de origem”, explica, "e que não são diferentes de outras".
Quatro campos de férias e mais de 40 casas acompanhadas
Como lema tem “da relação nasce a luz”. Não tem Casas de Acolhimento, mas acompanha e ajuda quem vive nessas entidades com quem coopera.
As Casas procuram recriar, replicar e reproduzir um ambiente familiar e laços familiares, embora diferindo nos números do “agregado”. A maioria está na Grande Lisboa. Contudo, está em curso um processo de expansão para fora destas fronteiras. O alargamento desta circunferência de atuação a outras regiões de Portugal Continental será revelado mais à frente.
Antes de se pronunciar sobre o novo capítulo da instituição criada em 1991, Francisca Afonso e Cunha prefere falar da “gema” da Associação para a qual trabalham o ano inteiro: campos de férias no verão. Em 1991, o primeiro campo tinha “10 animadores e 16 crianças no campo”, recua. Hoje, a mão social junta “170 voluntários” e “300 crianças e jovens”, dispersos por “200 atividades”, enumera.
“Tivemos quatro campos de férias e acompanhamos mais de 40 casas”, disse ao 24notícias. “Na Casa Cadaval, em Muge, numa semana de acampamento, estilo selvagem, temos várias atividades lúdico-pedagógicas, jogos de equipa e individuais e jogos de aprofundamento espiritual, atividades de reflexão, a que chamamos Bons Dias do Senhor”.
A componente católica “é um dos pilares” da associação, mas a obrigatoriedade de professar a Fé pode ficar à porta. “A Candeia acaba por ser muito tolerante, temos jovens que acompanhamos que não aderem a estas propostas ou são de outras religiões”, reconhece. “Não somos nada taxativos. Nada é obrigatório nestes temas. Se não acreditam, respeitamos”, confessa.
Apesar da tolerância ser lei consuetudinária, não abdicam de um mandamento - “a regra é pedir que respeitem”, manifesto válido para animadores não católicos. Permanece na espiritualidade. “Alguns destes jovens têm algumas revoltas e a Candeia acaba por ser um espaço onde resolvem estes temas”, assegura.
Recorda um episódio ocorrido num dos campos onde esteve: “Foi interessante ver a relação dos mais novos com o padre e o seminarista e como os procuravam para resolver questões que, na cabeça deles, não percebiam”, relembra.
Apoio psicológico, cartão de compras e uma bolsa
Ex-voluntária, Francisca Afonso e Cunha descobriu a verdadeira vocação em 2018, num campo de férias da Candeia, ao qual deu o seu tempo.
“Estudei fisioterapia, mas percebi que não era por aí”, revelação acolhida nesse verão. Fez um Mestrado em Empreendedorismo e Inovação Social e deu novo rumo à sua vida para ajudar a encaminhar a vida de outros.
Na conversa, regressa a temas terrenos. Entre campos de férias e “modelo domingada”, misturados, rapazes e raparigas das Casas de Acolhimento são divididos por faixas etárias. Faíscas (6 aos 9 anos), Fagulhas (10 -14), Fogueiras (15 -17) e Labaredas com mais de 18. O fim de ciclo está nos 25 anos.
Alguns dos voluntários e animadores são recrutados nas faixas dos mais velhos. O convite parte da direção da associação presidida por Miguel Simões Correia. “Acabam por se tornarem voluntários da associação e por se envolverem. Temos um Labareda que já tirou fotografias em eventos e fez o merchandising da Candeia, e uma jovem que esteve num evento de angariação de fundos”, exemplifica.
Para além do acompanhamento e resposta às necessidades de crianças e jovens, a instituição do sector social procura ser um braço das associações quando a estas faltam soluções para responde às carências dos que acolhem.
“Ajudamos no que podemos”, sublinha. Cita exemplos. “Acompanhamento psicológico gratuito para jovens acompanhados”, assinala. “E um cartão presente com o qual podem ir comprar roupa (Dona Ajuda)”, remata Francisca Cunha.
Há dois anos, foi criada uma Bolsa à qual as Casas de Acolhimento podem candidatar-se. “Para lhe dar um exemplo, uma das necessidades eram explicações de matemática para uma jovem”, identificou. Lacuna resolvida.
Casos desafiantes e Amigos para a vida
Atuando maioritariamente no acolhimento residencial, “temos alguns jovens que acompanhamos que já regressaram às famílias de origem ou já foram apadrinhados”, identifica esta responsável da Candeia.
As portas permanecem sempre abertas a quem daqui entrou, saiu e estabeleceu laços com a instituição. “Para não haver quebra nessas relações. continuam connosco porque faz sentido haver essa continuidade”, específica. “A Candeia pretende ser uma fonte de referência”, realça.
“Quando vão para uma Casa já têm tantas quebras, mudam de escola, grupos e ambiente no geral. É muito prejudicial ao desenvolvimento destas crianças, frisa.
Francisca Afonso e Cunha afasta deste universo o termo casos problemáticos. Não diz que não existem. Prefere pintar termo diferente.
“Diria que há casos mais desafiantes”, salienta. Surgem da incapacidade de encontrar uma solução para o problema.
“Muitas vezes, a Casa de Acolhimento não é a resposta adequada e há uma demora grande no sistema na resposta necessária”, continua o raciocínio.
Do filme da perenidade da sua existência, o conservadorismo parece plasmado na Associação Candeia desde o primeiro campo de férias, em 1991.
Só em 2015 deu um (novo) passo. Nasceu o projeto “Amigos para a Vida”. O empreendimento “pretende emparelhar uma família voluntária a título individual, com uma criança ou jovem em acolhimento e levá-la a dar um passeio, ir à praia, comer um gelado ou outro tipo de programas”, descreve.
A relação pode escalar. “Depois, eventualmente, passar natais, dias de anos, dar-lhe alguma rede de suporte, porque muitas vezes não têm”, acrescenta.
Tentáculos sociais expandem-se para Porto, Ourém e Évora
Entre os parêntesis da história desta IPSS, Francisca Afonso e Cunha recoloca a conversa na expansão a outros pontos cardeais.
Até final do ano, os tentáculos sociais avançam para Évora, Porto e Ourém-Fátima. O alargamento a norte, centro e sul surge após uma sinalização.
“Nos últimos três anos tivemos animadores que foram três vezes por ano ao Alentejo e Porto, onde temos casas que acompanhamos. Reparámos que as relações criadas não eram iguais”, em comparação com “Lisboa, onde estamos todos os meses com as crianças e jovens que acompanhamos”.
Feito o diagnóstico, explica o cerzir da nova arquitetura afetiva. Passa por recrutar localmente voluntários para atividade anual. “A Candeia pretende continuidade da relação, e, no fundo, a ideia é estes voluntários darem este acompanhamento próximo e estarem nestes sítios a animar estas crianças e jovens”, conta.
As realidades geográficas e populacionais distintas de Lisboa, não travam as ambições. “Nestes sítios, também há sede de voluntariados organizados”, realça.
25 anos: hora da saída e a falta de rede
Francisca Afonso e Cunha centra-se nas personagens principais e objeto de ação da Candeia. Analisa a saída, muitas vezes labiríntica, dos jovens após os 25 anos, idade limite de permanência nas instalações de acolhimento.
A partir desse momento, a proteção cessa e “já não há sistema que os proteja”, finca. “Ficam sem rede de apoio”, atesta. A via alternativa pós-25 passa por irem “para a casa de um amigo, de quem lhes der abrigo, no bairro, família, uma tia, há de tudo”, acrescenta.
“Há uns que saltam de sítio em sítio, em situações de grande instabilidade, vamos identificando e acompanhando, na medida do que podemos”, assevera.
“Muitos desses jovens, acontece ligarem-nos já em situação de sem-abrigo e de grande vulnerabilidade...”, lamenta a vogal da direção da Candeia.
Este flagelo leva-a colocar no centro de alerta uma problemática desconhecida. “Muitos dos sem-abrigo recorrem também a nós”, reconhece.
Projeto de empregabilidade
34 anos depois da fundação da Candeia, Francisca Afonso e Cunha prossegue com um anúncio de uma novidade estrutural, embora sem adiantar grandes detalhes. Um projeto de empregabilidade, ainda em fase embrionária.
Faz um introito. A entrada no mercado de trabalho “é exigente para qualquer pessoa, uma mudança grande na nossa vida, traz ansiedades, inquietações, inseguranças”, define. E é sinal de “dificuldades (maiores), em especial, para quem teve um percurso passado numa Casa de Acolhimento”, diz.
Para quem a “rejeição” integra a normalidade da vida, sublinha ser natural os anseios dilatarem em quem “não está habituado a lidar com estes padrões e está acostumado ao quase cíclico padrão de falhanço”, contrapõe.
“Há muito pouca compreensão, porque há muito pouco conhecimento das entidades empregadoras”, avisa. Para ultrapassar a questão, a Candeia pretende “sensibilizar” as mesmas e “criar uma rede de suporte”, patenteia.
Esta baseia-se numa relação “mentor e mentorando”. Na entrada do mercado de trabalho, o primeiro, carente de “competências emocionais para lidar com estes desafios”, é acompanhado pelo segundo, Candeia, que as fornece.
“Estes miúdos vão sendo rejeitados em diferentes alturas da vida”
Entre os desafios avistados no horizonte deste filme, o maior está “na sensibilização da sociedade civil”, perspetiva.
“Acho que já está a acordar, mas ainda há um longo caminho a percorrer. É uma realidade que toca a todos e a todos compete olhar, quer seja para sermos famílias de acolhimento ou voluntários em Casas de Acolhimento e ajudarmos as associações que já fazem este trabalho”, desenvolve.
Alerta para uma pequena-grande questão. “O acolhimento não se vê. Há miúdos que estão em escolas e não se sabe. Ninguém sabe. É uma invisibilidade. É uma realidade oculta, invisível”, classifica a responsável da instituição.
“O mais desafiante é que eles vão crescendo, vão desaparecendo e ainda tentamos ir atrás deles. Mas, às vezes, desaparecem sem deixar rasto”, suspira.
Não há espaço para lamentos. “É a vida como é, temos de aceitar a realidade, não conseguimos chegar a todo o lado, mas continuamos a trabalhar para chegar a mais e melhor e a porta está sempre aberta”, antecipa.
“Muitos sentem a necessidade de se distanciarem de toda a gente com quem viveram na fase de acolhimento. Desaparecerem. Alguns anos depois, regressam”, observa.
Os casos de rejeição nas casas, nas famílias de adoção ou de origem é também um triste facto. Ou fado.
“Estes miúdos vão sendo rejeitados em diferentes alturas da vida deles e em vários polos. Estar numa casa, ir para outra resposta, falhar, regressar, deixa marca, um impacto que demora meses, anos a sarar”, finaliza Francisca Afonso e Cunha, da Associação Candeia.
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