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As represálias começaram depois de um grupo de alunos do 2.º ano do curso "Nicolau Coelho" ter denunciado no "Questionário Sobre a Qualidade do Ensino" (2024/25) os "comportamentos inadequados" do professor e regente da cadeira Mar e Atmosfera I.
O questionário disponibilizado pela escola é individual e anónimo, mas nem isso evitou a abertura de um processo disciplinar e a acusação de 41 cadetes — embora apenas um pequeno número admita ter feito a denúncia. Acabaram todos punidos com "pena escolar de dez dias de proibição de saída", um despacho assinado pelo comandante da Escola Naval, Carlos Osvaldo Rodrigues Campos, no dia 1 de julho deste ano.
Os alunos em causa não só perderam dias de férias como ficaram presos a bordo do navio-escola NRP Sagres, na chamada "viagem de instrução" — que serve para complementar a formação teórica com treino prático —, realizada à Dinamarca, Alemanha e Países Baixos.
Isto, apesar de a lei ser clara: "O denunciante e as testemunhas por si indicadas não podem ser sancionados disciplinarmente". O Código de Boa Conduta para a Prevenção e Combate ao Assédio na Marinha e na Autoridade Marítima Nacional também não deixa margem para dúvidas: "O conhecimento de qualquer situação de violação das disposições constantes do presente Código de Conduta, seja por meio de participação, queixa ou outro, dá lugar à abertura de procedimento disciplinar".
Num esclarecimento pedido ao ministro da Defesa Nacional, que não estava a par do processo, o gabinete diz que "a Marinha protege os denunciantes nos termos da lei, não aplicando qualquer punição por atos de denúncia, exceto se provado dolo. Neste caso em concreto, a responsabilização ocorreu, uma vez que se apurou a existência de alegações falsas".
Se o professor em causa foi alvo de investigação, ninguém sabe, porque nenhum dos alunos ou representante legal teve acesso a qualquer documento do processo, apesar de o Código de Boa Conduta prever a "natureza sigilosa" apenas "até à notificação da acusação", que aconteceu há meses.
A Marinha diz que não recebeu "qualquer solicitação para aceder a qualquer processo por parte daqueles alunos", mas terá sido o comandante do Corpo de Alunos o primeiro a dizer aos cadetes para nem ousarem apresentar esse pedido.
Recorde-se que a lei dá à instituição sete dias para notificar o denunciante da recepção da denúncia e três meses para responder a uma denúncia de assédio, com possibilidade de extensão do prazo até seis meses em casos de maior complexidade.
No total, 41 cadetes foram acusados e punidos por, em "coparticipação", "desrespeitarem o docente ao associar de forma ligeira atos involuntários e inconscientes a comportamentos inadequados".
Se nem todos os alunos dão a cara com medo de retaliações, outros garantem ter agido com justiça e não receiam enfrentar os tribunais. Aquilo que o comandante da Escola Naval define como "atos involuntários e inconscientes" do professor, é o que os cadetes descrevem como "movimentos feitos com a língua, aulas inteiras dadas colado à secretária de cadetes femininas, ou as calças sistematicamente sujas de giz na zona da braguilha".
Segundo a legislação em vigor, entende-se por assédio "o comportamento indesejado, praticado no próprio emprego, trabalho ou formação profissional, com o objetivo ou o efeito de perturbar ou constranger a pessoa, afetar a sua dignidade, ou de lhe criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador".
Uma "barbaridade civilizacional", dizem advogados
Para os juristas contactados pelo 24notícias, "o processo enferma de diversas irregularidades desde o início" e é uma "barbaridade civilizacional" com contornos "medievais". "A primeira é não ter sido dito aos alunos que tinham direito de defesa", ou seja, "a não prestar declarações e a serem representados por um advogado". Só este facto pode ser causa da nulidade do processo, garantem.
Há bem pouco tempo, a Marinha teve essa experiência com o caso NRP Mondego, quando o Supremo Tribunal Administrativo declarou ilícitas as sanções aplicadas a 11 dos 13 militares que em março de 2023 se recusaram a embarcar no Navio da República Portuguesa Mondego por questões de segurança. De acordo com o STA, o processo continha falhas que resultaram na "nulidade da decisão por vícios do procedimento", lê-se no acórdão.
Outra irregularidade no caso dos alunos castigados por denunciar o professor, e que também pode ser causa de nulidade do processo, é o facto de a Escola Naval ter acusado todos os cadetes sem saber quem escreveu o quê: "Cada um só pode responder pelos seus atos, não se pode acusar e condenar todos por algo que não se sabe quem fez", afirmam os advogados.
Os cadetes assinaram a nota de culpa por ordem superior do comandante do Corpo de Alunos, ou seja, foram coagidos a fazê-lo, temendo represálias mais fortes. O documento, a que o 24notícias teve acesso, nem sequer menciona de forma clara e objetiva, como devia, os comentários "não fundamentados, e por isso insensatos, exagerados e imponderados" puníveis disciplinarmente.
A Escola Naval entende que os cadetes foram "cobardes" e nunca confrontaram o professor diretamente, como não manifestaram qualquer desconforto através da estrutura de comando do Corpo de Alunos, nomeadamente através do capelão, da psicóloga ou do comandante da companhia.
Psicólogo clínico, professor na Universidade Europeia e diretor da Rumo, um dos parceiros do projeto Paola, que criou um Observatório de Whistleblowing na Academia, Francisco Valente Gonçalves explica que anonimato está longe de ser cobardia. "Aquilo que o anonimato pretende é ser uma ferramenta de prevenção contra o sentimento de culpa, de medo e de vergonha".
No fundo, o anonimato "dá espaço para ver o que vai acontecer. Mais tarde ou mais cedo, os alunos podem ter de se identificar, mas aí o sistema está pronto para os proteger", diz.
Ricardo Barroso, psicólogo forense e professor da Faculdade de Psicologia da Universidade do Porto, reforça esta posição: "O anonimato não pode ser visto como um privilégio, é uma ferramenta funcional. Permite que os problemas sejam reportados sem medo de retaliação, protege denunciantes vulneráveis, e pode justificar-se por razões muito concretas. As organizações precisam de saber quando alguma coisa está errada. Mas nestes contextos, denunciar pode implicar custos pessoais elevados, e por isso a informação pode não chegar facilmente aos decisores. O anonimato reduz esse custo, tornando mais provável que os problemas do quotidiano da entidade venham à superfície".
O psicólogo forense, que desconhece o caso em concreto (e a quem ocultámos até o nome da instituição), vai mais longe e diz que "denunciar é um ato de coragem, não de cobardia. Em qualquer organização os denunciantes merecem ser ouvidos, protegidos e apoiados. Chamar “cobardes” a denunciantes não é apenas inapropriado, é mesmo contraproducente, potencialmente ilegal, e demonstra incompreensão profunda sobre dinâmicas de poder. Na verdade, quando essas coisas acontecem, é já um comportamento de retaliação que viola proteções legais e silencia futuras denúncias. Os denunciantes têm direito a escolher o canal de denúncia, que pode ser a única via onde se sentem seguros. Se o comportamento é intencional, manipulativo, ou se a pessoa nega/minimiza, a confrontação direta é inútil e pode até piorar (subsistir retaliação, ou promover o que denominamos de gaslighting: "Estás a imaginar coisas"; "Isso é um crime de difamação".
Também sem conhecer a instituição em causa, Francisco Valente Gonçalves explica que "um professor pode, de facto, ter determinados comportamentos sem ter a consciência de que são desadequados", mas salienta que, nesse caso, "a escola tem o dever de proteger professor e alunos, ver que mecanismos tem ao seu dispor para salvaguardar a situação de ambos".
E não deixa de reconhecer que "é no mínimo curioso que o professor em causa tenha sido afastado sem qualquer explicação". "A ideia que dá é que a escola não está a proteger nem o professor nem os alunos, mas apenas a ver como consegue sair da situação sem dar a cara", afirma o psicólogo clínico.
Ricardo Barroso lembra que "legalmente, retaliar contra o denunciante é crime. Mas, na prática, acontece frequentemente. As instituições têm obrigação de monitorizar ativamente e sancionar a eventual retaliação, não esperar que o denunciante se defenda sozinho. Quando uma instituição culpabiliza os denunciantes, está de algum modo a validar o medo que impediu outros de falar e, praticamente, a garantir que eventuais problemas futuros não serão reportados".
Quando se trata de alunos contra professores, a tendência é achar que os denunciantes estão a exagerar, são uns bazófias e querem é vingar-se. O psicólogo forense confirma que "há essa tendência, e é um dos problemas mais graves na gestão de denúncias em qualquer organização. Chama-se a isso o viés de credibilidade hierárquica, ou seja, dá-se mais peso e confiança às opiniões de pessoas em posições de maior autoridade, muitas vezes sem questionar, presumindo que quem tem mais poder/estatuto diz a verdade, e quem tem menos está a exagerar ou manipular".
"Este viés é estruturalmente injusto e cientificamente infundado", explica o psicólogo forense. "Os estudos sobre falsas denúncias (em contexto de assédio, má conduta profissional ou académica) mostram consistentemente que estas representam uma minoria (2-8%). Ou seja, 92-98% das denúncias têm fundamento. Assim, partir do pressuposto que os denunciantes estão a inventar é, estatisticamente, inverter probabilidades. É importante salientar que as investigações sérias não se baseiam apenas em testemunhos verbais. Há múltiplas fontes de evidência, há triangulação, poderá haver evidências documentais, procurar padrões que poderão estar (ou não) presentes há vários anos e em diferentes contextos da organização", conclui.
Expulsos e condenados a pagar 40 mil euros
O professor e regente da cadeira Mar e Atmosfera, capitão de mar-e-guerra na reserva, deixou de dar aulas na Escola Naval este ano (2025/26) e regressou ao Instituto Hidrográfico sem qualquer explicação. O 24notícias tentou contactá-lo por diversas formas e enviou uma série de perguntas, mas também ficou sem respostas.
O Chefe do Estado-Maior da Armada, Almirante Jorge Manuel Nobre de Sousa, adianta: "Quanto às averiguações sobre o docente, neste processo concluiu-se, com base também nas declarações dos alunos, que este não teve qualquer comportamento suscetível de procedimento disciplinar".
Não esclarece, no entanto, por que razão o professor deixou de dar aulas, nem tão pouco o que aconteceu às declarações de alunos que garantem estar a falar verdade e ter consciência da gravidade dos factos declarados. Isto, muito embora não tenham tido nunca acesso à certidão ou consulta do processo de averiguações e do processo disciplinar, como já mencionado.
"A Escola Naval atua em conformidade com a lei, valorizando, de forma imparcial, todos os testemunhos colhidos nos processos de averiguações ou disciplinares que são abertos. [...] A conclusão de inexistência de comportamento disciplinarmente relevante resultou da análise cruzada de vários testemunhos, e não apenas dos envolvidos diretamente", acrescenta o CEMA.
A pena de detenção de dez dias para 41 alunos não foi a única punição. Do grupo, nove cadetes estão obrigados a repetir o ano e sete receberam despacho de expulsão e estão condenados a pagar indemnizações à Escola Naval.
O 24notícias sabe que alguns dos cadetes expulsos terminaram o 1.º ano e o 2.º ano com médias superiores a 14 valores. A expulsão, no entanto, foi ditada por "falta de aproveitamento escolar". A manchar o currículo, as más notas atribuídas pelo professor da cadeira Mar e Atmosfera I — alguns cadetes com 8 e 9 valores, sem direito a reavaliação de prova por um júri independente e sem recurso a prova oral.
Isto, apesar da frequência da disciplina em causa ter decorrido em circunstâncias fora do normal, uma vez que todos os cadetes do 2.º ano (com excepção da Licenciatura em Tecnologias Militares Navais e Médicos Navais) foram punidos com pena de detenção no processo disciplinar devido às denúncias efetuadas contra o professor. Que é ao mesmo tempo presidente do júri que reviu exames de alunos que reprovaram e foram expulsos e a quem nega recurso à prova oral, uma oportunidade prevista no Regulamento de Avaliação dos Discentes dos Ciclos de Estudos da Escola Naval. Ninguém, incluindo o CEMA, foi capaz de comentar a parcialidade das decisões.
Também ninguém explica que tenham chumbado à unidade Mar e Atmosfera I um total de 16 cadetes e que alunos de nota 5 sejam agora, com o novo professor, alunos de 15 valores ou mais valores.
Um dos argumentos do comandante Carlos Osvaldo Rodrigues Campos para punir os cadetes a propósito da denúncia é a "conspiração", palavra utilizada entre aspas, contra o professor "como causa direta e óbvia dos resultados obtidos na UC Mar e Atmosfera I". O que fica por responder é, sendo o questionário anónimo, como sabe o comandante que quem escreveu a denúncia foram alunos com más notas à cadeira? É que também há cadetes com notas positivas.
Apesar dos recursos hierárquicos para o CEMA a pedir justiça — até ao momento sem resposta —, que por lei suspendem as medidas aplicadas, os alunos com decisão de expulsão estão impedidos de assistir às aulas desde o início do ano letivo e já perderam quase um semestre. E os alunos que chumbaram à cadeira estão a repetir o 2.º ano.
De acordo com a lei, um ato suspensivo tem exatamente como objetivo não causar prejuízo enquanto uma ação judicial decorre até à decisão final. No caso, se essa decisão for favorável ao aluno ou aos alunos, eles já estão irremediavelmente prejudicados (por não assistirem às aulas).
O Ministério da Defesa admite que "existem alunos sem integração nas atividades letivas devido a procedimentos administrativos em curso, nomeadamente reclamações e recursos" e adianta que "a Escola Naval está a tomar medidas para retomar o normal funcionamento letivo".
Quanto à exigência de indemnização por falta de aproveitamento escolar, diz o CEMA que "o regime é do conhecimento dos alunos antes da formalização do vínculo com a instituição". No entanto, sabemos que muitos o ignoram, tal como desconhecem o facto peculiar de que reprovar a uma cadeira significa que o aluno tem de repetir todas as unidades curriculares desse ano, mesmo as que cumpriu com êxito — por muito alta que seja a sua média global.
Juristas contactados pelo 24notícias duvidam da constitucionalidade deste sistema, que não existe em qualquer outra universidade ou instituto politécnico, público ou privado, nem mesmo da Academia Militar ou na Academia da Força Aérea. A A3ES, Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior, não respondeu às nossas perguntas até à data de publicação da notícia.
Voltando ao pedido de indemnização de 40 mil euros — e os alunos chegaram a ser advertidos para não saírem da Escola Naval durante várias semanas até o valor estar liquidado —, o CEMA informa que "se encontra em curso um processo de revisão dos valores de indemnização, com o objetivo de encontrar a melhor proporcionalidade possível entre o custo efetivo suportado pelo Estado e o valor de ressarcimento a aplicar aos alunos", que não dispõem desta verba.
De acordo com o CEMA, "a Escola Naval é uma instituição de Ensino Superior Militar que funciona em regime de internato, com características distintas do Ensino Superior Civil, onde as instituições apenas asseguram a componente formativa".
"O regime e o modelo de ensino ministrado, altamente diferenciado e com forte componente militar e prática, implicam que a Marinha assegure aos alunos um conjunto de benefícios e de condições que a obrigam a suportar encargos significativos, entre os quais o pagamento de vencimento durante a frequência do curso; alojamento e condições de internato; alimentação completa; formação académica e militar ao longo do curso; fardamento adequado às atividades académicas e militares; embarques e estágios práticos; assistência médica e medicamentosa", acrescenta.
Sobre este assunto, o Ministério da Defesa acrescenta que "a Marinha atua de boa-fé e, certamente, encontrará em curto prazo e envolvendo os alunos, soluções justas e equilibradas para cada caso".
Marinha com falta de pessoal
A Marinha Portuguesa enfrenta um problema de falta de pessoal, especialmente gente qualificada. Em 2023, o Chefe do Estado-Maior da Armada indicou que o organismo tinha perto de 1.500 efetivos a menos do que os cerca de 8.000 de que deveria dispor, sobretudo devido à dificuldade de recrutamento e à grande pressão psicológica imposta aos militares, que têm de trabalhar mais para compensar os postos vazios.
Já este ano, o aviso foi repetido por Nobre de Sousa: "A Marinha carece de pessoal qualificado e nós temos tido gente a optar por sair, muito porque o mercado funciona e a economia tem dado opções de trabalho", adiantou. Em menos de dez anos, a Marinha perdeu perto de 1.400 militares — um levantamento de 2023 diz que em 12 anos perdeu cerca de três mil efetivos.
Embora não existam números oficiais, muitos dos que optam pela Escola Naval acabam por desistir. As praxes e o bullying a que são sujeitos alguns cadetes podem contribuir para o afastamento de potenciais interessados na carreira. Os casos polémicos têm vindo a suceder-se pelo menos desde 2018 e são várias as denúncias de práticas abusivas.
A última notícia dá conta de um cadete internado com uma infecção na mão devido a "flexões feitas com as costas das mãos". A Marinha nega que ferimento tenha resultado de uma praxe, mas a denúncia diz que houve risco de amputação de dedos. Certo é que a Polícia Judiciária Militar entrou na Escola Naval para investigar o assunto.
O Ministério da Defesa adiantou ao 24notícias que "em caso de “praxes inconcebíveis, ou comportamentos incorretos, os alunos podem apresentar uma denúncia interna, através de um canal que a Marinha criou em 2022, designado por Canal de Denúncia da Marinha, com garantia de confidencialidade da identidade ou o anonimato dos denunciantes e a confidencialidade da identidade de terceiros mencionados na denúncia, impedindo o acesso à informação por pessoas não autorizadas".
De resto, ficámos ainda a saber que a Escola Naval terá em breve um novo comandante: "O comandante da Escola Naval em funções será substituído pelo Comodoro Luís Miguel Cardoso Pércio Bessa Pacheco".
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