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31 de julho de 2020 foi um dos dias mais trágicos para os comboios em Portugal nos últimos anos. Perto da estação de Soure, um comboio Alfa Pendular (da CP) chocou com um veículo de manutenção de via (da Infraestruturas de Portugal – IP) a 155 km/h. O acidente vitimou dois funcionários da gestora da rede ferroviária nacional e causou três feridos graves e 41 feridos ligeiros. Em outubro de 2021, o relatório de investigação sinalizou a falha no cumprimento de uma dezena de recomendações da parte da IP, que contestou o documento elaborado pelo Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com aeronaves e acidentes ferroviários (GPIAAF).
Cinco anos após o acidente, duas empresas públicas travam uma batalha judicial por causa de eventuais indemnizações: CP (do lado da roda) contra IP (do lado do carril), num “duelo” que também envolve a seguradora Fidelidade. O processo foi tornado público em janeiro de 2025 pelo Diário de Notícias. O 24notícias, no entanto, consultou todas as peças do processo, que decorre no Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra.
Troca de cartas
Antes do processo judicial, a CP tentou um acordo pré-judicial com a IP e a Fidelidade, empresa contratada para o seguro de responsabilidade civil da gestora de infraestruturas. A IP foi a primeira destinatária, com uma carta enviada a 19 de dezembro de 2022: a dona do Alfa Pendular reclamou prejuízos de 16,518 milhões de euros causados pelo acidente, “não sendo questionável a responsabilidade inequívoca da Infraestruturas de Portugal”, escreveu o presidente da CP, Pedro Moreira, ao presidente da IP, Miguel Cruz.
O valor da indemnização foi calculado a partir da soma do orçamento de reparação do comboio, de 14,5 milhões de euros; dos 1,876 milhões de euros de custos de imobilização do material circulante; dos mais de 85 mil euros de impactos com os atrasos e cancelamentos de comboios, além das faturas de táxis e autocarros de substituição; mais de 41,5 mil euros em indemnizações aos feridos; mais de 11,2 mil euros em despesas hospitalares; e ainda mais de 3,3 mil euros de custos de assistência e de 1,58 mil euros a passageiros afetados em outros comboios. A primeira carta da CP foi enviada um mês depois de receber o orçamento da Alstom, dona da antiga Fiat Ferroviária, fabricante das automotoras do Alfa Pendular no final da década de 1990
A primeira carta ficou sem resposta. O segundo contacto foi em 16 de março de 2023. Pedro Moreira sinalizou os “elevados prejuízos para a CP decorrentes do acidente” e preparou o caminho para a próxima etapa: “o tempo já decorrido desde o acidente, sem termos uma resposta da vossa parte, coloca os maiores constrangimentos a esta empresa, não se nos afigurando curial recorrer a outras diligências, nomeadamente preparar o recurso à via judicial.”
A resposta da IP veio uma semana depois, “não aceitando nem se conformando com a afirmação – infundada – sobre a pretensa responsabilidade inequívoca desta empresa no referido acidente”. A 23 de março, Miguel Cruz alegou que “a tentativa de fundar qualquer responsabilidade no teor do relatório do GPIAAF é desadequada e extravasa manifestamente o âmbito do documento”. O líder da IP citou o relatório independente e argumentou que as investigações servem sobretudo para “prevenção de futuros acidentes e mitigação das suas consequências”. Na mesma carta, Miguel Cruz reforçou que a IP “adotou e adota uma postura de cumprimento rigoroso e escrupuloso de todas as normas de segurança e das condições”.
Mês e meio depois, a CP contactou a Fidelidade, através de um advogado, preparando o recurso à justiça. Perante a ausência de resposta da seguradora ou de uma proposta para pagamento de danos, o causídico foi “instruído para avançar com a ação judicial, para ressarcimento dos danos em causa”. A transportadora exigiu à Fidelidade o pagamento de 16,5 milhões de euros no prazo de 15 dias, segundo missiva enviada em 8 de maio de 2023. Era o último recurso antes de o processo seguir para os tribunais.
A Fidelidade respondeu a23 de maio. Manifestou interesse em resolver o processo sem ir para a justiça e designou peritos para contactarem a CP e apurarem “com todo o rigor necessário” os custos do acidente. A seguradora alegou que a documentação enviada pela CP à IP era “manifestamente insuficiente” para orçamentar as indemnizações e que, “em alguns casos”, não foi enviada informação para sustentar os montantes reclamados. Nada aconteceu e seguiu-se a via judicial.
CP contra IP (e a Fidelidade)
Foi a 18 de julho de 2023 que a CP entrou com uma ação administrativa contra a IP e a Fidelidade. A transportadora passou a reclamar 18,6 milhões de euros junto das outras duas entidades, mais 2,1 milhões do que no final de 2022. A diferença de verba deveu-se ao aumento dos custos de imobilização do comboio (passaram a constar as contas de 2023) e mais de 420 mil euros em juros de mora.
Na petição inicial, a CP reforçou a responsabilidade da IP no acidente, com base no relatório do GPIAAF. “Muitos dos fatores causais e contributivos determinados na investigação são fatores sistémicos, e que, na sua maioria, estavam identificados em 2018 num seu relatório que abordava as ultrapassagens indevidas de sinais fechados por veículos do gestor da infraestrutura, mas que a IP ignorou”, alegou a dona do Alfa Pendular. Para a CP, as condições que “propiciavam” a ultrapassagem indevida do sinal vermelho por veículos da IP “permaneciam latentes”. Ou seja, “o risco de acidente mantinha-se presente e era conhecido e previsível”. A empresa acusou ainda a IP de continuar a “assentar exclusivamente sobre a confiança numa atuação infalível das tripulações” dos veículos especiais o “controlo do risco” da circulação dos seus veículos ferroviários.
A resposta da IP focou-se no relatório da investigação. Para a empresa, o documento contém “meras conjeturas especulativas” e “opiniões subjetivas”. O relatório, para os advogados da IP, deveria afirmar que “não foi apurada a razão pela qual os tripulantes agiram como agiram, nem foram identificados fatores sistémicos que pudessem ter determinado a sua atuação concreta, no local do acidente”. Considerou ainda que o comboio ficou “muito longe” de uma inutilização total das suas carruagens e recusou o valor orçamentado.
A Fidelidade acusou a CP de não colaborar com os peritos e também contestou os cálculos da reparação da unidade do Alfa Pendular. A seguradora entendeu que os documentos não têm autoria. A empresa recusa ainda acionar a apólice “caso fique demonstrado que existiu um desrespeito consciente da IP da necessidade de adotar todas as diligências necessárias de forma a evitar o acidente em causa e, consequentemente, os danos daí decorrentes”.
Sem data para o desfecho, resta saber se a CP vai receber alguma indemnização e se, nesse caso, a fatura será paga apenas pela IP e/ou pela Fidelidade. Ou seja, se o Estado pagará ao Estado ou se também haverá uma seguradora privada a prestar contas.
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