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Escala em Las Palmas

Nas rotas dos velejadores de cruzeiro, há vários pontos que ao longo dos anos se tornaram escalas quase obrigatórias, como Gibraltar, a Cidade do Cabo, o Panamá ou as ilhas Canárias e o seu maior porto, Las Palmas.

Pela geografia que os colocou em autênticos cruzamentos do mar ou pelas características que os tornaram «estações de serviço» nas grandes rotas oceânicas, estes portos são conhecidos de todos os navegadores de longo curso. Alguns foram perdendo relevância como escalas comerciais desde o fim da Idade da Vela, mas outros mantiveram-na com a vela de recreio: transformaram parte da sua economia de serviço à navegação comercial em economia de serviço à navegação de recreio, que não pára de crescer, pelo menos desde os anos 60 do século passado.

Todos os anos, milhares de velejadores fazem-se ao mar em iates de cruzeiro de vários tamanhos, largando da Europa do Norte em direcção ao sul, em busca de sol e calor, de uma ilusão, de uma ideia de liberdade, do contacto com novas terras e gentes. Navegam por rotas bem batidas e com redes de segurança impensáveis para os pioneiros, para aqueles que nos anos 50 e 60 foram dos primeiros a partir por prazer, em vez de o fazerem por necessidade.

Bem amparada pela tecnologia e possibilitada por um sistema económico criticado acerbamente por muitos dos que nela participam, uma frota enorme deixa todos os anos os portos da Europa pela Primavera, com vários tipos de planos, mas com percursos e projectos muito semelhantes, que obedecem geralmente a duas categorias principais: a volta do Atlântico Norte em cerca de 12 meses ou a circum-navegação do globo em 36. Com a revolução das comunicações, desde a Internet aos voos baratos; com o aumento do poder de compra e do rendimento disponível, e com a liberalização e flexibilização dos mercados de trabalho, estas viagens passaram a poder ser divididas em secções ou etapas: periodicamente, num ponto estratégico, o velejador deixa o barco e volta ao país de origem para retomar a sua ocupação profissional, quando tem uma, para depois, no fim de um determinado período de tempo, regressar e prosseguir a sua viagem ou cruzeiro.

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Os percursos são obviamente condicionados pelo regime dos ventos e correntes dominantes, por exemplo circum-navegar o globo de leste para oeste é relativamente simples, na medida em que é possível fazê-lo sempre com ventos favoráveis, ao passo que fazê-lo no sentido oposto é exigente e difícil, implica navegar milhares de milhas contra esses mesmos ventos dominantes, é a razão pela qual esse sentido de navegação só é escolhido pelos que têm algo a provar, a si próprios ou ao mundo em geral. Apesar de boa parte dos navegadores modernos se recusar admiti-lo, é um facto que já está tudo feito e inventado. Na geografia da navegação marítima, já não há descoberta nenhuma a fazer, não há nenhum canto onde um barco possa navegar que não tenha sido já singrado e cartografado, pelo que a busca da diferenciação, originalidade e fama se limita a bater records mais ou menos estúpidos, mais ou menos perigosos, mais ou menos entusiasmantes para o grande número de pessoas que vive as viagens marítimas vicariamente.

No nosso tempo, aqueles que procuram atenção e público para as suas navegações dividem-se em três grupos: os atletas profissionais, que se esforçam por ir sempre mais rápido; as pessoas que buscam records bizarros, como a «embarcação mais pequena a atravessar o Atlântico»; e recentemente, chegados com as redes sociais, os que fazem coisas absolutamente banais, mas que as conseguem envolver numa grande e dramática produção audiovisual e com isso atraem público, os chamados «seguidores». Esta última é a modalidade mais fácil e mais popular e atrai cada vez mais praticantes, que se multiplicam e repetem uns aos outros. Tenho de fazer uma ressalva: alguns deles conseguem partilhar conhecimento válido e são, de certa maneira, os herdeiros dos navegadores de antigamente, que depois de fazerem uma grande viagem escreviam um livro e assim inspiravam e instruíam futuros navegadores. Os tempos modernos também nos trouxeram uma grande diferença no campo da literatura de viagens, seja por terra ou por mar, quer tenha um estilo mais poético ou mais pedagógico: dantes fazia-se uma viagem e depois, se ela tivesse dado azo a isso, escrevia-se. Hoje, empreendem-se viagens com o objectivo de escrever sobre elas.

Partindo da Europa, seja para um percurso atlântico, seja para uma circum-navegação de leste para oeste, a primeira «grande escala» é nas ilhas Canárias. Chamo-lhe grande escala não necessariamente pela duração, mas porque marca uma divisão entre grandes partes da rota: é o ponto de partida para a travessia Atlântica propriamente dita, encontra-se lá tudo o que é necessário para a preparar e é igualmente um ponto de não retorno. Apesar de já ter sido feito milhares de vezes por muitos, incluindo eu próprio, navegar das Canárias para a Europa continental é ir contra os ventos e as corrente dominantes, é uma navegação lenta, desconfortável e exigente, pelo que uma vez chegados às Canárias os navegadores de recreio têm duas grandes opções: ou se lançam ao oceano aberto ou abandonam a viagem.

Há hesitações sem fim das pessoas que chegam ali e cuja experiência passada para lá chegar as faz pensar que, afinal, talvez aquilo não seja mesmo para elas; ou então sentem que assim é, mas têm dificuldade em admiti-lo, passando a inventar várias desculpas e razões para adiar a partida. Muitos até dizem: «Aqui já é longe e soalheiro o suficiente, fico por aqui.» Independentemente dos planos que traziam do norte, racionalizam a desistência. Uma consequência desta posição de «ponto de não retorno» é Las Palmas ser um óptimo sítio para comprar um veleiro usado, quando o navegador desiste e decide reduzir as perdas, vendendo o barco pelo que conseguir na hora. Eu chamo-lhe o Mercado dos Sonhos Desfeitos: encontram-se óptimos negócios em portos assim, desde que a hesitação não tenha durado tanto tempo que tenha deixado o barco degradar-se demasiado ou que o vende- dor não tenha acumulado demasiadas dívidas.

Mas as desistências e abandonos são histórias minoritárias, a grande maioria parte mesmo. O enorme Puerto de La Luz e o seu grande Muelle Deportivo, a marina que serve Las Palmas, é uma colmeia de actividade quando começa o Outono e vão chegando do norte as centenas de veleiros que se aventuram todos os anos na travessia do Atlântico.

Aportei lá em Novembro de 1997, foi a primeira de dezenas de visitas que fiz ao longo dos anos. Tinha partido de Portugal havia poucas semanas, na minha primeira viagem marítima, já tínhamos feito duas escalas em Marrocos, onde havíamos chegado pela graça de Deus, e depois prosseguimos com sucesso e muito menos sobressalto a curtíssima travessia entre a magnífica Essaouira e a Gran Canária. A nossa experiência era ínfima e o conhecimento que tínhamos era o correspondente, mas a ignorância sempre foi uma bênção e a energia da juventude sempre foi o principal combustível da aventura. Eu e o meu companheiro Marco, ambos com 24 anos e amigos do tempo da escola, tínhamos feito sociedade num velho e pequeno veleiro de aço e assim nos lançámos ao mar, queríamos ver o mundo.

A primeira coisa que vimos quando amarrámos o barco e pisámos o pontão foi um cadáver, um pobre diabo que tinha escorregado entre o casco do seu barco e o pontão; ao tentar protegê-lo nos balanços da forte ondulação causada por um ferry, tinha morrido esmagado. Esse pontão era provisório e temporário, colocado ali para dar resposta ao grande fluxo de veleiros que chegava com a ARC, a Atlantic Rally for Cruisers, uma organização que proporciona a quem se inscreve nela uma travessia do Atlântico em companhia, ou seja, em contacto diário com uma frota e com muitos eventos sociais nas escalas.

Livro: "Sempre Mais Além"

Autor: Jorge Ventura

Editora: Guerra e Paz

Data de lançamento: julho de 2025

Preço: € 16,00

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Não entendia então e ainda não entendo bem hoje o que leva uma pessoa a pagar, e fortemente, por isso, mas a cada um o seu gosto. Se há pessoas que pagam para passar uma semana a viajar com um grupo de desconhecidos e sujeitas às orientações de outro desconhecido, é normal que também haja quem pague para atravessar o Atlântico em grupo. Prova disso é o crescente sucesso da organização, que até já se multiplicou e alargou a outros percursos. Responde a dois anseios humanos básicos: segurança e companhia. Nos meios profissionais mais maldosos, dá-se à ARC a alcunha de Atlantic Rally for Cowards e julga-se que é a enésima maneira de retirar o pouco risco e incerteza que ainda restam na travessia e torná-la uma aventura asséptica e garantida, com data de começo e fim, auxílio sempre à mão e posts regulares numa Internet sempre ligada.

Ainda nem tinham coberto o cadáver quando amarrámos o barco no pontão provisório, foi-se juntando um pequeno grupo e também chegou uma repórter da Yachting World, grande revista da especialidade. Estava num veleiro ali próximo, foi informada do acidente e chegou ao pontão quase ao mesmo tempo que os socorristas. Perguntou-me se eu sabia o que tinha acontecido, eu disse que tinha acabado de chegar e visto aquilo assim, e aproveitei logo para dizer que íamos dar a volta ao mundo. Ela olhou para mim com um sorriso que dizia, «claro que vais, querido», mas disse «ah, sim?» e seguiu caminho. Só mais tarde, ao ler a revista, a reconheci como repórter e só vários anos mais tarde apreciei o modo como ela viu logo, com um curto olhar sobre nós e o nosso barquito, que éramos dois garotos que não sabiam nada e dificilmente chegariam às Caraíbas, quanto mais.

Respirámos fundo o ar quente e seco da ilha, trocámos os sapatos pelos chinelos, as calças pelos calções e, pela primeira vez, tivemos uma sensação real de distância, de que já tínhamos chegado a algum lado, que já estávamos longe.Trocámos escudos por pesetas e telefonámos para casa em cabines telefónicas – pensar nisso agora faz-me sentir ainda mais velho. Ficámos quase dez dias em Las Palmas a arrumar, limpar, preparar e abastecer o barco o melhor que sabíamos e podíamos, a fazer peque- nos melhoramentos que nos tinham ocorrido pelo caminho e a explorar a cidade tanto quanto o nosso orçamento magro nos permitia. O plano não era partir dali para a travessia, mas sim descer mais cerca de 900 milhas, até Cabo Verde, e daí atravessar. Isso encurtava a etapa mais longa da travessia, garantia mais certeza de encontrar os ventos alísios bem estabelecidos e, além do mais, ia permitir-nos realizar um sonho, ver a África onde se falava português.

Sendo um cruzamento dos mares e uma base para travessias oceânicas, Las Palmas atrai não só os velejadores, como também aqueles que pretendem embarcar como tripulantes, é um destino de eleição para jovens e menos jovens que têm o sonho de fazer uma travessia, mas não têm barco. Há muitas possibilidades de embarque, muitos veleiros precisam de tripulantes quer por desistência de uns, quer por outros se aperceberem de que, afinal, faz falta ou seria útil ter a bordo uma pessoa extra.

Os quadros de avisos da marina (hoje substituídos, em grande medida, por grupos nas redes sociais) enchiam-se de pequenos cartazes a anunciar a disponibilidade e vontade de embarcar; e, pelos pontões, circulavam sempre estes candidatos a marinheiros, a meter conversa e a saber das possibilidades. Ao vermos aquilo tudo, pensámos que não seria má ideia. Até tínhamos espaço, mais um tripulante permitiria dividir os quartos de vigia e as tarefas de bordo, e, factor fundamental para nós, a maioria destes candidatos oferecia uma contribuição para as finanças de bordo, 10 dólares por dia ou perto disso. Decidimos então aumentar a tripulação e começou o processo de selecção, em pouco tempo ficámos reduzidos a dois candidatos, que até eram amigos entre si pelo tempo em que já tinham passado por ali à procura de um barco: o Filippo, italiano, e o Maurício, brasileiro.

Nos dias seguintes, conhecemo-nos melhor e demo-nos muito bem, éramos moços da mesma idade e tínhamos a imaginação ocupada pela mesma coisa: a vontade de atravessar o oceano. Quando chegou a altura de fazer a selecção final e escolher um, porque não podíamos levar os dois, nem eu nem o Marco tínhamos um favorito, não conseguíamos escolher e estávamos atrapalhados. Chamámo-los a bordo ao mesmo tempo, sentámo-nos à mesa e eu disse: «O que se passa é que não conseguimos escolher entre os dois, por isso vamos deixar que a sorte decida.» Peguei num baralho de cartas e espalhei-as sobre a mesa. «Quem tirar a carta mais alta vem connosco.» Eles entreolharam-se com um sorriso de espanto e incredulidade, olharam para nós como que a confirmar que não era brincadeira, o Filippo tirou um três de copas, o Maurício uma dama de paus e com isso ganhou passagem num veleiro para as Caraíbas.

Voltei muitas vezes a Las Palmas na minha carreira profissional, houve ocasiões em que poderia ter parado noutras ilhas e noutros portos das Canárias, conhecer um pouco mais e variar a vida, mas ali tinha o conforto e a conveniência de já conhecer tudo, desde o sítio onde comprar bons jerrycans de plástico usados para a reserva de combustível (é num talho da calle Sagasta) até às ruas mais manhosas onde se cumpriam tradições milenares de marinheiros em terra. Se nessa primeira visita tinha tido tempo e pude lá passar mais de uma semana, nas visitas seguintes já não foi assim, era suposto ser eficiente e esperava-se que uma escala não durasse mais de três dias. Trocar a aventura e a descoberta, o prazer e a adrenalina de arribar a um porto desconhecido pela facilidade de fazer escala num porto onde já se chegava, de dia ou de noite, quase de olhos fechados e já se sabia como encontrar e organizar tudo era a coisa sensata a fazer, já que o tempo não era meu e pagavam-me por expediência.

Havia essa facilidade prática de encontrar tudo, mas também havia recompensas intangíveis, como o gosto que me dava atracar na doca do combustível do Don Pedro e ser saudado com um: «Bienvenido, Capitán! Al Caribe de nuevo?»