Acompanhe toda a atualidade informativa em 24noticias.sapo.pt

1 MOSCOVO

Atualidade

A caneta suicida do Russo, uma Montblanc, estava no andar de cima. Devia tê-la guardado ali em baixo, repreendeu-se baixinho, mesmo com Alyona por perto. Se estava certo em relação àqueles carros, não tinha tempo a perder. Fechou a gaveta da secretária e tirou Alyona de cima do joelho com cuidado.

– Colo – insistiu ela. – Colo, colo, colo.

As mãos dela estavam estendidas, com os dedos a bater nas palmas, mas ele estava distraído com os monitores. Alyona bateu com a cara na coxa dele e deu um guincho, deixando a perna das calças cheia de manchas vermelhas pegajosas. Ele olhou para baixo em pânico, mas apercebeu-se de que as manchas eram da geleia de morango, que ele próprio tinha barrado na torrada dela ao pequeno-almoço. Normalmente, teria ficado furioso. Mas desta vez não. Fez-lhe cócegas na barriga e ela riu-se tanto que se enroscou nos pés dele, a rir-se à gargalhada.

– Vai lá ter com a tua mãe, meu doce – pediu calorosamente, mas num tom firme que Alyona não podia deixar de acatar. A criança saiu a correr, disparada, como sempre, e quase batia com a cabeça na ombreira da porta. Ouviu-a correr para a cozinha, onde uma chaleira começava a apitar.

De volta às imagens das câmaras: os dois carros pretos tinham parado no caminho de acesso à casa. Não tinham matrículas do governo, mas ele sabia. No carro da frente, viu o característico triângulo de sujidade no canto superior direito da janela traseira do passageiro. As escovas do parque de lavagem de automóveis de Lubyanka não alcançavam aquele ponto.

O Russo nem sequer pôs a hipótese de ir com eles; há muito que o tinha decidido. Mas porque é que lhe tinham dado essa oportunidade? Já me deviam ter amordaçado, pensou. Os braços presos, um de cada lado, sem camisa e sem calças, mãos agitadas a vasculhar-lhe a lapela do casaco e os bolsos. E, no entanto...

Ficou a olhar para a geleia que tinha ficado colada às calças. Passou o dedo por cima dela e levou um bocado excessivamente doce à língua.

A sua newsletter de sempre, agora ainda mais útil

Com o lançamento da nova marca de informação 24notícias, estamos a mudar a plataforma de newsletters, aproveitando para reforçar a informação que os leitores mais valorizam: a que lhes é útil, ajuda a tomar decisões e a entender o mundo.

Assine a nova newsletter do 24notícias aqui

Dez da manhã. Uma manhã lenta de sábado na sua dacha. Perdera o seu habitual passeio matinal porque ele e Vera tinham ficado acordados até muito tarde, bebido demasiado e, consequentemente, dormido até demasiado tarde. Percebeu que os homens lá fora estavam a ficar impacientes por ele ainda não ter saído. Tinham conduzido até ali, desbravando o mesmo percurso que ele costumava fazer pela mata – o fumo dos cigarros a sair pelas janelas abertas. Durante uns segundos, o Russo ficou a observar os carros parados lá fora, tentando ler a energia. E não gostou do que sentiu.

– Vera – chamou. – Tenho visitas. Leva a Alyona para o jardim para apanhar morangos. Podíamos comer alguns ao almoço.

Vera apareceu à porta do escritório e o seu olhar pousou imediatamente nos ecrãs.

– Isto é por causa de Atenas? – perguntou ela, com um tom de impaciência na voz, enquanto Alyona entrava atrás dela. – Porque seria decente da parte deles explicarem finalmente porque é que te pediram para voltares para casa tão depressa.

– Não sei. Leva a Alyona lá para fora – ordenou ele.

– Acabámos de pôr a Alyona na escola e...

– Lá para fora – repetiu. Nos ecrãs, cinco homens tinham saído dos carros. Ela olhou para ele, preocupada. Com um pequeno suspiro, ele levantou-se e mandou-a embora com um beijo na bochecha, sussurrando: – Vou buscar-te quando eles se forem embora. – Depois pegou na miúda, balançou-a e enterrou a cara no seu doce cabelo, todo espesso e lustroso outra vez depois dos tratamentos, e lembrou-se porque é que tinha feito o que fizera. Cheirou-a mais uma vez e beijou-lhe a cabeça. Não se arrependia. Voltaria a fazer o mesmo. Faria o mesmo mil vezes.

Pousou-a no chão.

– Amo-te, minha klubnichka – disse-lhe.

– Eu não sou um morango, papá! – Ela riu-se, abanando o dedo para ele com um sorriso rasgado.

Alyona foi atrás da mãe, cozinha fora, e saíram para o jardim.

O lábio dele tremeu quando a porta bateu. Alyona não conseguia fechar as portas de outra maneira.

Ouviu as primeiras pancadas na porta de entrada. Apressou-se a abrir a gaveta de baixo da secretária. Arrancando o fundo falso, lá estava o envelope grande, cheio de outros mais pequenos. Um deles continha uma carta para Vera. Era uma formalidade, sem afeto, mas gentil, até mesmo generosa, gostava de pensar. Vinte outros estavam endereçados a Alyona, unidos por um elástico e etiquetados com uma nota com as seguintes instruções: Ela deve abrir um em cada aniversário, do quarto ao décimo oitavo, e depois quando fizer vinte, trinta, quarenta, cinquenta e sessenta anos. Outro envelope tinha o nome do seu filho já crescido e continha uma carta escrita com tanto amor quanto a sua desilusão conseguira. Escondido dentro das dobras dessa carta, estava outro envelope mais pequeno, endereçado a um apartamento em Atenas e colado com uma caterva de selos. Por favor, envia a outra carta por mim, escreveu num post scriptum ao filho.

As pancadas, que se tinham tornado mais fortes à medida que ele revia as cartas, entretanto pararam. Nos monitores, viu um dos homens a tentar abrir a fechadura.

Na casa de banho, o Russo escondeu os envelopes na bolsa de maquilhagem de Vera. Em pânico, receava que as cartas fossem descobertas na inevitável e penosa busca que se avizinhava. Porque é que não as tinha cosido na roupa da Alyona – num casaco, por exemplo – como sabia que devia fazer? Mas já não havia tempo: a porta da entrada abriu-se com um rangido enquanto ele se esbaforia escadas acima até ao quarto de hóspedes. Sentou-se à velha secretária empoeirada, ouvia os passos no hall, os murmúrios abafados, os sons amortecidos dos homens a subir as escadas. Por momentos, questionou-se sobre como é que tinha sido descoberto. Não sabia, e duvidava que os americanos alguma vez viessem a sabê-lo.

O Russo abriu a gaveta da secretária e pegou na Montblanc.

– A minha filha está aqui, seus animais – gritou , em direção às escadas. – Pelo amor de Deus.

Um jovem pesado, com o cabelo rapado de lado como um punk idiota, entrou de rompante no quarto. Um segundo homem seguiu-o de perto. Os olhos de ambos arregalaram-se ao verem a caneta.

– Que vergonha, rapazes – disse. O Russo meteu a caneta na boca e mordeu o cano, cravando os dentes na cápsula de cianeto que estava no interior. Ouviu as palavras de Jack, pronunciadas outrora no tempo, em Bogotá: “Três inspirações, amigo, coloca as mãos sobre o rosto."

E assim fez, inspirando o ar em goles. Um, dois... ao terceiro, já tinham saltado para a secretária e para cima dele, embatendo contra a parede, a praguejar, a gritar, frenéticos. Um dos homens virou-o e tirou-lhe a Montblanc da boca. O Russo já estava morto.

2 SINGAPURA

Na altura, Sam Joseph não se deu conta do terrível significado das palavras de Golikov, do sangue que certamente seria derramado, das vidas que em breve seriam destruídas por causa delas. Tudo isso ficou para mais tarde.

Primeiro, teve de as memorizar. E a sua memória tinha de ser perfeita, exatamente como a mensagem tinha saído da boca de Golikov. Sam estava a usar o seu quarto de infância como um palácio da memória, guardando cada palavra, por ordem, em diferentes caixas coloridas, aquelas debaixo da cama onde guardava os Legos. Mas para memorizar a mensagem, tinha de ter a certeza de que a ouvira corretamente. E apesar de Golikov estar sentado a seu lado na mesa de bacará, não estava a ser nada fácil.

Os dois microfones mini alimentados a estrôncio tinham funcionado lindamente em Langley, mas – surpresa – avariaram à chegada a Singapura. Ou seja, estava entregue a si mesmo. O perfil do analista sobre Golikov indicava que ele falava inglês fluentemente. Não era verdade. Sam fora obrigado a aceitar que o encontro se desse num casino, um local cheio de câmaras de vigilância, precisamente o oposto de onde gostaria de se encontrar com um russo. E as plantas do casino usadas para coreografar este breve encontro especificavam que as salas de bacará de apostas altas ficavam bem afastadas do piso do casino e, acreditando na mensagem que lhe fora passada, quase de certeza que seriam apropriadamente silenciosas. Também falso. Tola e loucamente falso. Uma fila de máquinas de slots de limite alto, mesmo ao lado da sala de bacará, tilintava com a subtileza de uma armadura lançada pelas escadas abaixo. E era sexta-feira, duas da manhã, no Sands: as mesas estavam umas coladas às outras. Este era o estrépito instigador e enlouquecedor preferido dos casinos e, porque os considerava como uma espécie de segunda casa, do próprio Sam Joseph. Pelo menos quando jogava com o seu próprio dinheiro. Mas agora o barulho estava a pôr em risco a sua operação, para não falar das câmaras, e havia muito pouca margem para erros.

Pediu a Golikov que repetisse. Apesar de o russo manter um tom áspero de lixa e vidro partido, o seu inglês era, agora, arrastado e irritante. Sam sorriu, como se o outro tivesse contado uma piada, e afastou-se de Golikov para memorizar a mensagem enquanto examinava as suas cartas. Tinha dez mil dólares dos contribuintes na aposta. Sobre este assunto, os avisos do Departamento de Finanças tinham sido severos, se bem que, em última análise, ineficazes: fora-lhe pedido que prestasse atenção e que perdesse o mínimo possível. Sob a borda da mesa, a mão esquerda de Sam pousou o cartão de acesso, com o número do seu quarto, no colo do russo. Em simultâneo, atirou as cartas para o croupier com a mão direita e sussurrou:

– Duas horas.

Não teria avançado se pensasse que tinha sido enganado; mas por um instante, quando o russo guardou o cartão no bolso, a incerteza apoderou-se de Sam e ele questionou-se se alguém estaria a observá-lo.

Golikov apostou e perdeu. Dobrou as cartas, atirou-as para o feltro da mesa e engoliu dois dedos de whiskey.

– Chega – disse, com a mão a cortar o ar. – Já está.

Deu uma gorjeta ao croupier, bateu com as mãos na mesa e levantou-se. Com acenos amigáveis e votos de boa sorte a Sam e aos outros jogadores, foi-se embora. Sam apanhou os olhos de Golikov a percorrerem a sala. Adequadamente assustado, pensou.

Um ponto a seu favor. Só os casos mentais mais graves – os sociopatas e os megalómanos – não temiam a traição.

O bacará não era para o Sam: muita superstição e nenhuma habilidade. Já tinha perdido cinquenta mil dólares do dinheiro dos contribuintes americanos em apenas dezasseis minutos. As mãos seguintes iriam arriscar os vinte mil dólares que lhe restavam. Naquele momento, estava muito mais preocupado com a burocracia das finanças do que com as implicações do que Boris Golikov acabara de partilhar.

Nos dez minutos seguintes, Sam voltou a recuperar parte do que perdera: agora estava com apenas trinta mil dólares de prejuízo. Depois, com uma gorjeta modesta ao croupier, que podia justificar operacionalmente aos chatos das finanças, despediu-se. Saiu da sala de apostas altas para o piso principal do casino, um átrio amplo repleto de mesas sobre as quais se erguiam esculturas douradas, quais pilares, onde o ambiente zunia de energia.

Livro: "O Sétimo Andar"

Autor: David McCloskey

Editora: Lua de Papel

Data de lançamento: 15 de julho

Preço: € 18,90

Subscreva a Newsletter do É Desta que Leio Isto aqui e receba diretamente no seu e-mail, todas as semanas, sugestões de leitura, notícias e acesso a pré-publicações.

Sam tentou identificar quaisquer elementos de segurança ou compatriotas da delegação russa, mas o bulício era tal que era impossível saber se a oposição o tinha identificado a ele ou a Golikov. E quanto a isso, sabia que não havia nada a fazer. Comprou um café e passeou pelo casino. Fez algumas paragens: casa de banho, mesa de blackjack para jogar umas mãos, um dos bares.

Nada de errado – sentia-se bem, apesar do que o russo lhe dissera. Ainda não tinha assimilado aquilo e, além disso, Sam estava em modo operacional, seguindo um plano cuidadosamente elaborado, com dois objetivos em mente: proteger o agente e recolher a informação. Analisar a informação era tarefa de outro, e a sua mente já estava sobrecarregada, a fervilhar. Só havia espaço para a pressão do momento e o que isso significava para o desenrolar da operação. Com o gin tónico na mão – ainda intocado –, subiu ao quarto e despejou a bebida no lavatório. O tabuleiro do serviço de quartos deixado no corredor; o sinal de “não incomodar” na maçaneta da porta; um guardanapo enfiado por baixo da porta. Nos breves segundos de conversa indireta que tinham conseguido ter durante o jogo, Sam havia proposto isto como sinal de segurança. Tudo em ordem. Fechou a porta, tendo o cuidado de manter o guardanapo no lugar, a espreitar lá para fora.

De um compartimento escondido na parte lateral da mala, retirou uma bolsa forrada com um material que se assemelhava a folha de alumínio. Abriu o fecho, contou o dinheiro e pousou a bolsa no móvel perto da televisão. Cem mil dólares: o pagamento inicial autorizado se a informação do russo fosse valiosa. Outra guerra com as finanças. Na mesa de apoio, pousou uma garrafa de Russian Standard, dois copos e uns acepipes: azeitonas, frutos secos, batatas fritas, pipocas. Atirou as canetas e os blocos de notas para a gaveta da secretária. Nada de escrever durante a sessão, decidira a CIA. Podia deixar Golikov à beira de um colapso. “E se o russo estiver a tentar vender-nos o que eu suspeito”, dissera o chefe, “o tipo já vai estar bastante assustado.”

Sam instalou-se, à espera, e ele não gostava de esperar. Sabia-o, tal como sabia a Comissão de Avaliação de Desempenho, embora tivessem usado palavras ligeiramente diferentes (dificuldade em controlar os impulsos). Estava a bater com o pé no tapete a um ritmo acelerado. Tinha praticamente devorado a taça das pipocas, depois acabou com ela e guardou-a no armário, fora da vista, para não dar a entender que tinha começado a comer antes do seu convidado. Assumiu uma posição de vigia junto à secretária, com a comida bem fora do seu alcance.

Uma hora depois, Sam pôs-se de pé ao ouvir o clique do cartão de acesso e o estalido da maçaneta. Dois homens que não reconhecia entraram no quarto. Usavam fatos. Os olhos deles perscrutaram o interior, à procura de ameaças: outras pessoas, armas, objetos que ele pudesse usar como armas. Moviam-se com fluidez, como homens que entravam no quarto de outras pessoas com regularidade. Sam aproximou-se da secretária e do candeeiro de mármore.

– Saiam do meu quarto – ordenou Sam, dando mais meio passo em direção ao candeeiro.

– Você é o Samuel Joseph – disse o loiro num inglês com forte sotaque.

Não era uma pergunta. Mas respondeu à de Sam: eram russos. Ponderou por qual dos homens começar. Ambos tinham aproximadamente a mesma altura e constituição física. Avaliou os dois pares de olhos, à procura de fraquezas, e decidiu: o de cabelo escuro.

Mas o homem de cabelo escuro sacou de uma pistola com silenciador e apontou-a a Sam.

– Se mexeres, mato-te. Não hesito. Senta-te, Samuel Joseph.

Sam sentou-se, com o coração na garganta. Tinham, sem sombra de dúvida, usado a chave do quarto que passara ao russo na mesa. Se tinham apanhado Golikov, o que é que queriam dele?

– Muita vodka para uma pessoa – comentou o tipo de cabelo loiro, levantando a garrafa cheia de Standard para enfatizar. – Para um americano, acho muito – disse, acomodando-se na cadeira em frente a Sam. Ainda de pé, o homem de cabelo escuro moveu-se atrás dele. Ouviu o fecho da mala. As roupas e os sapatos a serem atirados para o chão.

– Tenho um problema com a bebida – retorquiu Sam, virando o pescoço para ver o que o tipo estava a fazer. Foi recebido pela extremidade pouco amigável da pistola do tipo de cabelo escuro, que proferiu bruscamente: “Vira-te.”

O tipo de cabelo loiro estalou os dedos.

– Olha aqui. Ou dou cabo de ti.

– Acho que estão no quarto errado – disse Sam.

– Porque falas com Boris Golikov? – O segundo zunido de um fecho a abrir significava que o de cabelo escuro tinha encontrado a bolsa do dinheiro. Sam viu os olhos do Loiro arregalarem-se ligeiramente, depois apontou para o dinheiro, que atirou para cima da mesa. – Isto para Boris?

– Isto é um casino – respondeu Sam. – É para jogar. E quem raio é o Boris?

– O que Boris te diz nas mesas?

– Quem é o Boris? – perguntou Sam.

– Olha, nós não tipos pacientes – disse o Loiro. – Tu vês-nos, tu sabes. Tu trabalhas para CIA. Também sabemos isto. E sabemos qu’o Boris quer conversa. Agora, sentas-te ao pé do Boris esta noite. Nós vemos isso. E é o seguinte. Temos de saber que ele diz. Temos de saber. Diz-nos que ele diz, diz-nos tudo e nós saímos, limpos e elegantes. – Esfregou as mãos de forma teatral. – Mas se fizeres de parvo, temos problemas. Percebes?

– O Boris é o russo que estava na minha mesa? – perguntou Sam. – O tipo que foi limpo, não é? Não faço ideia porque é que estão no meu quarto ou quem é ele. Agora, saiam.

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia. Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar a leitura e a discussão à volta dos livros.

Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

Subscreva a Newsletter do É Desta que Leio Isto aqui e receba diretamente no seu e-mail, todas as semanas, sugestões de leitura, notícias e acesso a pré-publicações.

– Samuel Joseph, não te fazer de parvo. Diz-nos agora o qu’é qu’o Boris diz.

– Eu não conheço o vosso Boris – retorquiu Sam.

O Loiro olhou através dele para o parceiro, e Sam conhecia esse olhar – já o tinha visto em agentes, em seguranças, em jogadores numa mesa de póquer. Um homem que tinha tomado uma decisão. O Loiro pegou numa das tigelas de acepipes e lançou-a ao ar.

Os seres humanos tendem a olhar para os objetos lançados ao ar.

Como que em transe, Sam viu os frutos secos a espalharem-se pelo chão e não percebeu um movimento rápido atrás de si, mas sentiu a picada no ombro. O calor inundou-lhe o corpo e os membros. Quando chegou ao cérebro, começou a sentir a cabeça muito pesada, como se o pescoço não fosse suficiente para a apoiar. Sam caiu para a frente, embatendo na garrafa de vodka.

3 LANGLEY, VIRGÍNIA

Artemis Aphrodite Procter franzia os olhos perante o reflexo do sol nascente, que espalhava tons laranja na sua cerveja. Pousou o cartão no balcão e pediu para manter a conta aberta, pegou no copo e acomodou-se no seu banco habitual à espera de Theo. Procter era uma cliente assídua do Vienna Inn, mas, normalmente, era notívaga, e apesar da sua condição de pária, era a primeira vez que pedia uma bebida durante a hora do pequeno-almoço, palavra de honra. Metade do copo foi bebido no primeiro gole, o resto quando ouviu o som da porta a ser aberta por Theo Monk. Quando o seu velho amigo chegou à mesa, levantou o copo vazio abanando-o.

– A minha conta está aberta.

Theo olhou para o copo e cheirou-o com um sorriso irónico. Voltando com duas bebidas, sentou-se, ofegante, e fez deslizar uma na direção de Procter. Passou o dedo pelo tecido amarrotado do blazer de tweed que ela já trazia vestido do dia anterior.

– Uma noite de arromba?

– Quem me dera. Saí do escritório há uma hora.

Olhando para as cervejas laranja sol nascente com reprovação, um empregado desconhecido de Procter pousou os menus na mesa. Sem pegar em nenhum, Theo pediu torradas, bacon e ovos estrelados.

– Estou a beber o meu pequeno-almoço – disse Procter, e afastou as ementas para a borda da mesa.

– Ainda não há notícias de Singapura? – perguntou Theo, assim que o empregado se afastou o suficiente para não ouvir a conversa.

– Silêncio total. A agência está a trabalhar com os seus correspondentes no Sands.

– Pode haver muitas explicações.

– Todas más.

Theo calou-se, concordando. Virou o olhar para a janela e sorveu boa parte da cerveja. Há cerca de um quarto de século que Procter bebia com Theo, casualmente e um pouco por todo o mundo. A bebida transformava-o: falador ou silencioso, taciturno ou alegre, bondoso ou cruel – podia assumir qualquer combinação ou forma e, ocasionalmente, uma mistura anárquica de todas elas durante a mesma sessão de bebida. O silêncio tinha-se tornado mais pronunciado nos últimos anos. A amizade deles remontava aos tempos da Quinta e, ao longo de vinte e cinco anos, tinham dito quase tudo o que era preciso dizer – e muita coisa que não era preciso.

A comida de Theo chegou. Enquanto ele mergulhava o bacon nas gemas líquidas, Procter – de mãos vazias – levantou-se e dirigiu-se ao bar. Pousou o copo e pediu um café.

– Talvez seja sensato – comentou Theo, quando ela voltou para a mesa – não estares embriagada durante o teu primeiro briefing com o novíssimo diretor Finn Gosford e a sua subdiretora de operações Deborah Sweet.

– Não sei, Theo – retorquiu Procter. – Se estiver sóbria, talvez diga à subdiretora de operações o que sinto, ou seja, que é inacreditável que sejam aqueles dois a gerir o sítio. E que raio de primeiro briefing sobre a Rússia. Quero dizer, eles estão a trabalhar há quanto tempo, uma semana? Uma única semana, e já está tudo a arder.

– Sabes que basta uma fagulha, Artemis – disse ele, concentrado no pedaço de bacon enegrecido que estava a mergulhar nos ovos.

– Seja como for, quando foi a última vez que falaste com algum deles? – perguntou ela.

Ele limpou uma mancha de gema do canto da boca e olhou para o vazio, pensando naquilo.

– Talvez seis meses depois do Afeganistão. O Finn era um herói aclamado, é claro. O mundo era dele.

– Herói – murmurou ela. – Não me fodam.

– Eu ofereci-me.

– Tu tentaste – bufou ela. – Há uma diferença. – Olhou longamente para o seu copo vazio. – A última coisa significativa que disse a qualquer um deles foi logo depois do Afeganistão, no hospital em Landstuhl, quando estávamos acamados. Não fui a nenhuma das festas de reforma.

– Não foste convidada – disse Theo, vingando-se. – Há uma diferença.

– Tu foste?

– Claro que não.

Procter bebeu o café, enquanto Theo apanhava os ovos com a torrada.

– Talvez o Sam ande nos copos – conjeturou ele, com a côdea a pingar dos lábios. – Teve um acidente de carro. Fugiu com uma prostituta com um coração de ouro. Roubou o dinheiro. Snifou coca. – Tu não conheces o Sam, e és um idiota. Ele está escondido, morto ou foi apanhado pelos russos. As probabilidades de estar escondido diminuem a cada hora que passa.

Theo deu outra trinca na torrada, mudando de assunto com uma careta e um aceno de cabeça.

– Será que os novos ocupantes do Sétimo Andar receberam informações sobre a operação de Singapura esta semana? – perguntou. – Temos andado numa azáfama tal que nem me lembro se foi falado quando estavam em Nova Iorque.

– Eles ficaram a saber o essencial. Talvez não todos os pormenores.

– Bem, tenho a certeza de que serão compreensivos – retorquiu Theo, com um sorriso a enrugar-lhe os lábios. – Afinal de contas, o Finn e a Debs são nossos velhos amigos.

Pela primeira vez em quase dois dias, Procter sorriu ligeira- mente. Theo atirou o guardanapo para o prato vazio.

– Vamos embora. Devíamos organizar-nos com o Mac e o Gus antes de entrarmos nesta trituradora implacável.

Quando entraram no escritório dele no quarto andar, Mac Mason, chefe de operações da Casa da Rússia, estava na posição mais natural de um agente dos serviços secretos: debruçado sobre um computador, a ler mensagens e relatórios.

Mac tinha a tez bronzeada, agradáveis orelhas grandes e um cabelo que era grisalho desde que o conheciam. Ou seja, desde que Procter e Theo se conheciam. Os três tinham pertencido à mesma turma na Quinta, e depois, no Afeganistão, tinham matado e quase sido mortos juntos. Quando ele se virou na cadeira, ela percebeu que ele tinha estado muito tentado a esmurrar o ecrã do computador. Ao contrário de Procter, Mac, aparentemente, fora a casa por algumas horas na noite anterior. Sabia-o porque a camisa branca dele estava engomada, embora os olhos traíssem a sua exaustão.

Procter e Theo aproximaram-se da mesa dele, mas Mac ficou parado, a olhar, num silêncio perturbado, entre o computador e a pintura de um lobo a caçar na parede.

– O que é que se passa? – perguntou Procter, finalmente.

Nesse momento, Gus Raptis, acabado de chegar de uma curta viagem como chefe do posto de Moscovo, e outro camarada da turma deles na Quinta entraram no gabinete.

– Leste isto? – perguntou a Mac, tão stressado que não deu por Procter nem Theo.

– Maldito caos – rosnou Mac.

– Que raio se passa? – vociferou Procter.

Gus virou-se para ela, com o rosto avermelhado de indignação à beira da raiva:

– O Buccaneer está morto, é isso que se passa. O SIGINT intercetou uma comunicação durante a noite. Apenas parte, é certo, mas apanhámos um informador do Kremlin a dizer que um agente do SVR recentemente regressado de Atenas se suicidou durante a sua detenção.

– Na interceção – disse Mac, virando-se para o computador para ler a mensagem –, o informador diz que corriam rumores de que o Buccaneer tinha sido enviado para casa por suspeita de espionagem.

Raptis atirou os óculos para a mesa.

– Merda – bradou. – Merda.

A reação perturbou profundamente Procter, porque esta era a terceira ocasião, em praticamente tantas décadas, que ouvia Gus Raptis praguejar, e lembrava-se de todas elas: no Afeganistão, uma bala no ombro; em Georgetown, talvez quinze anos antes, quando escorregou no gelo da última vez que conseguiram embebedá-lo; e agora, no ar reciclado e silencioso da Casa da Rússia, contemplando o desastre que se desenrolava diante dos Bratva.

Bratva: o apelido coletivo do quarteto dentro da CIA. A Máfia da Casa da Rússia. Mac Mason, chefe de operações; Theo Monk, contrainteligência; Gus Raptis, agora numa espécie de stand-by em Langley, mas que até há pouco tempo dirigia o trabalho de campo em Moscovo. E, finalmente, Procter, da Moscovo X, suserana dos sujos e gloriosos programas de ação secreta que visavam Putin e os seus comparsas. Os caminhos dos Bratva tinham andado aos ziguezagues nos anos que se seguiram à Quinta. De alguma forma, tinham conseguido manter-se quase sempre amigos.

– Ainda não há notícias de Singapura? – perguntou Procter. Mac abanou a cabeça.

– O posto acha que os Sings vão ceder as imagens de vigilância do casino, mas isso pode demorar algum tempo. Caso contrário, silêncio. – Juntara-se a eles à mesa, espalhando pela superfície de madeira falsa lascada os pontos de discussão anódinos que todos tinham preparado na noite anterior para a reunião com o diretor naquele dia. Mac pegou numa caneta vermelha e começou a cortar o texto. – Olhem, pessoal, dentro de uma hora, temos o primeiro briefing oficial no Sétimo Andar sobre a Rússia com... – pigarreou com algo na garganta, antecipando os nomes –... os nossos velhos amigos, o diretor Finn Gosford e a sua subdiretora de operações Deborah Sweet. – Pronunciou os títulos num tom sarcástico e cantante. Virou-se para o caixote do lixo e cuspiu. – E, sorte a nossa, só trazemos problemas. Uma arma rebentada em Singapura, um agente desaparecido e um ativo morto em Moscovo.

– Eles vão esfolar-nos por tudo isso – concluiu Gus.

– Vão esfolar-nos só por estarmos aqui – retorquiu Theo.

– Vai ser difícil escolher apenas uma merda – concordou Procter. – São tantas, porra.