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TERRA E OS SEUS FILHOS
No princípio, não existia absolutamente nada que alguém conseguisse identificar – somente uma brecha enorme que se estendia em todas as direções, sem características, indefinida, sem orientação.
No entanto, a dada altura, começaram a aparecer coisas. Primeiro, veio a Mãe-Terra, Gaia, com o peito largo e firme. Depois, veio o Tártaro, que espreitava por baixo de Gaia, à espera da altura em que os maiores criminosos lhe fossem entregues, para receberem o seu castigo. Em terceiro lugar, chegou a Luxúria, cuja tarefa seria libertar os membros e enganar os sentidos dos deuses e dos mortais. Por fim, surgiram a Escuridão e a Noite. Envolvendo-se com amor, criaram o Ar e o Dia. Por si mesma, sem precisar da ajuda de nenhum ente masculino, a Mãe-Terra gerou o Céu, o Mar e as Montanhas. Em seguida, entrando no leito do Céu, concebeu mais filhos. Alguns deles possuíam uma aparência esplêndida e eram líderes por natureza. Quiseram trazer ordem ao mundo novo, estabelecendo o eterno curso do Sol, canalizando as águas revoltas e criando uma comunidade. Uma das filhas, Mnemósine, começou a registar os grandes feitos dos seis irmãos, para que nunca fossem esquecidos.
Três outros filhos, os Ciclopes, usaram os seus braços fortes e as suas mãos hábeis para criar o relâmpago e o trovão. Apesar de serem muito parecidos com os irmãos e as irmãs, tinham apenas um olho cada, no meio das testas. Ainda mais estranhos de aspeto, e excessivamente arrogantes para fazerem o que quer que fosse, eram os Hecatônquiros, cada um dos quais com cinquenta cabeças e cem braços.
O Céu, ou Urano, temia e odiava todos os seus filhos, ainda antes de terem nascido, e elaborou um plano para os controlar. De cada vez que a Mãe-Terra estava prestes a dar à luz, Urano empurrava o nascituro para dentro do útero dela, aprisionando-o antes de ter visto a luz do dia. No útero, os filhos definhavam no espaço cada vez mais lotado, enquanto a sua mãe gemia sob o peso do ventre inchado.
Os Ciclopes e os Hecatônquiros foram tratados de maneira ainda pior, porque Urano os temia e odiava ainda mais do que aos outros. Não os empurrou de volta para o útero de Gaia, mas sim para baixo, para o Tártaro, onde ficaram presos por correntes robustas.
As coisas foram diferentes com Cronos, o último filho que Urano teve com a Mãe-Terra. Tortuoso desde o momento da conceção, Cronos concordou ansiosamente com o plano pensado pela sua mãe. Alcançando profundamente dentro do próprio corpo, a Mãe-Terra extraiu adamantina cinzenta, com a qual fabricou uma foice com dentes irregulares. Entregou-a a Cronos, dizendo-lhe para se agachar à saída do seu ventre, como se estivesse prestes a nascer, aguardando pelo momento certo.
Em breve, Urano aproximou-se, desejoso por se deitar com Gaia, e puxou o cobertor da noite para cobrir ambos os seus corpos nus. Quando penetrou Gaia e começou a gemer de prazer, Cronos deslizou para o canal íntimo da sua mãe. Brandindo a foice, castrou o pai. Gritando de dor, Urano arrastou-se para o seu covil, por entre os céus mais altos, e nunca mais atacou a Mãe-Terra.
Agarrando os genitais ensanguentados do pai, Cronos emergiu triunfante de entre as pernas da sua mãe. Lançou os pedaços de carne paterna para o mar, onde balançaram para cima e para baixo, nas ondas, enquanto a espuma se acumulava em seu redor.
Dentro dessa espuma, algo começou a surgir e, lentamente, ganhou a forma de uma deusa. Depois de ter andado à deriva aqui e ali, os seus finos pés pisaram a ilha de Chipre, onde a relva verde brotou para a saudar. As Graças e as Estações apressaram-se a ir ungi-la com óleos perfumados. Depois, deram-lhe uma faixa bordada para suster os seus seios encantadores, sedas translúcidas para serem colocadas sobre a sua bela silhueta e sandálias para proteger os seus lindos pés.
A nova deusa foi chamada Aphrodite (Afrodite), porque aphros significa «espuma», na qual ela nasceu. A Luxúria e o Desejo voaram para junto dela desde o instante em que a viram e nunca mais a abandonaram. Deliciava-se a lançar a paixão nos corações dos deuses e dos mortais – mas os que recebessem os seus dons fariam bem em se lembrar da castração que lhe deu vida.
Quando Cronos lançou os genitais do Céu ao mar, caíram algumas gotas de sangue sobre a Mãe-Terra, e ela engravidou novamente. Passado o tempo devido, deu à luz as temíveis Erínias, que puniam aqueles que atraiçoassem membros das próprias famílias; os enormes Gigantes, que, quando nasceram, já envergavam armadura e brandiam lanças; e as ninfas, elegantes como freixos.
OS TITÃS
Cronos olhou longamente para o novo mundo em que entrara. Quando libertou Gaia dos avanços insistentes de Urano, havia-se criado muito espaço entre os seus pais. Nele, os filhos que Gaia concebera por si mesma, antes de ter entrado no leito de Urano, estavam por fim à vontade para crescer. O Mar e as Montanhas expandiam-se, em comprimento e em altura, assumindo os aspetos e as formas com que ficaram. Cronos espantou-se com a rapidez com que os pinheiros já iam cobrindo as Montanhas.
Depois de ter conhecido o espaço exíguo e lotado dentro da sua mãe, Cronos gostou de toda aquela vastidão, mas rapidamente se sentiu sozinho. Ajudou os irmãos e as irmãs a sair de dentro da mãe, e começou a organizá-los.
Começou por lhes anunciar que ele seria o seu rei – no fim de contas, tinha sido ele quem castrara o pai. Em seguida, distribuiu-lhes tarefas. Pôs alguns deles a fazer com que o cosmos fosse mais habitável. Disse a Hélio para guiar um carro de fogo pelos céus durante o dia e a Selene para conduzir outro, menos fogoso, durante a noite. Outros irmãos receberam a missão de criar normas de comportamento: Témis teve a tarefa de criar o poder vinculativo dos juramentos e de estabelecer a comunicação entre diferentes partes do cosmos. Com tanta coisa a acontecer, Mnemósine mantinha-se ocupada a registar todos esses novos desenvolvimentos para a posteridade. Nenhum deus ficou ocioso.
Reia recebeu a tarefa que Cronos considerava ser a mais importante de todas: ser sua mulher.
A partir do seu refúgio nas alturas, sobre o novo cosmos, Urano via tudo isto a acontecer, ainda a tratar da sua ferida dolorosa.
Ganhou o hábito de se referir desdenhosamente aos filhos com a palavra «Titãs», que, na sua língua, indicava ambição arrogante. Também começou a prever, de modo sombrio, que a vingança cairia em breve sobre eles.
Com efeito, Cronos temia desde o princípio que os seus próprios filhos lhe fizessem o que ele fizera ao pai. Bem ciente de que o método utilizado por Urano para se proteger não tinha resultado, Cronos pensou longa e demoradamente numa alternativa melhor. Por fim, teve uma ideia que lhe pareceu ser infalível. Sempre que Reia dava à luz, Cronos engolia de um trago o seu filho. Vangloriava-se de que ninguém seria capaz de conseguir escapar da sua barriga.
Reia era tão infeliz com esta situação como Gaia fora com a sua, e pediu ajuda aos pais. Auxiliaram-na a conceber um plano, que seria executado por Reia, Gaia e Hécate, a parteira de Reia. Isolaram-se na ilha de Creta, longe do salão do trono de Cronos, e aí esperaram pelo nascimento da criança seguinte.
Ainda assim, quando Reia entrou por fim em trabalho de parto, Cronos sentiu que se passava alguma coisa. Aguardava com expectativa que Hécate batesse na porta, e quando ouviu o sinal, abriu-a e lançou as mãos para a frente, à espera que ela lhe desse o novo embrulho.
Mas nos instantes que se seguiram ao nascimento da criança, as deusas tinham rapidamente feito uma troca. Hécate deu a Cronos uma pedra embrulhada em panos, não o seu filho recém-nascido. Cronos engoliu-a sem notar diferença alguma e regressou ao trabalho de dizer aos seus outros irmãos como deviam realizar as suas tarefas.
A criança verdadeira ficou em Creta, escondido em segurança numa gruta. As ninfas cuidaram dele, e Amalteia, uma cabra amável, alimentava-o. Um grupo de deuses jovens, os Curetes, ficou do lado de fora da caverna, batendo com as lanças nos escudos sempre que ele chorava, para que Cronos não o conseguisse ouvir.
Entretanto, a Mãe-Terra tinha um novo amante: o Mar, seu filho. Conceberam uma prole vasta, incluindo uma filha chamada Ceto, e um filho de nome Fórcis. Da cintura para cima, ambos eram parecidos com os seus meios-irmãos, os Titãs, mas, da cintura para baixo, assemelhavam-se com os peixes do reino do seu pai.
Envolvendo-se amorosamente, Ceto e Fórcis tiveram filhos estranhos e problemáticos. Entre eles, encontravam-se as Greias, que já tinham cabelo grisalho ao nascer, e que só tinham um olho e um dente, que partilhavam entre si. As Górgonas, que tinham asas de águia nas costas e um emaranhado de víboras que se agitavam na cabeça, em vez de cabelo, também eram suas filhas. Uma outra filha, Equidna, tinha a dualidade dos pais: uma linda deusa, da cintura para cima, mas uma serpente terrível, fria e escamosa, da cintura para baixo. Estava sempre à espreita numa caverna, nos confins do mundo, a lamber os lábios quando pensava em carne crua.
Equidna levou para a cama uma série de consortes que eram tão horríveis como ela e concebeu filhos monstruosos. Um deles foi a Quimera, uma leoa selvagem com uma cabeça de cabra cuspidora de fogo a sair-lhe das costas e uma víbora a fazer de cauda. Outro foi o cão de três cabeças, Cérbero, que guardava os portões do mundo dos mortos, onde os seus latidos ferozes ressoavam como um gongo de bronze.
Também a Esfinge era filha de Equidna. Tinha corpo de leão e cabeça de mulher, atrás de cujos lábios rosados se ocultava uma boca com dentes afiados como agulhas, que mais tarde trariam a morte a muitos. A maléfica Hidra, uma serpente com nove cabeças, e o Leão de Nemeia, que seria uma maldição para os mortais e para os seus rebanhos, eram igualmente filhos de Equidna.
Se o filho mais novo de Cronos sobrevivesse e conseguisse derrubar o pai, iria herdar um cosmos repleto de desafios. Ele, os seus irmãos e os seus filhos não teriam apenas de conquistar os Titãs, pois também teriam de vencer essa descendência de Ceto e Fórcis.
A REBELIÃO DOS JOVENS DEUSES
O bebé foi crescendo na gruta, em Creta, alimentado pelo leite de Amalteia e aninhado contra o seu ventre sedoso. Reia chamou-lhe Zeus. Zeus ficava fascinado com os feixes de luz brilhante que entravam na gruta, refletidos pelos escudos dos Curetes, e depressa aprendeu a escapulir-se às ninfas, quando queria visitar os deuses jovens. O seu crescimento foi prodigioso em todos os sentidos: um dia, Cronos viu que a ilha fervilhava com uma atividade incomum e apressou-se a investigar. Zeus transformou rapidamente as ninfas em ursos, e a si próprio numa serpente, conseguindo enganar o pai. Apesar de Zeus ter dado uma resposta eficaz à emergência, esse incidente evidenciou que a sua situação era precária; quanto mais depressa derrotasse Cronos, melhor. Começou a pensar numa maneira de o fazer.
Alguns dos Titãs mais novos tinham mais coisas em comum com Zeus do que com Cronos. Um deles era Métis, prima de Zeus, filha de Oceano e Tétis. Métis era a mais esperta de todos os deuses, conseguindo solucionar problemas que pareciam intransponíveis. Sugeriu a Zeus que desse um emético a Cronos; quando a droga fizesse efeito, ele vomitaria os irmãos e irmãs de Zeus, que ainda estavam aprisionados na sua barriga. Esses deuses tornar-se-iam aliados de Zeus.
Zeus e Métis rastejaram até à fortaleza de Cronos, no monte Ótris. Oculto nas sombras, Zeus observou Métis a servir a Cronos uma bebida em que misturara a sua droga.
Durante alguns minutos, não aconteceu nada. Então, Zeus ouviu um som estrondoso, parecido com um terramoto. Cronos ficou pálido, começando a transpirar, a engasgar-se e a vomitar. De repente, saiu a pedra, embrulhada nos seus panos, seguida sucessivamente por Hera, Poseidon, Deméter, Hades e Héstia, a ordem inversa pela qual Reia os dera à luz e Cronos os engolira. Zeus iria mais tarde colocar a pedra envolta em panos num santuário, em Delfos.
Rebentou a guerra entre os deuses mais velhos e os mais novos, tendo os Titãs utilizado o monte Ótris como sua base, e os deuses jovens estabeleceram-se no monte Olimpo, que ficava a grande distância, para norte. Lutaram durante dez anos, com os seus espíritos a ficarem progressivamente cansados devido ao esforço. O equilíbrio entre opositores era de tal ordem, que a vitória não parecia estar ao alcance de nenhum dos lados.
Então, a Mãe-Terra abeirou-se de Zeus, dando-lhe mais alguns conselhos. Disse-lhe que os Ciclopes e os Hecatônquiros ainda estavam a definhar no Tártaro, onde Urano os tinha aprisionado há muito tempo.
Se Zeus os salvasse, ser-lhe-iam aliados combativos e leais.
Assim, Zeus foi até às profundezas, uma parte do cosmos que nenhum deus se tinha ainda atrevido a visitar. Uma vez aí, descobriu que Tártaro tinha ordenado à sua horrenda filha, Campe, que vigiasse os prisioneiros. Da cintura para cima, Campe parecia uma mulher, mas a parte inferior do seu corpo era a de um verme cego que se contorcia, tendo na ponta um ferrão venenoso que ela erguia sobre a cabeça, pronta a atacar. Os muitos braços que lhe cresciam dos ombros terminavam em garras que eram tão afiadas como a foice que castrara Urano. Golpeando-a habilmente com a sua lança, Zeus conseguiu matar Campe – a primeira grande vitória que obteve. Libertou então os seus tios, que caíram de joelhos e lhe juraram lealdade.
A chegada dos Ciclopes e dos Hecatônquiros mudou a sorte da guerra. Os Ciclopes forjaram raios para que Zeus os lançasse, e os Hecatônquiros, arrancando grandes pedregulhos do solo, bombardearam os Titãs. Em pouco tempo, muitos deles estavam feridos ou presos por correntes. A vitória dos deuses jovens parecia certa.
Mas, nessa altura, Gaia, a Mãe-Terra, tomou Tártaro como amante e, no seu abraço unido, concebeu Tifão, o filho mais terrível que tivera até então, uma criatura tão imensa, que a sua cabeça tocava nas estrelas, ao atravessar as planícies. Os seus olhos lançavam espirais de fogo, e da sua boca saía o rugido, latido, guincho, rosnado, berro e grito de todas as criaturas imagináveis, com tal furor, que as dobradiças das portas da fortaleza dos deuses mais novos tremiam. Na sua cabeça, crescia cabelo esguio e imundo, e dos seus ombros saíam todos os tipos de víboras que se agitavam, bem como braços incontáveis, e cada uma das suas mãos agarrava uma arma. Abaixo da cintura, também havia víboras, cada uma delas mais grossa do que o tronco de um carvalho.
Se não fosse a bravura de Zeus, Tifão teria conquistado o poder. A maior parte dos deuses, ao vê-lo, transformaram-se a si mesmos em animais e fugiram para o Egito, onde estão escondidos. Zeus bateu-se, disparando raios contra Tifão tão depressa quanto os Ciclopes os conseguiam forjar, até que o corpo do monstro se incendiou. Também a Mãe-Terra pegou fogo, debaixo do ataque de Zeus; partes da sua superfície derreteram como estanho numa concha de fundição, e correu pela sua pele como riachos. O Mar ficou assustado ao ver chamas a dançar nas suas ondas. O clamor era terrível; nas profundezas do Tártaro, os Titãs agarravam-se atemorizados a Cronos.
Por fim, Tifão foi vencido. Zeus colocou correntes de adamantina em torno daquilo que dele restava e atirou-o para o Tártaro. Debatendo-se para se libertar, Tifão causou estragos na superfície da Terra, muito acima, formando o monte Etna. De quando em quando, rugindo ainda de frustração, lançava jatos de fogo no ar, e torrentes de lava rebolavam pelas encostas da nova montanha abaixo. O seu suspiro emitia ventos destruidores que lançavam barcos para o fundo do mar e destruíam o que os humanos haviam construído na terra.
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