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RICHARD ZIMLER

Paulo Leminski, poeta, professor e crítico literário brasileiro nascido em Curitiba, na sua curta vida (1944-89), explorou a «prosa experimental e a poesia. Entre as centenas de poemas que escreveu está «Contranarciso», que começa assim: «Em mim / eu vejo o outro / e outro / e outro / enfim, dezenas / trens passando / vagões cheios de gente / centenas / O outro que há em mim é você / você / você».

Richard Zimler aparece de alguma forma em todos os temas da conversa com Alexandre Quintanilha.

Alexandre tinha 15 anos quando, ainda em Joanesburgo, sentiu a primeira paixão por um homem. Tinha 33 (era 1978), estava em São Francisco, no Café Flore, a conversar com outros sobre a literatura de Marcel Proust, quando lhe apareceu Richard Zimler.

Richard, filho de um advogado e de uma bioquímica, ambos judeus, foi jogador de basketball na adolescência, estudou Religião Comparativa e Jornalismo (mestrado em Stanford).

Depois de ter lido no New York Times um artigo sobre a comunidade gay de São Francisco, trocou Nova Iorque pela Bay Area. Chegou sem casa nem trabalho, arranjou um posto numa loja de lingerie feminina, a Victoria ́s Secret.

Naquela manhã de um domingo de 1978, no Café Flore, Richard meteu-se na conversa com Alexandre, puxou por ele. Sentiram que eram um para o outro. Saíram do café, estava a começar uma bela e feliz história de amor, que expõem livremente, com prazer.

Mudaram-se para o Porto em 1990, casaram em 2010, dois meses depois de ser legalmente possível em Portugal o casamento entre pessoas do mesmo sexo. O notário que oficializou o ato levou como presente um disco de música sefardita galega.

***

A primeira vez que eu disse aos meus pais que estava apaixonado por um homem, eles disseram-me «So, that’s great!». A paixão é a coisa mais bonita que há no mundo. Perigosa, mas é boa. Tive muita sorte. Quais são os jovens que podem dizer isto?

Desde logo, sentir-se completamente livre para dizer.

Eu disse que estava confuso.

Com que idade?

A minha primeira grande paixão por um homem aconteceu quando eu tinha 15 anos. Estava no sexto ano do liceu, ia fazer 16 anos.

Tinha tido uma namorada?

Tinha já tido várias namoradas, no sentido de pessoas de quem eu gostava muito. Mas a primeira grande paixão foi por este jovem, que era muito fechado... Parecia um bocadinho o Paul Newman. Era muito bonito de cara, tinha uma cara muito particular. Eu gosto muito daquelas caras que não são nem muito masculinas nem muito femininas. Há qualquer coisa de...

... de andrógino?

Eu apaixonei-me e estava confuso. Foi na altura em que comecei a pensar que achava injusto. Achava a natureza injusta, porque se eu quisesse ter um filho daquele homem, não podia. Estranhei essa injustiça e falei com os meus pais sobre isso.

Livro: "A Última Lição de Alexandre Quintanilha"

Autores: Francisco Sena Santos e Clara Almeida Santos

Editora: Contraponto

Data de lançamento: 9 de outubro de 2025

Preço: € 16,60

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Foram convergentes os dois, o pai e a mãe?

Muito. Sim, sim. E o meu pai disse: «Olha, eu, não sei muito bem o que dizer, para além de dizer que vais ter de crescer. O que der é o que vier, não é?

E apoiaram? Como foi a seguir a contar?

O meu pai perguntou se eu queria falar com alguém que tivesse melhor conhecimento. Eu disse que sim. Falei com um psiquiatra em Lourenço Marques. Eu estava a escrever um diário naquela altura e achava que o diário ia ser uma obra-prima da literatura. Com 15 anos, aquilo ia ser publicado e não sei quê.

Ainda existe esse diário?

Não sei, não sei. Talvez. A minha irmã mais velha mandou-me um pacote de coisas que o meu pai tinha, é capaz de ainda existir. Não sei, tenho de ir ver.

Mas eu achei, na altura, que aquilo ia ser uma descoberta, e dei a ler ao psiquiatra, para não ter de explicar tudo. Ele levou o diário e, passada uma semana, voltei a falar com ele e foi uma espécie de balde de água fria, porque ele disse que o diário era normal.

Mas tinha sido um leitor atento.

Tinha sido um leitor atento, mas achou que aquilo não tinha nada de particularmente preocupante. Era a história de uma pessoa que gosta de outra pessoa e, portanto, está confuso sobre o que quer fazer e, portanto, achava que não havia mais nada a discutir e mandou-me para casa pensar.

Não achou que fosse útil haver continuidade?

Não, não. Eu, eu ainda falei com ele mais uma vez. Mas ele disse que não havia nada com que me preocupar.

Era um psiquiatra português?

Era um psiquiatra português, em 1958 ou 1959. Isto é uma coisa absolutamente extraordinária. Em Lourenço Marques! Um homem com esta capacidade de perceber, que estava 50 anos à frente. A homossexualidade só deixou de ser uma doença mental no dicionário americano das doenças mentais em 1972. Até 1972, a homossexualidade, no dicionário que toda a gente usava – era a Bíblia – era uma doença mental.

É o tempo do escândalo profundo no Reino Unido com Alan Turing, o grande matemático que ajudou a decifrar os códigos das mensagens alemãs durante a II Guerra Mundial e que foi castrado quimicamente em 1952 depois de ter sido descoberta a sua relação com um jovem de 19 anos. Turing acabou por se suicidar em 1954 e a homossexualidade foi crime no Reino Unido até 1967. 

Há também aquele homem nos Estados Unidos, o Cohn, que era muito amigo do McCarthy.

E acham que o McCarthy também era. Portanto, eu tive muita sorte, tive mesmo muita sorte. Quando fui para os Esta- dos Unidos também tive uma namorada de quem gostei muito, uma francesa muito especial, de quem eu gostava imenso, e também vivemos juntos algum tempo, e depois conheci o Richard e foi há 46 anos e não aconteceu mais nada. Quer dizer, a gente ainda é atraído por pessoas quando vê, é normal. Eu costumo brincar com a Maria João Seixas, por quem tive uma paixão muito grande quando era miúdo. O marido dela também era uma pessoa fabulosa, o Fernando Lopes. Eu e o Richard falamos muitas vezes sobre isto. O Fernando foi o primeiro homem português que foi fisicamente carinhoso connosco. Que nos abraçava, nos beijava. Tinha aquela coisa muito afetiva e para nós foi uma revelação... Foi sempre uma pessoa por quem tanto eu como o Richard tivemos sempre uma grande empatia. Porque ele era um homem que também não fazia distinções. Ele gostava das pessoas, e gostava mesmo, o que também não é muito comum. Eu acho que uma grande parte dos homens tem muita dificuldade em falar de coisas muito profundas.

Escrevem sobre o assunto, mas não se expõem, não se revelam, não se fragilizam em frente de ninguém, porque acham que expor é fragilizar. Eu acho que é exatamente o contrário. Mas isto agora é psicologia barata...

Foi lá que encontrou o Richard?

Foi lá que ele me encontrou. Ele é que me desafiou. Toda a gente acha que é o contrário, como eu sou mais velho, que fui eu que o desafiei. Mas não. Estávamos num café, no Café Flore, como o de Paris, na Market Street, muito próximo da Castro. E eu ia lá aos fins-de-semana, muitas vezes, porque era um sítio onde tinha uma série de comida de fim-de-semana muito agradável. Muffins, bagels, dos verdadeiros, não é como os que se comem aqui, que são uma espécie de imitação. Bagels com cream cheese and lox [salmão fumado], que é uma delícia. E tinha um monte de coisas: omeletes com ervas e por aí fora. Eu ia muitas vezes ao fim-de-semana, comprava o San Francisco Chronicle, que era uma coisa deste tamanho [braços abertos] e estava ali a comer e a ler, e um dia ele entra com dois amigos e começámos a olhar um para o outro [risos]. E eu estava a falar com alguém. Olha, estava a falar sobre... Ele goza-me imenso [risos]. Eu estava a falar sobre Proust. Muito intelectual. Muito intelectual. E ele estava sentado e ficámos para aí durante vinte ou trinta minutos a olhar um para o outro. E, depois, a certa altura, essa pessoa com quem eu estava a falar levantou-se, não sei se era para se ir embora, e ele aproveitou, veio até mim e foi muito direto: «You want to go to bed with me».

Assim?

Assim.

Mais nada?

Mais nada. E ele hoje explica e eu percebo. O mundo gay não tem tradição de namorar. A gente aprende a fazer coisas ao namorar. Como é que primeiro toca na mão, como é que não sei o quê. O mundo gay não tem isso, porque não era possível namorar no mundo gay naquela altura. Foi em 78... há 46 anos. Aquela parte de a pouco e pouco, devagarinho, não existia.

Não havia possibilidade.

Não havia espaço para isso. Dois homens ou duas mulheres que quisessem começar a namorar era uma coisa estranha. Ele explica isso hoje e eu acho que ele tem razão. Eu, em Joanesburgo, não era bem a mesma coisa, mas a gente encontrava-se nas discotecas, ou num sítio qualquer, ou na universidade... As minhas relações com várias raparigas de que eu gostei muito, ainda tinham essa parte. Nós líamos poesia, depois íamos passear, depois íamos... Com os homens era muito mais difícil fazer isso, não é? Quer dizer, não é... Agora já há, mas mesmo agora não é muito fácil... Não sei se as famílias também aceitam com a mesma... Cada vez há mais tolerância, não é? Mas, eu costumo dizer, se um filho de uma boa família, no Porto, viesse dizer que é gay, ainda por cima que o amante é negro, isso perturba ainda muita gente. Não é preciso ser gay, basta ser hetero, mas se for gay ainda é mais complicado. Uma mulher lésbica, que seja negra, por exemplo, tem uma vida muito difícil. Incluindo em Portugal.

No vosso caso, foi uma coisa de amor à primeira vista.

Totalmente!

Há uma explicação química para isso? Biológica?

Acho que não. Também não quero perceber. As coisas muito fortes, eu quero deixá-las no domínio do misterioso. Acho que é importante manter o misterioso sem explicar.

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