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Nos últimos anos, a presença de fundos de private equity (PE) em setores da saúde ganhou escala e visibilidade. A atenção pública concentra-se normalmente em hospitais, laboratórios e clínicas de ambulatório, mas é nos cuidados continuados e de longa duração (LTC) — lares, cuidados domiciliários, reabilitação e cuidados paliativos — que a transformação pode ser mais profunda e silenciosa. Com base em três artigos recentes publicados na revista Health Policy (um editorial de enquadramento, um estudo qualitativo sobre a Irlanda e uma revisão comparada de políticas em sete países), este texto responde a duas perguntas: (i) qual é o impacto do PE nos cuidados continuados, (ii) que políticas regulatórias devem os Estados adotar para maximizar benefícios e mitigar riscos.
1) O que está a mudar com a entrada do PE
A entrada de PE na saúde não é um acidente isolado, mas resultado de tendências estruturais: envelhecimento populacional, procura previsível e pouco elástica, regimes de financiamento público estáveis (vouchers, tarifas, per diem), e oportunidades de consolidação em mercados historicamente fragmentados. Em LTC, três movimentos sobressaem:
- Consolidação por aquisições sequenciais (roll-ups): fundos compram pequenas e médias unidades, padronizam processos e marcas, extraem economias de escala em compras, tecnologia e back-office, e ganham poder de negociação junto de pagadores públicos e privados.
- Alavancagem financeira e separação OpCo/PropCo: segregação entre a sociedade operadora (Operating Company) e a detentora dos imóveis (Property Company), permitindo monetizar ativos imobiliários, reduzir capital próprio imobilizado e aumentar returns via dívida e rendas internas.
- Modelos de expansão híbridos nos cuidados domiciliários: além de aquisições diretas, surgem acordos de master franchise e investimentos em grupos internacionais que, por sua vez, replicam o modelo em mercados nacionais.
Estes padrões, descritos no caso irlandês e reconhecidos noutras jurisdições, não são neutros: moldam incentivos operacionais, estruturas de custos, estratégias de preços e, por arrastamento, resultados para utentes e trabalhadores.
2) O balanço de impactos: eficiência, qualidade e acesso
A evidência empírica sobre o impacto de PE em saúde ainda é incompleta e heterogénea, mas a literatura analisada converge num retrato equilibrado — o efeito não é universalmente bom nem invariavelmente mau, depende do desenho institucional, condições de mercado e governança do próprio fundo. Separamos os impactos em três dimensões.
2.1 Eficiência e produtividade
- Ganhos potenciais: a consolidação pode reduzir custos administrativos, melhorar compras e logística, acelerar a adoção de TI (registos, escalas, faturação) e profissionalizar a gestão de desempenho.
- Riscos: foco em margens numa janela de 3–7 anos pode induzir under-investment em formação, staffing clínico e manutenção de ativos. A alavancagem aumenta a pressão por cash flow, podendo privilegiar atividades mais bem pagas em detrimento das menos rentáveis, independentemente de necessidade clínica.
2.2 Qualidade e segurança de cuidados
- Oportunidades: padronização e auditorias internas podem difundir boas práticas, reduzir variação indesejada e permitir monitorização contínua de indicadores de processo.
- Preocupações: em LTC, a qualidade é intensiva em trabalho. Reduções de rácios cuidador/utente e rotação elevada afetam a continuidade e a segurança dos cuidados. A separação OpCo/PropCo pode desalinhar incentivos para reinvestir em instalações. A literatura descreve resultados mistos e grande variação entre operadores.
2.3 Acesso e equidade
- Expansão de oferta: capital para abrir novas camas/unidades, especialmente onde o Estado não investe diretamente.
- Segmentação: operadores PE tendem a preferir geografias e linhas de negócio com melhores tarifas e menor complexidade, arriscando deixar “desertos de cuidados” em zonas rurais ou segmentos com utentes de maior dependência.
Conclusão intercalar: o impacto do PE é contingente. Sem regulação orientada para resultados e transparência de estruturas financeiras, os riscos podem dominar os ganhos, sobretudo em serviços essenciais e intensivos em trabalho, como os de LTC.
3) O que aprendemos com o caso da Irlanda
O estudo qualitativo com executivos e investidores na Irlanda ilumina os mecanismos de atração e as estratégias de entrada/expansão:
- Atração do setor: demografia favorável; receitas públicas previsíveis; mercado fragmentado com espaço para consolidação; e regulação considerada “navegável”.
- Lares de idosos: prevalência do modelo OpCo/PropCo, com transações que libertam liquidez a partir do ativo imobiliário; contratos de arrendamento de longo prazo criam rigidez de custos.
- Cuidados domiciliários: três portas de entrada — investimento em holdings internacionais com operações na Irlanda; aquisições diretas de operadores domésticos; e acordos de master franchise que aceleram escala com menor capital inicial.
Este retrato é útil por três razões. Primeiro, mostra que a financialização em LTC não se resume a “quem é o dono”, mas como a estrutura societária molda os incentivos diários. Segundo, evidencia que o desenho do financiamento público (níveis tarifários, indexação, regras de copagamento) condiciona a viabilidade de staffing adequado e investimento em qualidade. Terceiro, sublinha que a regulação tradicional (licenciamento e inspeção clínica) não chega para captar riscos financeiros sistémicos (alavancagem, riscos de refinancing, dependência de sale-leasebacks).
4) O que os países já estão a fazer – e o que falta
A revisão de políticas em sete países de alto rendimento (Canadá, Alemanha, Finlândia, França, Irlanda, Países Baixos e EUA) revela um padrão recorrente: predominância de medidas de transparência (divulgação de propriedade efetiva, cadeias societárias, contas) e escassez de instrumentos direcionados para comportamentos e resultados. Pouquíssimas políticas avaliaram o seu impacto de forma robusta, e apenas um caso tem foco explícito em outcomes.
Isto sugere três lacunas estratégicas:
- Regulação concorrencial adaptada a roll-ups: operações de aquisição em série, abaixo dos limiares tradicionais de notificação, podem gerar concentração significativa ao longo do tempo sem escrutínio prévio. As autoridades de concorrência precisam de capacidades para avaliar aquisições cumulativas e poder travar estratégias de stealth consolidation.
- Supervisão prudencial “light” para prestadores essenciais: quando a alavancagem e as lease obligations tornam um operador sistémico, o risco de falência pode comprometer a continuidade dos cuidados. Falta uma moldura que monitorize rácios dívida/EBITDA, cronogramas de refinanciamento e covenants críticos.
- Orientação para resultados (e não apenas processos): licenciamento e inspeções focam-se na estrutura/processo, mas utentes e pagadores precisam de métricas comparáveis de qualidade e segurança, publicadas e ligadas a incentivos (por exemplo, pay-for-quality com salvaguardas anti-seleção).
5) Um quadro prático de política pública
Combinando o que se sabe, propomos um pacote regulatório em cinco pilares, com medidas concretas e exequíveis nos horizontes de curto e médio prazo. O objetivo não é “expulsar” o capital, mas condicionar o modelo de negócio para servir fins públicos: qualidade, acesso e sustentabilidade.
Pilar 1 — Transparência forte e útil (não meramente formal)
- Registo de propriedade efetiva e cadeia societária: publicação anual padronizada, incluindo entidades offshore, percentagens e acordos de controlo.
- Divulgação financeira segmentada por unidade: demonstrações com detalhe suficiente para distinguir resultados operacionais (OpCo) e custos/rendas imobiliárias (PropCo).
- Reporte de alavancagem e obrigações contratuais: rácios dívida/EBITDA, calendário de refinanciamentos, sale-leasebacks, management fees intra-grupo.
- Painéis públicos com indicadores de staffing, rotação, agency hours e queixas dos utentes, para reduzir assimetria de informação entre famílias, pagadores e regulador.
Pilar 2 — Salvaguardas de continuidade e prudência financeira
- Regra de “resolução ordenada” para operadores de grande escala: planos de contingência, requisitos mínimos de liquidez e mecanismos de substituição rápida de gestão em caso de incumprimento.
- Limites proporcionais à alavancagem em prestadores com contratos públicos (por ex., escalões de copagamento ou cap de rendas relacionadas com sale-leasebacks imputáveis à tarifa pública).
- Proibição ou cap de dividend recapitalizations e extração de management fees acima de patamares de mercado enquanto não forem cumpridos rácios mínimos de qualidade e staffing.
Pilar 3 — Concorrência e escrutínio de aquisições cumulativas
- Notificação obrigatória de roll-ups: aquisições abaixo dos limiares tradicionais passam a ser notificadas quando o adquirente já controla quota relevante no micromercado (por concelho/região).
- Teste de “capacidade de escolha efetiva”: avaliar não só quota, mas tempo de viagem, barreiras à entrada e diferenciação por níveis de dependência clínica.
- Cláusulas de desinvestimento e hold separate quando necessário para manter diversidade de operadores.
Pilar 4 — Qualidade e trabalho: o coração do LTC
- Rácios mínimos de pessoal e skill-mix baseados em dependência dos utentes, com monitorização eletrónica e auditoria independente.
- Transparência salarial e limites a contratação excessiva via agências, que encarece custos e aumenta rotatividade; incentivos para carreiras e formação contínua.
- Pagamentos por qualidade com salvaguardas: bónus/malus associados a quedas, úlceras de pressão, hospitalizações evitáveis e satisfação de utentes/familiares, ajustados por risco.
Pilar 5 — Dados, avaliação e sunset clauses
- Obrigatoriedade de avaliação ex ante e ex post das políticas específicas para PE, com desenho quase-experimental quando possível.
- Cláusulas sunset: medidas novas expiram em 3–5 anos se não mostrarem valor, para evitar sobre-regulação ineficaz.
- Infraestrutura de dados interoperável entre inspeções, pagadores e regulador da concorrência, reduzindo custos de reporte e aumentando qualidade analítica.
6) Implicações para diferentes perfis de países
Nem todos os sistemas partem do mesmo ponto. Três arquétipos e caminhos práticos:
- Países com forte provisão pública direta (peso elevado de lares públicos): foco em compras e contratos com privados que integrem as salvaguardas acima; experiência pública pode fixar padrões de staffing e qualidade que isotropicamente “puxam” o setor.
- Países com mix público-privado e financiamento por tarifa: prioridade à transparência financeira granular, limites à alavancagem imputável às tarifas e escrutínio de roll-ups; alinhar tarifas com custos realistas de pessoal para evitar race to the bottom.
- Mercados altamente privatizados e fragmentados: além dos anteriores, investir em capacidade regulatória (dados, forensics financeiros, análise de rede societária) e coordenação interagência entre saúde, finanças e concorrência.
7) O que governos e reguladores podem fazer já (próximos 12 meses)
- Legislar “transparência útil”: formato uniforme de reporte OpCo/PropCo; publicação de rácios de pessoal; registo de beneficiário efetivo.
- Lançar task forces de continuidade de cuidados: mapear operadores sistémicos, stress-tests de dívida e refinanciamento, protocolos de intervenção.
- Consulta pública sobre roll-ups: guias para notificação de aquisições cumulativas e testes de mercado a nível local.
- Pilotos de qualidade com incentivos em 2–3 regiões, com métricas comparáveis e auditoria independente.
- Agenda de dados: acordo interinstitucional para partilha e normalização; investimento em equipas analíticas multidisciplinares.
8) Respostas às críticas frequentes
- “Mais regras afastam investimento”: o objetivo não é reduzir capital disponível, mas priorizar capital paciente e alinhado com resultados. Regras claras e previsíveis reduzem incerteza regulatória e discriminam positivamente investidores de longo prazo.
- “A transparência é suficiente”: não. É condição necessária para desenhar políticas, mas só muda comportamentos quando acoplada a incentivos e limites.
- “O problema é só de PE; outros proprietários não têm riscos”: incorreto. Muitos riscos (alavancagem, sale-leasebacks, fee extraction) podem ocorrer fora do PE. As regras devem ser agnósticas ao tipo de proprietário, focadas em riscos e resultados.
Conclusão
O private equity está a alterar de forma significativa a paisagem dos cuidados continuados. Onde há fragmentação, tarifas previsíveis e ativos imobiliários valiosos, o capital vê oportunidade para consolidar, padronizar e escalar. Esta dinâmica pode trazer ganhos de eficiência e expansão de oferta, mas sem um enquadramento regulatório inteligente — que una transparência financeira útil, prudência mínima, escrutínio de aquisições cumulativas, padrões de qualidade e fortalecimento do trabalho — os riscos de degradação de qualidade, fragilidade financeira e segmentação do acesso tornam-se reais.
A boa notícia é que a panóplia de políticas existe é tecnicamente viável. O desafio, agora, é político e institucional: construir capacidade regulatória, testar e avaliar, e ajustar com humildade. Em LTC, onde a dignidade e a segurança de pessoas vulneráveis estão em jogo, o Estado não pode ser apenas observador do mercado; deve ser árbitro e garante — e, quando necessário, jogador que investe diretamente para assegurar continuidade e equidade. O capital privado é bem-vindo; mas o interesse público tem de marcar o ritmo.
Nota metodológica
Este artigo integra evidências de três trabalhos recentes em Health Policy: (i) um editorial que enquadra o crescimento de PE na saúde e identifica benefícios potenciais e riscos — destacando a necessidade de mais evidência e políticas calibradas; (ii) um estudo qualitativo na Irlanda que descreve motivações, estruturas (OpCo/PropCo) e vias de entrada (aquisição, franchising, investimento em holdings); e (iii) uma revisão comparativa das respostas regulatórias em sete países, que encontra foco predominante em transparência e escassez de instrumentos orientados a resultados. A análise aqui proposta traduz essas conclusões em um quadro de política pública pragmático para LTC.
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