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Quarta-feira à noite depois de passar pelo murmúrio entusiasmado das 200 pessoas que esperam que Zipoli suba a palco, nos bastidores encontramos um grupo de jovens músicos a preparar-se para transformar notas em palavras e palavras em música. E, se os objetivos de Miguel Pedro forem cumpridos, transformar o público em leitores.

Nos bastidores, como em qualquer bastidor de qualquer concerto, minis e guitarras dividem espaço com risos nervosos e frases soltas, "tu abres minis com a aliança" e muitas, muitas piadas "Deus ilumina, mas não paga as contas". Ali não há nervosismo, dizem convencendo-se a si próprios, e brinca-se com tudo, inclusive com Deus.

Livre Arbítrio, Zipoli, Padre Miguel Pedro Melo
Livre Arbítrio, Zipoli, Padre Miguel Pedro Melo créditos: Paulo Rascão | MadreMedia

Esse parece ser um dos segredos do sucesso do padre que daí a meia hora subirá a palco debaixo de aplausos: não há tabus. Não há tabus nos temas, nas leituras, nos livros e na relação que tem com os outros. Num ambiente onde muitos se tratam na terceira pessoa a relação com "Missé", como todos lhe chamam, é à base do "tu" e sem rodeios.

Aliás, quando decide juntar toda a gente para explicar que iria dedicar uns segundos no palco a apresentar o projeto, de entre os músicos ouve-se logo um alerta "vê lá não há homilia. Se começares a homilia eu digo 'que assim seja'" e quando o discurso motivacional se começa a demorar volta a ouvir-se em tom jocoso "está aqui uma Ted Talk".

Mas que projeto é este que o padre Miguel Pedro Melo, Missé para os amigos, lidera? O grupo Zipoli, embora envolva muita gente, confunde-se com o missionário jesuíta, no palco assume-se com a naturalidade de quem está habituado aos púlpitos: fala, canta, toca guitarra, e convida o público para uma viagem que é ao mesmo tempo musical e literária. Esta é a estreia do álbum Livro Arbítrio, uma experiência onde a música se cruza com a leitura e a literatura se transforma em companhia.

Livre Arbítrio, Zipoli, Padre Miguel Pedro Melo
Livre Arbítrio, Zipoli, Padre Miguel Pedro Melo créditos: Paulo Rascão | MadreMedia

Cita CS Lewis para explicar que "lemos para sabermos que não estamos sós", e há uma certeza: Miguel não está só. O grupo Zipoli é formado por 25 jovens músicos ligados à Companhia de Jesus e, como em qualquer concerto, cada vez que há um vislumbre de um destes 25 músicos, há acenos e gritos vindos da plateia.

O projeto que integram nasceu da perceção de uma “crise de linguagem” entre os jovens e da necessidade de redescobrir a palavra num tempo de hiperestimulação". Em palco, Miguel Pedro assume-se como um verdadeiro one man show que, entre guitarradas, cita Dom Quixote, Dostoiévski ou O Principezinho, e intercala momentos de humor com reflexão literária. “Estamos a propor uma viagem”, disse ao público, explicando que cada música é uma porta de entrada para grandes obras. O álbum que apresentou naquela noite, e que já se encontra disponível nas plataformas digitais, junta música e literatura como forma de expressão da interioridade humana e de aproximação aos clássicos literários.

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Antes de entrar em palco e homenagear Domenico Zipoli, compositor jesuíta do século XVII, Missé, que agora vive em Roma e integra a Rede Mundial de Oração fundada pelo Papa Francisco, esteve à conversa com o 24notícias. Formado no Conservatório antes de entrar para o sacerdócio e estudar filosofia, compôs todas as letras do álbum inspirado pela carta do Papa sobre a importância da literatura. Explica que quis escrever canções que não fossem religiosas no conteúdo, mas que servissem de convite à leitura. “A autenticidade não se aprende sozinho, aprende-se com outros”, afirma, sublinhando que a literatura é capaz de combater a solidão e de ajudar a “fazer a digestão da vida para além da superficialidade”.

Livre Arbítrio, Zipoli, Padre Miguel Pedro Melo
Livre Arbítrio, Zipoli, Padre Miguel Pedro Melo créditos: Paulo Rascão | MadreMedia

Se por um lado, a música e a literatura acompanham Miguel há muitos anos, foi a carta do Papa que espoletou a inspiração, porque se focava na "importância da leitura na formação humana". E Missé percebe a missiva uma vez que, como todos os leitores, é quem é também pelos livros que leu e tem "a convicção de que quando lemos um texto que nos marca por alguma razão é porque, de alguma forma, sentimos que aquelas palavras nos são úteis, falam de nós. Há qualquer coisa da minha experiência que eu não saberia dizer tão bem antes de ler aquela frase ou antes de ver aquela imagem". Para o padre isto tem muita "força" e acredita que "uma coisa um bocado contra-intuitiva que apercebemos na literatura é que a autenticidade não se aprende sozinho, fechado no quarto. Aprende-se com outros."

É esta a mensagem que tira do single Ler é ser lido com que começa o concerto e que cujo título vai repetindo a cada intervenção. Ao 24notícias lembra que "Homero não foi o homem que ganhou o best-seller naquele ano, vendeu imenso e por causa disso ainda o lemos. Mas sim porque gerações e gerações de pessoas de diferentes proveniências disseram: há alguma coisa daquilo que é humano que nos toca e que queremos passar." E, acredita, que para que outros possam ter essa experiência e sentir essa força "transmiti-la através da música é um convite a dizer, faz a tua experiência, torna-te uma testemunha da força que isto pode ter e como isto pode facilitar".

Livre Arbítrio, Zipoli, Padre Miguel Pedro Melo
Livre Arbítrio, Zipoli, Padre Miguel Pedro Melo créditos: Paulo Rascão | MadreMedia

Um concerto que foi uma experiência espiritual

O discurso de Missé é como as suas músicas, pejado de referências literárias. Lembra o filósofo escocês MacIntyre que dizia que se não lemos histórias, tornamos-nos gagos de sentido. E, por isso, para que os outros não fiquem gagos de sentido este álbum ajuda a "digerir obras para que possam ser de facto corrimão e ajude a subir".

A experiência do concerto podia ter um padre em palco, mas teve muito pouco de religiosa, embora tenha sido muito espiritual. E mesmo antes de entrar em palco, Miguel Pedro lembrou que "independentemente da nossa fé,  Jesus ficou conhecido por contar histórias. E isto é inelutável, ou seja, não há nenhuma maneira de apagar a identidade de Jesus sem apagar o modo de contar histórias." Usa o exemplo de forma a mostrar que não se sente "nada deslocado" naquele ambiente e que "a identidade de Jesus ligada às histórias é provavelmente uma das coisas mais fortes da sua maneira de falar. E, portanto, não me parece nada estranho um padre que fala de histórias".

Não há nada pior que um homem de um só livro

A ligação de Miguel aos livros e às histórias é quase embrionária e a primeira vez que se emocionou com letras foi no momento em que leu as palavras que Hamlet dirigiu à caveira de Yorick. E se com Miguel o ambiente é sem tabus, o 24notícias aproveita o mote e questiona se nos momentos de provação da vida, recorre mais a este tipo de literatura ou aos textos sagrados. Sem pestanejar começa por referir que responde a partir "de uma ótica de fé" e de seguida explica que  de acordo com aquilo em que acredita, "na experiência da leitura da Sagrada Escritura, da Bíblia, há algo que nos diz que Deus fala a partir daqueles textos revelados", "mas isso não restringe a ação de Deus àqueles textos, porque é que Deus não nos pode falar numa música, numa conversa,  no meio de uma cerveja com um amigo?", pergunta.

Durante o concerto, há-de responder à nossa pergunta sem o saber, quando cita um pensamento da Escola de Salamanca na época medieval: não há nada pior que um homem de um só livro.

Livre Arbítrio, Zipoli, Padre Miguel Pedro Melo
Livre Arbítrio, Zipoli, Padre Miguel Pedro Melo créditos: Paulo Rascão | MadreMedia

No palco vai pontuando o discurso com referências à literatura, não há moralismo no discurso, mas há sempre muita moral. Até porque o objetivo é que quem partilha aquele espaço, quem escuta aquelas musicas, saia com vontade de ler, mas mais que isso: tenha "a capacidade de fazer digestão dos livros, para que eles nos ajudem a fazer digestão da vida". E as músicas que escreveu pretendem ser "um testemunho de um leitor", a síntese das obras que leu, "a interpretar, colher, a integrar. E a sentirem-se picados a fazer a sua leitura. A sua integração da obra."

No final, tanto no discurso como nas canções, o padre Miguel regressa sempre à mesma ideia: os livros são companhia, generosidade, corrimão. E, no final, como em todos os concertos, houve aplausos de pé e pedidos de encore. A noite terminou com Oasis e um pedido “a minha alegria seria que hoje alguém saísse daqui e fosse ler”. E com a memória de uma das intervenções de Missé entre músicas, "as grandes obras de literatura nunca terminam como se não houvesse mais nada a dizer".

Livre Arbítrio, Zipoli, Padre Miguel Pedro Melo
Livre Arbítrio, Zipoli, Padre Miguel Pedro Melo créditos: Paulo Rascão | MadreMedia