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Em Portugal os filósofos não são figuras populares nem reconhecidos pela maioria de pessoas, mas em França, onde são ouvidos com atenção, a revista Nouvel Observateur considerou José Gil como um dos 25 maiores do nosso tempo. Isto foi em 2004, três anos antes de escrever “Portugal Hoje; o Medo de Existir” a sua obra mais conhecida e a primeira escrita em português. Nascido em Moçambique em 1939, deu aulas em França, na Holanda e no Brasil e, depois do 25 de Abril, em Portugal. 

O que José Gil escreve reflecte muito uma vivência internacional, embora nuncaa esqueça a sua “portuguesice”, digamos assim.

Pois, é verdade e é curioso como, por exemplo, quando fala de Moçambique, há reflexos de coisas que sente na Córsega. Parece que está a comparar com a infância em Moçambique, que também é um espaço aparte, mas muito mais aberto e até alguma violência nesta relação do corpo com o espaço. 

A Córsega é uma ilha muito pequenina, já estive lá e não gostei. Achei uma espécie de Europa marginal. 

Pois, nunca lá estive. Marginal, no sentido de as pessoas terem uma relação muito forte com a sua terra, é isso? 

No sentido de não se sentirem europeus.  É um pouco o que acontece com a Madeira e os Açores, onde as pessoas não acham que pertencem à Europa.

Sim, é uma vocação de independência? Como essa relação que ele tinha com a terra em Moçambique que é uma relação embrionária de um corpo num espaço. Que nós nem sempre sentimos aqui?  Podemos mover-nos, ir para qualquer lado. E tem esse sentimento, muitas vezes, de não pertencer a lugar nenhum, o que dá liberdade de criar uma espécie de identidade estilhaçada, mas afasta-se sempre da palavra “identidade”.

Também tem esse conceito em relação à língua, ao idioma. Quando começa a comparar a maneira como usa português e francês, realmente não pensa em francês, pensa em português, mas fala e escreve em francês, claro, já foi professor em França.  Acha que a língua portuguesa é mais limitada que a língua francesa, não é? 

Não sei se é exatamente assim, não fala sobre limitação de língua.

Mas diz que a nossa língua implodiu. 

Não, aí está a falar de uma coisa muito pessoal que lhe aconteceu, não é uma questão de língua de forma geral. Podemos dizer que a língua hoje está a desmoronar-se, mas nesse episódio de França, o que ele explica é que até aí tinha um desejo de ser ficcionista e estava a escrever romances. O francês dele era fluentíssimo, mas não é a língua-mãe.

E explica que tem alguma dificuldade em perceber autores que escrevem ficção ou poesia, mas não escrevem na sua língua-mãe, porque, mais uma vez, ele estuda essa relação da língua e do próprio corpo, a forma como os morfemas se formam na infância, e acho que é uma relação carnal que noutra língua não acontece. 

Então, se eu quero expressar o mais fundo que há em mim, como é que eu adoto uma língua que não nasceu na infância no corpo? 

E o que lhe acontece em França é muito curioso, porque ele não encontra nenhuma justificação.  Há até um episódio, em que eu insisto nessa pergunta, mas veio alguma explicação para isso, e ele disse que não. A língua dele, portuguesa, em França, acabou. Ele estava a escrever muito em francês e quer tentar escrever os tais textos voltando à sua língua materna, e é como se a língua tivesse implodido.

Afasta-se da língua de um dia para o outro, presumivelmente.... Porque está diariamente a sonhar, eventualmente já sonhava em francês, Descobre que o edifício da língua desaba, e até encontra uma razão, mas não diz qual é. Escrevia muito bem em português até aí, e perde essa capacidade. 

Isso é estranho. Conheço pessoas que têm várias línguas maternas, quer dizer, que falam três, quatro línguas igualmente à vontade. Às vezes misturam um bocadinho, isso é uma tendência inevitável, porque, por exemplo, se falam português, há palavras inglesas que definem melhor a coisa do que em português.  Eu não me considero capaz de escrever em inglês profissionalmente.

Pois, eu também não. Leio livro técnicos, muitos em inglês, mas tenho dificuldade em ler poesia ou ficção, porque não consigo criar uma relação emocional com o texto.

Penso que é um pouco isso que José Gil diz, também. Depois, o que falamos nos tempos de hoje é do empobrecimento da língua e isso afeta o pensamento, afeta a democracia. Porque a língua é uma arma e é uma defesa, não é? Se eu conheço menos palavras, se me expresso pior, sou mais manipulável. 

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Bom, isso é a velha discussão, se nós não conhecemos uma palavra, não conhecemos o sentido dela, não é? O exemplo de liberdade, se nós não soubermos o que é, a palavra ela não vai querer dizer nada para nós, Isso foi muito explorado pelo Orwell

Se não consigo descodificar o que é que o outro me está a dizer, sou, em princípio, mais manipulável, não é? 

"Liberdade é servidão”, é do Orwell. Portanto, as pessoas não sabem o que é liberdade, para elas é uma servidão.  O ser livre e o não ser é a mesma coisa. 

Nós, os portugueses, não temos muitos filósofos, nem através da história nem atualmente, não é? Somos um bocado fracos em filosofia, não acha? Quantos filósofos portugueses é que conhecemos?

No caso do José Gil, ganhou muita notoriedade com o livro “Portugal Hoje, o Medo de Existir”, que foi absolutamente um fenómeno e continua a ser traduzido em algumas línguas. Saiu de Portugal, Com o indivíduo, o coletivo e as invejas, enfim. E eu penso que foi um livro que quebrou alguma aridez, talvez. É que podemos, muitas vezes, pensar que é filosofia ou uma linguagem densa e fechada, mas foi um livro muitíssimo lido.

Muitíssimo lido, o quê? Milhares, dezenas de milhares?

Não sei se foi lido, mas vendeu muito bem. As tiragens aumentavam dez vezes, superou o Dan Brown, que era o grande sucesso na altura.

Quando ia apresentar o livro, os auditórios estavam cheios para ouvi-lo. Foi, assim, um fenómeno muito curioso e muito fora daquilo a que estamos habituados, mesmo naquele tempo. Hoje ainda se lê menos, enfim, não me lembro de acontecimentos como quando aquele livro saiu.

E porquê? Também tenta pensar um pouco o se passava ali, e muita gente acha que tem a ver com um diagnóstico daquilo que é a identidade portuguesa. 

O que é o “medo de existir”? 

Ele diz que não quis fazer nenhum estudo de identidade, mas de mentalidade, que é diferente. No livro explica a diferença, uma mentalidade é uma coisa quase inconsciente que nos acompanha. Fala das invejas, do apego a privilégios, burocracias, da opressão social. Vivemos uma ditadura, foi feita uma revolução, passamos por muitíssimas mudanças. 

Quer dizer, é da natureza dos portugueses, em qualquer regime, não é?

Sim, e é como se não tivesse havido uma reviravolta, é como se continuássemos a abafar a nossa expressão ainda hoje, continuamente, como se não tivesse havido uma explosão para erguer uma coisa nova. É tudo muito silenciado, não há espaço público, fala muito dessa questão de não termos espaço público, a sociedade civil ouve-se pouco, há muitíssimo mais espaço que não é aproveitado. Estamos a ouvir e a ver hoje continuamente comentadores políticos, sempre em roda do mesmo tema, e a sociedade civil não se ouve, há um silenciamento, ainda há muito, muito medo, enfim. 

Bem, o Fernando Pessoa, em 1913, disse que o principal defeito dos portugueses era o conformismo.

O conformismo, e ele também fala certamente o que dizia o Eduardo Lourenço, não há trágico em Portugal. 

O que o Eduardo Lourenço diz é que o Salazar institucionalizou esse conformismo.  Portanto, passou a ser política de Estado, digamos assim. 

Sim, sim, sim.

E essa questão de não haver trágico, no sentido de é o que temos, enfim, vai-se dando um jeito, vai-se resolvendo aqui e ali, mas depois não há uma reformulação efetiva.

Há aquela expressão portuguesa horrível que é “vamos andando”.  Não estamos a andar, nem estamos parados, há um enorme receio da pessoa se projetar, percebe?

Sim, ele fala muito disso, qual é a vocação humana: é a afirmação de si, ou seja, aquilo que é a expressão da sua singularidade, e essa é uma palavra que se repete ao longo da conversa, vai repetir muitas vezes, que não é uma identidade.

A identidade, para José Gil, é quase uma coisa fixa, uma espécie de barreira.  Quando eu digo, eu sou isto, eu congelo ali. A singularidade é um conceito absolutamente móvel, quase híbrido. Nós somos muitas coisas ao longo da vida.

É a essência, não é? É aquilo que me torna singular, todos nós somos singularidades e podemos ir movendo e abrindo outras coisas, mas normalmente não fazemos isso. Muitas vezes nem sabemos que singularidades temos, ou por medo de as expressar, não as expressamos.  

Nas nossas conversas falamos de uma coisa que acho importante que ele acredita, como muitos, e até vai buscar as escolas todas de autores que a defendem, que há potencial de criação em toda a gente, em qualquer pessoa.

Há potencial de criação sempre.  Que ele se expresse é muitas vezes questão de oportunidade e contexto. Claro que criar é mais difícil se vivemos de uma forma miserável em que não há as bases mínimas, alimento, abrigo. Criar parece, aí, um luxo. Não o deveria ser. A criação não pode ser um luxo.

Mas há pessoas que são muito superficiais, nem sequer pensam no que são ou se poderiam ser outra coisa. 

O número de pessoas que pensam sobre elas próprias é muito pequeno, isto é, que têm consciência do que são singulares e se têm possibilidades ou não.  Se tem consciência de si.

Essa atitude acontece pouco porque as pessoas criam uma imagem bajuladora delas próprias? Que são óptimas, acham que são todas óptimas, mas não vão ao fundo daquilo que são. 

E isso não é só em Portugal, é no mundo inteiro.  Em geral, as pessoas não se conhecem nem se querem conhecer. Nem há a vontade, não é um problema para elas. Querem fazer a sua carreira, querem ter sucesso, isso tudo, mas não pensam nunca o que são interiormente. Não sei se concorda.

Sim, sim, concordo. E podíamos tentar determinar as causas, que serão complexas e muitas. Não sei, mas acho que parte de uma questão da educação que temos, da forma como educamos as crianças, como as criamos. Também da leitura, que não existe, que é cada vez mais um ato de resistência. Como é que nos conhecemos? É sempre um exercício de desaceleração e de sair do superficial para ir mais fundo. E há experiências para o fazer, mas desde logo a leitura é um exercício que ajuda muito. E quem é que lê hoje? 

Pois, as tiragens são ridículas em Portugal. Ridículas. A primeira tiragem de um livro, de um autor que seja conhecido, é tipo 1.000 exemplares.  Se correr muito bem faz-se a segunda edição e... 

E vai-se reduzindo a cada edição.

créditos: Neusa Ayres

Isso mesmo, porque o risco é maior. Acho que a religião também tem muito a ver com isso. Enquanto que no budismo o objetivo é a pessoa conhecer-se e aperfeiçoar-se, a religião católica é uma religião negativa, digamos assim. Que opta... que funciona pelo negativo. Podemos resumir isso na expressão, “é tão bom que parece pecado.” Ou seja, devemos ser restritos em tudo.? Na atividade sexual, em qualquer atividade que dê prazer... Tudo... 

É a imitação de “comportamentos exemplares”. E, portanto, isso também ajuda a que as pessoas não se abram, não se expandem.

E depois, também há muito o que “parece mal”. O que é que os outros vão pensar de mim?  Como é que é que os outros me julgam? Isso vem através daquela cultura de medo do que o outro vai dizer. Mas há um momento na conversa em que vamos a falar até sobre se religião é algo que possa conviver com a filosofia.  E acho que a resposta que o José Gil dá é interessante. Termina com algo como:  “A religião termina a resposta em Deus, e a filosofia não termina a pergunta. É uma pergunta contínua.  Não termina em Deus.”

A religião é uma filosofia, não é? 

É um sistema de crenças.

E é limitativo porque supõe a existência de um ser superior. Acho que isso é o dogma de todas as religiões. Só o budismo não é assim.

Porque o budismo abre o caminho para uma individualidade, para a procura interior. Posso conhecer-me e aperfeiçoar-me cada vez mais. Esse caminho não tem fim e não tem uma imposição terceira porque eu é que escolho o meu caminho. Não sou ainda muito conhecedora da filosofia do budismo, mas entendo que é assim.

Os muçulmanos e os cristãos são exatamente o contrário. Eu devo fazer aquilo que a lei religiosa diz que se deve fazer e não posso transgredir.  A transgressão é muito mal vista, para dizer o mínimo. 

Sim. E abafa. O José Gil falará, por exemplo, dos escândalos na igreja, dos abusos sexuais de menores, de como é intolerável nós dizermos, enfim, que somos uma democracia e aceitarmos esse silenciamento e esse abafamento contínuo. 

Bem, mas nisso a maioria dos muçulmanos é pior. Se pensarmos, por exemplo, na maneira como em alguns países muçulmanos tratam as mulheres. É uma coisa que brada ao céu. Bradar ao céu é uma expressão um bocado idiota neste caso. 

José Gil apontará como mesmo as democracias são construídas em velhos sistemas de dominação e opressão da mulher pelo homem. E quando a democracia recua, imediatamente há retrocessos nos direitos das mulheres. É necessária uma profunda reformulação.

José Gil fala também na demência do progresso, das novidades técnicas que são boas e acabam por se tornar más. Isso é uma coisa que já o Leonardo da Vinci tinha percebido.  Diz-se que inventou o submarino e depois destruiu os desenhos porque achava que o submarino ia ser usado para o mal.  Não ia ser um benefício.

Também aconteceu com Oppenheimer, com as fórmulas da bomba atómica. Atravessamos graves crises, a técnica sem ética é usada para fins de morte, não de vida.

Quer dizer, há vários tipos de autodestruição. Pode ser a poluição, pode ser as guerras.  Continua a haver guerras. É inacreditável. Não há um dia na história do mundo que não haja uma guerra em alguma geografia. Nós só falamos atualmente da guerra da Ucrânia e de Israel, mas há dezenas de outras guerras, sobretudo civis, em muitos países.

E um genocídio em curso. E a humanidade não questiona. Não aprendemos nada com a história.

Voltamos ao medo: o que podemos fazer? Como grande pensador e professor, José Gil aponta-nos formas de combater esse medo: através do amor, do humor, e da arte. A análise acutilante que faz disseca angústias mas, creio, pequeninas possibilidades de esperança. Como dir-nos-á neste livro, livro que creio ser um tesouro para os leitores: viver é ter esperança.

 E a humanidade não questiona.

 Nada. Não aprendemos nada com a história.