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“A pós-verdade não significa trocar a verdade pela mentira”, esclarece. “Significa que a diferença entre a verdade e a falsidade deixa simplesmente de ser relevante.” No espaço público atual, o que vale é a eficácia retórica, aquilo que emociona ou mobiliza, e não a verificação factual. A verdade passa a ser um “aspeto secundário”, um detalhe descartável.
O fenómeno não é sinónimo de mentir nem se confunde com desinformação, embora ambos se alimentem mutuamente. Na pós-verdade, explica André Barata, afirmações verdadeiras e falsas têm o mesmo destino: são dispensáveis assim que deixam de ser úteis. “Se um político diz hoje uma coisa e amanhã o seu contrário isso já não tem grande impacto. Mesmo que um polígrafo prove a falsidade, tem pouco impacto na realidade.”
O que mudou?
O filósofo aponta para um desmantelamento do espaço público, historicamente o lugar de mediação, validação e responsabilização democrática, "A democracia exige tempo, exige que as coisas sejam discutidas, que as vontades sejam formadas através de debate público". E a transição das conversas públicas para as redes sociais coincidiu com outro fenómeno: a aceleração do tempo social. E essa aceleração retirou-nos o intervalo necessário para pensar.
“Vivemos num presente instantâneo que não acomoda o tempo do raciocínio”, afirma. “As redes sociais não são necessariamente um novo espaço público, são um meio de comunicação que nos habitou à velocidade e ao imediatismo da emissão.”
A ascensão das redes sociais alterou de forma estrutural o modo como formamos opiniões. “São um meio, mas não uma mediação”, sublinha. Se nos media tradicionais existe um compromisso público com critérios de validação, nas redes sociais esse compromisso desaparece, e com ele desaparece também o filtro entre opinião informada e opinião arbitrária.
O resultado é uma cultura onde o direito à opinião parece significar que todas as opiniões são igualmente válidas. “Dizer a alguém que o seu argumento é inválido passa a ser visto como um ataque à liberdade de expressão”, nota André Barata.
Sem mediação, a divergência deixa de ser discutida e passa a ser disputada: um confronto de impressões, emoções e demagogias onde a verdade factual é apenas mais um elemento, frequentemente o menos valorizado.
Um fenómeno novo e combustível para o populismo
A manipulação e a propaganda sempre existiram, mas a pós-verdade é, para o professor, um fenómeno novo. Surge no início dos anos 2000, alimentada por transformações profundas no espaço público e na tecnologia, e ganha visibilidade global em 2016, com o Brexit e a eleição de Donald Trump, ano em que a palavra “pós-verdade” se torna palavra do ano pelo dicionário inglês Oxford. Como o professor e colunista do 24notícias Francisco Sena Santos escreveu na altura, ambas as campanhas estavam "recheadas com afirmações e slogans que depois não resistiram ao fact checking, a verificação dos factos enunciados, mas isso não valeu como o essencial, porque o que se impõe é a crença de quem ouve ou lê.".
Segundo o filósofo, o discurso populista é um discurso pós-verdade, “É por isso que é possível acolher dentro do discurso populista, teses negacionistas, relativamente a anti-vacinas ou teorias terraplanistas. Se não tenho a verdade como um validador, e se não tenho a validade do argumento como um validador, o que é que me resta para validar a minha opinião face à de outra pessoa? Apenas a força. Apenas gritar mais alto, meter emoção, meter demagogia". Acaba-se a trabalhar a palavra como um ato de força, "É uma reação instantânea. E eu diria mesmo, até nos debates, porque a gente fala do populismo, mas até no debate contra o populismo, muitas vezes estamos a cair na armadilha de ser simplesmente reativo", avisa.
Se a pós-verdade cria um ambiente onde os factos deixam de ter peso, a desinformação floresce. Mas o professor da UBI recusa a ideia de que seja a causa do problema. “A desinformação sempre existiu. O que mudou foi o ambiente: tornou-se confortável desinformar porque já não há consequências.”
Num espaço público fragilizado, a desinformação deixa de ser um ataque ao sistema, torna-se um sintoma dele. “A desinformação é uma consequência da pós-verdade”.
Para além da ausência de mediação, há dois elementos que aprofundam o fenómeno: os algoritmos e as bolhas sociais. Nas redes, cada utilizador recebe sobretudo conteúdos que confirmam as suas convicções. O espaço público, antes comum, fragmenta-se em “pequenos mundos à medida de cada um”, onde a divergência não se debate, choca. "O algoritmo não é como ir à rua e olhar para o mundo".
A isto junta-se a presença crescente de bots (programa de computador que automatiza tarefas repetitivas, substituindo ou imitando a ação de um ser humano) e contas automatizadas, que simulam pessoas reais e intervêm no debate público. “A pós-verdade não está só no que é dito, mas também em quem o diz”, resume André Barata.
A ausência de mediação, a perda de tempo para pensar e a fragmentação do espaço comum criam uma tempestade perfeita para a erosão democrática. Mas André Barata não culpa as redes sociais em si. “O problema não é existirem redes sociais. O problema é existirem sem um espaço público que as acompanhe.”
À pergunta se a pós-verdade pode matar a democracia, foi claro na resposta: "Pode. A democracia tem um vínculo muito importante com a ideia de verdade, se não tivermos esse vínculo, ela acaba por matar a democracia".
Quais as soluções para a conter?
"É uma pergunta para um milhão de dólares". Contudo, defende três linhas de ação: regular plataformas, garantindo transparência e responsabilização; reforçar a literacia mediática, ensinando a ler informação e não apenas a consumi-la e desacelerar o debate, devolvendo tempo ao pensamento, ao confronto de argumentos e à deliberação.
"Há uma crise que atravessa o jornalismo, as pessoas já não compram os jornais, isso vai desmontando o espaço público. Em questões éticas, o professor diz ser necessário "resistir à adesão imediata". Mas diz que é sobretudo uma questão política, "Os partidos políticos deviam ter um plano de regeneração de negócio da imprensa, garantindo que há financiamento para pagar bem a jornalistas e para fazer reportagens", e que devem existir "respostas, que não tenham nada a ver com a reação ao populismo, mas responder ao problemas reais que frustram as pessoas".
Para aprofundar mais sobre este tema, o professor académico deixa duas sugestões literárias: “A era do capitalismo de vigilância” de Shoshana Zuboff e "The Post-Truth Era: Dishonesty and Deception in Contemporary Life", de Ralph Keyes.
*Editado por Ana Maria Pimentel
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