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CASA
O dia começa exatamente como devia.
É verão, e a primeira luz da manhã entra através das cortinas. A nossa cama continua quente do sono da noite. Ouço um galo a cantar lá fora, no pátio da quinta. Sinto o cheiro a bacon a vir do andar de baixo, acompanhado do som das panelas ao lume e das vozes suaves e sonolentas dos pais do Tom a conversarem.
Sei, desde o momento em que acordei, que o dia vai ser perfeito.
O Tom ainda ressona ao meu lado. Levanto-me, sacudo as últimas marcas de sono e vou cheirá-lo. De manhã, ele tem um aroma muito próprio: atordoado, quente e embriagado de sono — todo ele é o Tom.
Eis a minha primeira tarefa da manhã: acordá-lo. Faço-o sempre da mesma forma, lambendo-lhe a cara. Adoro lamber-lhe a cara. É a melhor parte do dia.
— Ui! — geme o Tom. — Que nojo, Rebelde.
Esse sou eu. Sou o Rebelde. Foi o nome que o Tom me deu. Ele limpa a baba da cara e abraça-me. Adoro quando me faz isso.
— Seu cão velho e parvo — murmura.
Por esta altura, talvez deva confessar uma coisa: sou um cão.
Mas não sou um cão velho; só tenho cinco anos. E também não sou parvo. Sou um bom cão. Sei disso, porque o Tom está sempre a dizer-me que sou um bom menino, e o Tom sabe tudo.
De qualquer forma, não podemos ficar na cama. Temos tantas coisas para fazer! Normalmente, espero pelo Tom antes de ir a qualquer lado, mas o cheiro a bacon significa que há algo importante a acontecer na cozinha, e levo estas descobertas muito a sério. Salto da cama e desço as escadas a correr, escorregando no pavimento.
Lá está o pai, sentado à mesa, já vestido para o trabalho na quinta. Quando passo por ele, farejo-lhe a roupa — fabulosa, com o aroma a lã de ovelha, leite azedo e lama. Gosto mesmo desse cheiro. A mãe está atarefada de volta do fogão. Limpa as mãos ao avental e remexe uma grande chaleira de cobre.
Cheira a chá, a sabão, a batatas, a papas de aveia, a carne de borrego e a molho, tudo misturado. Gosto ainda mais desse cheiro.
— Ai! Rebelde! — exclama a mãe, afastando-me. — Toma, e deixa-me em paz, sim?
Ela tira algo da frigideira e atira-o ao chão. Um courato! Sim, sim, sim, sim! Abocanho-o do chão de mosaicos, tão rico em fumos, suculento, crepitante de gordura e suficientemente quente para me queimar a língua.
Eu tinha razão. O dia vai ser perfeito.
O Tom desce as escadas, ainda a esfregar os olhos ensonados. Sentamo-nos na alegre confusão da cozinha e comemos em silêncio até o dia começar a sério. Não me é permitido mendigar à mesa, mas se me esconder debaixo da cadeira do Tom, ele dá-me restos do pequeno-almoço às escondidas, sem que a mãe e o pai reparem. É a melhor parte do dia.
— Obrigado por fazeres isto — digo-lhe. — Adoro-te.
O Tom não me entende. Pensa que estou apenas a ladrar ou a rosnar. Mas, no fundo, acho que sente o que quero dizer. Tal como eu percebo que ele gosta de mim quando me coça a cabeça ou me dá palmadinhas nos flancos, ou sorri para mim. Sempre foi assim. Nunca precisámos muito de palavras.
O galo canta outra vez e o pai levanta-se.
— Isso mesmo! Anda lá, rapaz. Não vamos deixar escapar-nos o melhor do dia.
O pai diz isto todas as manhãs.
— Está bem, está bem — suspira o Tom. Ele também suspira isto todas as manhãs.
Ele engole o resto do pequeno-almoço e corremos juntos para a rua. E lá está tudo, num só instante perfeito: o nascer do Sol sobre os campos, os primeiros cheiros da quinta, as primeiras rajadas de vento sobre as montanhas, todo um dia inteiro diante de nós.
O que eu disse antes estava errado. Esta, sim, é a melhor parte do dia: o primeiro momento em que vejo a quinta e me lembro da sorte que tenho em viver aqui.
Adoro a quinta. Vivi nela todos os dias da minha vida, desde que o Tom me encontrou quando eu era um cachorrinho e me trouxe com ele. Nunca saí daqui, nem uma vez. Não passei sequer pelo portão da frente.
Na quinta, os dias são todos iguais. Primeiro, vamos ao Campo de Baixo ver como estão as ovelhas. O Tom, a mãe e o pai são criadores de ovelhas. O Tom diz que, por aqui, todos têm ovelhas. As pessoas fazem roupa com lã, e vendem leite e queijo para subsistirem. Nos últimos anos, a vida está mais difícil, com os impostos que o Rei cobra. O Tom e o pai ordenham e tosquiam as ovelhas, enquanto eu ando de um lado para o outro a certificar-me de que está tudo bem.
— Bom dia, Agnes! Como está esse casco, Beth? Estás com bom ar, Kitty!
— Temos fome — respondem as ovelhas. — Temos fome, temos fome, temos fome.
A conversa fica-se por aqui. As ovelhas têm pouco a dizer em sua defesa, mas gosto de falar com elas na mesma. Não custa nada ser bem-educado.
Não sou um grande cão pastor. Sou pequeno, tenho as pernas curtas, não consigo correr muito depressa e o meu ladrar não mete medo a ninguém. O pai está sempre a dizer que gostava que o Tom tivesse arranjado um cão de quinta a sério, em vez de um vadio velho e desalinhado como eu. Sei que não diz isso a sério, porque, quando ninguém está a ver, ele coça-me atrás das orelhas e sussurra-me que sou o melhor cão do mundo.
O Campo de Baixo é onde costumo encontrar a Priscila, a dormir debaixo de uma árvore. A Priscila é a gata da quinta. Não pode entrar em casa — se tentar, a mãe expulsa-a com o atiçador do lume —, por isso, vive ao ar livre, desde sempre. Cheira a pó e a flores velhas.
— Bom dia, Priscila! — saúdo-a, alegremente. — Vai-te embora — murmura ela.
A Priscila é sempre assim.
— Belo dia para esse humor — respondo-lhe. Ela abre um olho amarelo e olha-me fixamente. — O que há aqui de bom?
Faço uma pausa para pensar.
— Só tudo?
— Rebelde! Anda lá! — grita o Tom.
O Tom precisa de mim! Sou um bom cão, por isso vou sempre quando ele me chama. Largo a correr e a Priscila devolve-me um riso trocista.
— Sim, lá vais tu, cão da quinta. O teu dono está à espera.
Paro. Odeio quando ela diz estas coisas.
— O Tom não é o meu dono.
— Ai, sim? Então, porque fazes tudo o que ele manda? — A Priscila suspira, espreguiçando-se com desdém. — Pobre Rebelde. Não se passa muita coisa no andar de cima, pois não?
Que nervos! A Priscila é tão parva às vezes! Não há andares no campo! Corro atrás do Tom, rindo-me o caminho todo.
Com a ordenha e a tosquia terminadas, a mãe traz-nos o almoço. Na verdade, é só para o pai e para o Tom, porque os cães não almoçam. Eu sei disso — estão sempre a dizer-me que não peça nada e os deixe em paz. O almoço consiste, normalmente, em fatias de tarte fria, maçãs frescas e queijo de ovelha azedo. Cheira tudo tão bem. O Tom espera que o pai não esteja a ver e atira-me um bocadinho. Pensa sempre em mim. É tão inteligente. Gosto muito dele.
Depois do almoço, levamos as ovelhas do Campo de Baixo para o Campo de Cima, porque é lá que cresce a melhor erva. O trabalho do Tom é ficar com elas até ao pôr do Sol, para garantir que não fogem, nem são roubadas por ladrões, nem comidas por lobos. Faço-lhe companhia, mesmo tendo medo de lobos, mas é o meu trabalho. Para onde o Tom for, eu também vou. Sou o cão dele e ele é o meu menino. Morrerei por ele, se for preciso.
Logo, o pai volta para casa e ficamos só eu, o Tom e as ovelhas durante horas. Podemos fazer o que qui- sermos! Primeiro, encontro um pau e arrasto-o até perto dele, para mo atirar.
O Tom suspira.
— Rebelde, porque escolhes sempre o maior pau que encontras?
— Uush hhrrow ihh — murmuro com a boca cheia de madeira.
— Vai buscar um mais pequeno.
E faço o que ele pede, porque sou um bom cão. O Tom pega no pau.
— Queres que o atire?
— Sim, por favor — respondo, entusiasmado. — Este pau aqui? — pergunta ele com um sorriso, agitando-o. — A sério?
A minha cauda abana freneticamente. Adoro quando ele faz isto.
— Sim, atira agora, por favor. — Tens a certeza?
Isto é tão bom.
— Sim!
— Está bem, está bem, mas não ladres mais.
O Tom atira-o e eu trago-o de volta. E repetimos tudo, sem parar. Às vezes, o Tom persegue-me, e outras vezes, persigo-o eu. Também corro sozinho, a ladrar de alegria, porque quando estou feliz sabe- -me muito bem correr. Mas faço-o principalmente porque o Tom se ri, e é o melhor som do mundo. Depois, deito-me de costas para ele me coçar a barriga. Adoro quando ele me faz isso.
— És um «barriguita» — diz-me, com carinho.
É o nome especial que ele me dá. É um pouco como «Rebelde», mas tem que ver com a minha barriga. Foi o Tom que o inventou. Ele é mesmo esperto.
Eu e o Tom, só nós os dois. Esta é a melhor parte do dia. Desta vez, falo a sério.
Ficamos ali até ao anoitecer. O Sol põe-se sobre as montanhas, tingindo o céu de vermelhos e roxos. Do Campo de Cima, conseguimos ver o mundo inteiro: todas as casas e quintas ao longe, que se estendem até às montanhas.
O Tom tira o bloco de desenho e o carvão que traz sempre na mochila e começa a desenhar. Ele adora. Encosto-me ao seu peito e sorvo o calor do seu corpo enquanto ele desenha.
— Vês, Rebelde? Somos nós os dois a escalar aquela montanha.
O Tom desenha-nos sempre, a mim e a ele. É assim que deve ser. Ele fala enquanto desenha, com as palavras a saírem tão facilmente como as linhas saltam para o papel. Fica mais feliz quando desenha. O Tom é ainda mais Tom quando desenha do que quando está apenas a dormir.
— Dizem que há uma queda-d’água no outro lado da montanha, maior do que a de Brennock. E que crescem flores selvagens de ambos os lados, como uma carpete, que se estende até ao mar. Margaridas a perder de vista! Consegues imaginar isso, Rebelde?
Não, não consigo. Nunca vi uma cascata, nem o mar. Nunca saí da quinta. E nem sei bem o que é uma carpete.
O Tom também nunca viu o mar: o mais longe que ele se deslocou foi ao mercado em Connick. Está sempre a falar dos sítios diferentes que um dia irá visitar, mas penso que não fala a sério. Porquê partir quando tudo o que precisamos está aqui mesmo?
Demoro algum tempo a perceber que o Tom parou de desenhar. Ele observa qualquer coisa.
Ao longe, entre as árvores, vê-se um pequeno troço da estrada para Connick. Dois homens caminham por ela. Trazem casacos dourados, botas e cintos pretos brilhantes. E carregam mosquetes.
São os guardas do Rei. É normal vê-los a patrulhar as estradas, aos pares ou em trios. O Tom explicou-me que eles andam a verificar se as pessoas que circulam pela estrada têm licença. Disse-me que, se não pagarmos os impostos a tempo, os guardas tiram-nos a licença, e, assim, não podemos usar as estradas, nem vender no mercado; logo, não ganhamos dinheiro. E, sem dinheiro, não há bacon ao pequeno-almoço.
E os guardas não fazem só isso. Também se certificam de que ninguém anda na rua depois do anoitecer, e que ninguém critica o Rei. Se descobrirem que dissemos alguma coisa contra ele, levam-nos para longe. E nunca mais voltamos. Ouvi a mãe e o pai a falarem sobre isso em voz baixa quando o Tom não estava por perto.
Eles contavam que antigamente não era assim. Antes do Rei, as pessoas podiam dizer o que quisessem. Mas quando ele chegou ao poder, decidiu que precisava de tudo só para si. Algumas pessoas tentaram resistir, os chamados «Vermelhos», mas não tiveram hipótese contra os guardas e as suas armas. Foram todos levados. Agora, ninguém resiste, e os guardas patrulham as estradas, e esse é o estado geral do reino.
Ouço um estalido agudo e quebradiço ao meu lado, como um ossinho a partir-se. O Tom aperta o carvão com tanta força que este se desfaz, espalhando pó preto por cima do belo desenho.
— Que chatice! — murmura, zangado. — Tom! Jantar!
Ouço a mãe antes do Tom, porque os meus ouvidos são melhores. Corro a ladrar, porque isto é muito, muito importante.
— Está bem, está bem! — murmura ele. — Calma, Rebelde.
Não, não consigo ficar calmo. Não posso ficar calmo. O nosso trabalho terminou por hoje. Agora, sim, vem a melhor parte do dia — a verdadeira melhor parte.
O Tom reúne o rebanho e leva-o de volta para o Campo de Baixo. Eu vou à frente, com o nariz erguido, à procura de um cheiro especial. E lá está ele, a sair da chaminé, como uma fita dourada, a serpentear pelos campos na minha direção.
Guisado. Guisado de borrego: profundo, brilhante, rico. Guisado de borrego, a ferver no fogão abafado, lá em cima. Guisado de borrego com cenouras e molho espesso, servido em tigelas de barro. Guisado de borrego significa ossos de borrego. Ossos de borrego significam medula. E medula significa um jantar fantástico e delicioso para cães bonzinhos como aqui o Rebelde.
Eu tinha razão desde o início: hoje estava a ser um dia absolutamente perfeito.
Quando o Tom chega a casa, já eu arranho a porta a choramingar. Ele abre-a, e entro a correr. A cozinha brilha de dourado, jubilante com o cheiro a borrego. Corro para a minha tigela e lá está ele! Um osso de borrego acabado de sair da panela, envolto em vapor e a cintilar com gordura. Fico tão feliz que dou voltas em círculos e lambo cada centímetro do osso. Guisado, guisado, guisado, guisado, guisado!
— É outra vez guisado, não é? — suspira o Tom, deixando-se cair na cadeira.
— Cala-te — ralha a mãe, batendo-lhe levemente com a colher. — Tens sorte por termos alguma coisa para comer. Há muitos por aqui que não têm nada.
— Eu sei — responde o Tom em voz baixa.
— Os guardas andavam na estrada esta tarde — comenta o pai, comendo alegremente.
A mãe encolhe os ombros.
— Andam sempre na estrada.
— Mas nunca com tanta frequência. Nem tantos.
E não por aqui, tão longe do Castelo Alto. — O pai rapa a tigela com a colher. — Deve estar a acontecer alguma coisa importante.
— Isso é que seria uma novidade — murmura o Tom.
— Come o teu guisado — aconselha a mãe. Com o jantar terminado, temos o dia feito. Subo as escadas a correr, antes do Tom, para lhe aquecer a cama. É outra das minhas tarefas importantes. Ele vem atrás, mais devagar, despe a roupa de trabalho e deita-se ao meu lado. Não apaga logo a vela, como faz normalmente. Fica ali, a olhar para o teto.
— Margaridas a perder de vista — suspira ele.
Ele pensa em coisas tristes. Nos últimos tempos, faz isso muitas vezes. Aproximo-me dele para que saiba que estou ali, e que estarei sempre. Porque sou o cão dele e ele é o meu menino, e amo-o. Ele pousa a mão nas minhas costas, e o peso suave da sua palma é o peso mais perfeito que existe.
Quando a respiração do Tom se torna lenta e regular, e o seu corpo se afunda suavemente na cama, sei que o meu dia está terminado e que posso dormir como um bom cão.
Estava enganado todas as outras vezes. Este, sim, é o melhor momento do dia: eu e o Tom, juntos debaixo dos cobertores, quentinhos e seguros, sabendo que o dia foi bom, e que o de amanhã será igual. Que temos tudo o que precisamos, e que teremos sempre, porque nada na quinta irá mudar.
Porque haveria de mudar, se já é tudo tão perfeito?
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