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O papa em face da modernidade

O papa da paz perante os conflitos

Conservamos ainda nos nossos ouvidos aquela voz fraca mas sempre corajosa do papa Francisco que abençoava Roma, o papa que, naquela manhã de Páscoa, abençoava Roma e dava a sua bênção ao mundo inteiro. Permiti‐me que dê prosseguimento àquela mesma bênção: Deus ama‐nos, Deus ama‐vos a todos, e o mal não prevalecerá! Estamos todos nas mãos de Deus. Portanto, sem medo, unidos de mãos dadas com Deus e uns com os outros, sigamos em frente! Somos discípulos de Cristo. Cristo vai à nossa frente. O mundo precisa da sua luz. A humanidade precisa d’Ele como ponte para poder ser alcançada por Deus e pelo seu amor. Ajudai‐nos também vós e, depois, ajudai‐vos uns aos outros a construir pontes, com o diálogo, o encontro, unindo‐nos todos para sermos um só povo sempre em paz. Obrigado, papa Francisco!

A queda do Muro de Berlim e o colapso da União Soviética em 1989, em que o papa polaco João Paulo II desempenhou o seu papel, deram início a uma época cheia de incertezas, mas também de esperança. A cortina que separava o Leste do Oeste, a libertação de muitos países oprimidos pela União Soviética e o fim do perigo nuclear deram à humanidade uma esperança bem fundada.

O influente historiador e sociólogo norte‐americano Francis Fukuyama defendeu que, após o sucesso do capitalismo e o fim do comunismo, a história chegara ao fim. No seu livro O Fim da História e o Último Homem, publicado em 1992, defendeu que o fim da luta de ideologias e a vitória do liberalismo trariam uma paz duradoura ao Ocidente. Depois de um século XX marcado por genocídios, pelo Holocausto, pela Revolução Russa e por duas guerras mundiais, o século XXI seria, comparativamente, um paraíso de paz.

O modelo das democracias liberais havia triunfado, e, de facto, durante alguns anos, surgiram novas democracias por todo o lado, especialmente na Europa de Leste.

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Fukuyama chegou a afirmar que não se tratava apenas do fim da Guerra Fria ou de uma nova etapa, mas do fim da História enquanto tal e que as ideologias humanas deixariam de evoluir.

Curiosamente, outro historiador expressou a sua própria teoria sobre o fim da Guerra Fria, e revelou‐se notavelmente acertada. Samuel Huntington falou do choque de civilizações. Se o mundo do século XX fora dominado pela civilização ocidental e cristã, o século XXI assistiria a um conflito interminável entre diferentes formas de interpretar o mundo.

Não tardou muito a que tal acontecesse no mundo islâmico, onde surgiram grupos terroristas antiocidentais que abominavam a cultura capitalista que dominava o mundo e pretendiam regressar à pureza da religião islâmica.

A História não se deteve no século XXI, como previsto. Apenas um ano mais tarde, a 11 de setembro de 2001, a Al‐Qaeda, liderada por Osama Bin Laden, levou a cabo um ataque às Torres Gémeas, em Manhattan, e ao Pentágono, enviando uma mensagem relativa ao início deste choque de civilizações.

Nesse mesmo ano, o presidente George W. Bush deu início à guerra e invasão do Afeganistão para capturar Osama Bin Laden e destruir o regime talibã que era seu cúmplice.

Dois anos depois, em 2003, eclodiu a Segunda Guerra do Iraque, a pretexto de que o seu ditador possuía armas nucleares, um conflito que desestabilizou a região e levou à criação do Estado Islâmico, ou ISIS.

A Primavera Árabe, que derrubou várias ditaduras, foi encarada pelo Ocidente como o triunfo da democracia, mas, entre 2010 e 2012, muitos países transformaram‐se em projetos falhados ou ditaduras islâmicas.

As guerras que resultaram destes acontecimentos levaram à deslocação de centenas de milhares de pessoas e a crises migratórias com origem na Síria e no Afeganistão, tendo a Europa como destino, à criação de campos de refugiados na Turquia e na Grécia e ao desenvolvimento de um espírito cada vez mais nacionalista na Europa, a qual temia uma enchente de pessoas provenientes desses países estrangeiros.

Enquanto o euroceticismo e a extrema‐direita cresciam na Europa, as guerras entre potências regionais aumentavam, e a China e a Rússia ganhavam cada vez mais poder e protagonismo.

Por outro lado, a grave crise financeira de 2008, também chamada por alguns de «crise da ganância», aumentou a desigualdade nos países ocidentais e originou o regresso de ideologias como o marxismo ou o fascismo, que contribuíram para aumentar a crispação nas democracias ocidentais.

O conflito israelo‐palestiniano agravou‐se após o fracasso dos acordos de paz por territórios e a morte de Shimon Peres. A 4 de novembro de 1995, Yitzhak Rabin foi assassinado por um extremista judeu após a assinatura dos Acordos de Oslo de 1993, nos quais ambos os Estados se reconheciam mutuamente.

Enquanto a Cisjordânia era subjugada e aceitava a paz, os serviços secretos judeus, a temível Mossad, financiavam um grupo radical chamado Hamas para lutar contra a Organização de Libertação da Palestina (OLP) nos territórios de Gaza, mas este grupo tomou o poder na região e começou uma guerra aberta contra Israel.

Benjamin Netanyahu não prosseguiu na via da paz durante o seu primeiro mandato, mas no segundo, depois de ter feito um acordo com os ultraortodoxos, a sua política radicalizou‐se ainda mais.

Os atentados de 7 de outubro de 2023 causaram mais de 1195 mortos e 251 cidadãos judeus raptados. O seu objetivo era pôr fim às negociações entre a Arábia Saudita e Israel.

A guerra que se seguiu em Gaza provocou mais de 5000 mortos, segundo os responsáveis do Hamas, e uma crise humanitária sem precedentes, dividindo os aliados europeus e os Estados Unidos na tomada de medidas para pôr termo à carnificina.

Em 2014, a Rússia anexou a Crimeia e iniciou uma guerra discreta em Donetsk e Luhansk. Em 2022, Vladimir Putin justificou uma invasão maciça da Ucrânia com a perseguição da comunidade russa no país. Embora a invasão tenha falhado, deu origem a uma longa guerra de desgaste.

A Europa e os Estados Unidos apoiaram a Ucrânia e sancionaram a Rússia pela invasão, embora isso não tenha posto fim à guerra. Esta guerra já resultou em centenas de milhares de pessoas deslocadas e dezenas de milhares de mortos. É mais um conflito que o novo papa Leão XIV terá de enfrentar.

Outros conflitos pontuaram o mundo desde a viragem do terceiro milénio. Além da guerra civil no Sudão, das lutas dos grupos islâmicos na Nigéria, da guerra civil no Iémen e do conflito na Etiópia, a pandemia de 2020 afetou o mundo inteiro e empobreceu ainda mais muitos países em desenvolvimento.

A paz parece mais distante do que nunca. Nos capítulos anteriores, comentámos que há mais conflitos armados hoje do que na viragem do século XX.

O papa Francisco mobilizou o corpo diplomático para tentar travar vários conflitos, desde a situação na Venezuela à mediação na Ucrânia e em Gaza.

Livro: "Leão XIV"

Autor: Mario Escobar

Editora: Nascente

Data de lançamento: 25 de agosto de 2025

Preço: € 16,65

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O novo papa Leão XIV já dissera no seu primeiro discurso que procurava uma paz verdadeira, justa e duradoura. O cenário internacional não poderia ter sido mais contrário à sua vontade. Há apenas alguns dias no cargo, ofereceu o Vaticano e a diplomacia católica para pôr termo ao conflito entre Kiev e Moscovo.

O presidente Donald Trump também afirmou, durante a sua campanha eleitoral para 2024, que iria resolver rapidamente os conflitos na Ucrânia e em Gaza. Contudo, embora tenha havido algumas aproximações, ambos os conflitos pare‐ cem estar longe de ser resolvidos por enquanto.

Trump e Prevost

Os dois líderes norte‐americanos parecem estar politicamente distantes em certas questões. O atual papa foi alvo de rumores de ser membro do Partido Republicano, mas a Comissão Eleitoral do estado do Illinois confirmou que Leão XIV não tem qualquer afiliação formal com o Partido Republicano.

No entanto, é verdade que o atual papa votou várias vezes no Partido Republicano, embora também o tenha feito no Partido Democrata. Durante as diferentes campanhas eleitorais, apoiou alternadamente um ou outro. Em 2012, o papa pediu boletins de voto republicanos, tal como fez em 2014 e 2016, mas em 2008 e 2010 pediu boletins de voto do Partido Democrata. Não sabemos se os utilizou ou não, mas o facto sugere que o atual papa mudou de posição em função dos candidatos.

Há muitos elementos que o ligam à administração Trump e ao Partido Republicano, desde a defesa da vida e da luta contra o aborto, que Trump tem defendido, ao modelo de família heterossexual e à contenção da cultura woke.

Noutras questões, os dois divergem, por exemplo, no tratamento dos imigrantes ilegais ou nas políticas económicas ultraliberais do presidente Trump, e o papa não aceita o estilo de vida amoral de Trump.

Alguns comentaram que ambos os líderes concordariam com a aceitação de um dia de descanso, como aconteceu em 1888, quando o Congresso esteve perto de aceitar o domingo como dia de paragem laboral na Sunday Law. O próprio papa Leão XIII defendeu esta ideia na sua famosa encíclica Rerum novarum: «O descanso dominical é necessário para que o homem recupere as forças gastas no trabalho quotidiano e se dedique com maior fervor ao culto devido a Deus.»

Outro ponto em comum entre o papa Leão XIV e o presidente dos Estados Unidos é o seu desejo de paz no mundo, especialmente nos conflitos em Gaza e na Ucrânia, embora os métodos de cada um deles sejam, sem dúvida, diferentes.

Trump privilegia a pressão e a procura de soluções pragmáticas sem ter em conta a identidade das populações. No caso de Gaza, chegou mesmo a propor a remoção temporária da população e a transformação da zona num complexo hoteleiro de luxo, demonstrando assim a sua falta de sensibilidade e empatia. O papa Leão XIV, por outro lado, demonstrou ao longo da sua carreira eclesiástica uma grande proximidade dos sofredores e dos mais vulneráveis.

Em suma, são dois modelos muito diferentes, mas com pontos em comum, nomeadamente em alguns princípios morais de base cristã.

O vice‐presidente J. D. Vance, um dos poucos católicos a ocupar um alto cargo nos Estados Unidos, encontrou‐se com o novo papa para falar especificamente sobre os esforços das duas instituições em prol da paz, mas também sobre a liberdade religiosa e a cooperação internacional.

O papa falou igualmente com o secretário de Estado, Marco Rubio, também ele católico, num encontro que durou cerca de quarenta e cinco minutos: «Durante as cordiais conversações realizadas na Secretaria de Estado, foi reiterada a satisfação relativamente às boas relações bilaterais.»

As relações com o novo papa serão mais cordiais do que com Francisco, que muitos republicanos consideravam demasiado à esquerda.

A sintonia nas grandes questões é evidente, mesmo que o novo papa esteja longe dos modos da Administração Trump. Resta saber se esta colaboração se concretizará ou se se limitará à lisonja diplomática e aos bons sentimentos.

O novo papa Leão XIV já sugeriu a Santa Sé como local de encontro para um acordo de paz entre russos e ucranianos, pelo que o presidente Zelensky, judeu, lhe agradeceu. De facto, propiciou‐se o encontro entre Donald Trump e Zelensky no Vaticano, para apaziguar as diferenças que surgiram do desentendimento que teve lugar na Casa Branca há alguns meses.

Os bispos e cardeais dos Estados Unidos deram as boas‐vindas ao novo papa. Para eles, é uma honra ter um sumo pontífice do seu país. Não esqueçamos que o apoio destes prelados na votação do conclave foi decisivo. No fundo, até os conservadores preferiam um papa mediador a uma nova versão do papa Francisco.

Raymond Leo Burke e o arcebispo Carlo Maria Viganò manter‐se‐ão sem dúvida vigilantes, mesmo que vislumbrem uma atitude mais favorável no novo papa.

Paz em Gaza

Na primeira bênção dominical de 11 de maio de 2025, Leão XIV denunciou a grave situação em Gaza e afirmou: «Em Gaza, as crianças, as famílias e os idosos são conduzidos à morte através da fome.»

A 8 de maio, o papa já apelara a um cessar‐fogo imediato, além de ter pedido que fossem fornecidos alimentos à exausta população de Gaza. Exigiu também a libertação dos israelitas que permanecem sequestrados.

As palavras do papa Leão XIV encontram‐se em sintonia com as de Francisco e da maior parte do mundo ocidental. Não sabemos em que medida as exigências de um líder espiritual podem influenciar este cenário político, que também apresenta muitas conotações escatológicas. Jerusalém é o centro religioso das três grandes religiões monoteístas e tem sido foco de conflitos durante milhares de anos.

Talvez as expectativas depositadas num único homem, mesmo que este tenha uma influência moral e religiosa, não possam influenciar decisivamente estas questões.

A guerra na Ucrânia

O encontro com Volodymyr Zelensky, no mesmo domingo da primeira missa, com a presença de líderes de todo o mundo, parece revelar a intenção do novo papa de procurar a paz na Europa.

Leão XIV falou da Ucrânia martirizada e da necessidade de uma paz justa e duradoura.

A paz entre a Rússia e a Ucrânia parece ainda muito distante, mas ambos os líderes deram alguns passos nesse sentido, enviando delegações a Istambul. Os dois presidentes não podem anunciar um empate na guerra às respetivas opiniões públicas, pois isso poderia fazer cair os seus governos, por não conseguirem explicar o sofrimento inútil de uma guerra sem sentido.

Zelensky agradeceu ao papa pelo seu apoio espiritual e moral, bem como pelo que lhe fora igualmente oferecido pelo papa Francisco.

Durante a sua primeira homilia, o papa apelou à unidade e à reconciliação no mundo. Solicitou um amor fraterno que vença o ódio, a violência e a exclusão, falando também da construção de um mundo novo em paz.

Chegou mesmo a afirmar que estamos perante uma «terceira guerra mundial aos pedaços», para utilizar as palavras do seu antecessor no cargo. As suas palavras indicam, por si só, como é difícil alcançar uma paz real, porque os conflitos atuais são basicamente o resultado do ressurgimento dos antigos blocos e da influência da China na política internacional. O papa apelou às grandes potências mundiais para que digam não à guerra.