Acompanhe toda a atualidade informativa em 24noticias.sapo.pt
No rescaldo da vitória de Milei, a argentina começa por explicar ao 24notícias que não havia uma sensação generalizada de que Milei fosse ganhar por tanto. "Eu acho que ninguém esperava que fosse uma eleição tão boa, principalmente na província de Buenos Aires, que concentra quase 40% do eleitorado, por isso é uma província com muito peso, e também porque Buenos Aires é como o símbolo do peronismo." O próprio governo tinha baixado as expectativas, e classificado qualquer resultado entre 30% e 35% como satisfatório. Mas, explica, o facto de muitos jovens - grande base do eleitorado de Milei - terem ido votar não é de ignorar.
Para uma das ex-assessora do presidente Mauricio Macri, há várias justificações que se resumem "num contexto muito particular", não só nacional, mas na própria província de Buenos Aires. Começa por referir como "um dos candidatos à província de Buenos Aires, foi retirado da corrida por um tema legal, e então surgiu um candidato novo. Quando se ia votar, o boletim nem sequer tinha a cara do novo candidato do PRO". Talvez por isso "a grande surpresa de ontem tenha sido, justamente, a província de Buenos Aires, com a recuperação de 14 pontos".
Mas para a argentina, que hoje se encontra afastada da política, mas a continua a seguir atentamente, há um avanço e um pormenor destas eleições que foi um grande passo democrático no país: "Este resultado não teria sido o mesmo sem o boletim único em papel."
Pela primeira vez, na Argentina, votou-se com um boletim único em papel, idêntico aos que se usam nas eleições em Portugal. Mas que na Argentina representa "uma diferença enorme". "Antes, votávamos com boletins separados por partido: escolhia-se o boletim no local de votação, colocava-se num envelope e depositava-se na urna. Isso gerava muita confusão e pouca transparência, porque era mais complicado e alguns partidos não tinham fiscais para proteger os boletins. Se não havia boletim, não se podia votar nesse partido, e, claro, roubavam-se boletins".
Explica que na eleição de ontem "tudo foi mais ágil, mais transparente". "Por isso, acredito que a diferença de um ponto em Buenos Aires, sem o boletim único, talvez não se tivesse conseguido." Acrescenta que quando a "diferença é mínima" ainda é mais importante escrutinar. "Assim, o boletim único em papel foi um protagonista incontestável desta eleição." Não sendo apoiante de Milei, el loco, apoia tudo o que "garanta a transparência". "A transparência é crucial quando o resultado é tão renhido, porque uma diferença de 35 mil votos num sistema pouco transparente pode alterar tudo." O boletim único em papel era "algo desejado há anos na Argentina, muito difícil de aprovar, que exigiu formação da população. Sem dúvida, positivo."
Mas as explicações para a vitória do La Libertad Avanza vai mais além do que as questões burocráticas. A argentina explica que esta foi uma eleição muito polarizada, embora "apareçam terceiros ou quartos candidatos, em momentos decisivos a disputa concentra-se: kirchnerismo ou peronismo contra o outro lado, neste caso Milei".
O presidente para o qual trabalhou vinha do PRO, um partido que teve um papel fundamental na eleição de Milei, "quando o PRO viu Milei à frente, deu-lhe apoio para chegar à presidência. Ontem, a fotografia mostrava Milei, mas os dois grandes candidatos de Libertad Avanza vêm do PRO: Santilli (Buenos Aires) e Patricia Woolridge (senadora)."
E essa pode ser uma das justificações para o partido de Milei ter vencido no maior distrito eleitoral da Argentina, que concentra cerca de 40% do eleitorado, mas nenhuma das explicações justifica a vitória se vista sozinha. Há sempre um contexto a que é necessário voltar, e esse contexto era referendado nestas eleições.
Estas eleições eram vistas como um referendo à presidência de Milei e à sua agenda liberal, marcada por cortes radicais no Estado, desregulamentação da economia e reformas fiscais e laborais. Durante o primeiro mandato, Milei conseguiu reduzir a inflação de mais de 200% em 2023 para cerca de 31,8% interanual em 2025 e alcançar um superavit fiscal, apesar de estas medidas terem provocado a perda de mais de 200 mil empregos, o encerramento de cerca de 18 mil empresas e uma contração económica em 2024. A sua política de austeridade, descrita como de “motosserra”, incluiu cortes em subsídios, educação, saúde e infraestruturas, bem como despedimentos massivos no setor público.
A política da motosserra funciona mais ao menos, "a inflação baixou, mas ainda há muita pobreza e fome". E se se torna difícil perceber como é que uma política tão contestada vence eleições, a explicação é simples - e comum em países a viver períodos de austeridade: o sacrifício faz-se por um bem maior. "A população assume sacrifícios, sobretudo a classe média, ajustando consumos e custos, e isso foi percebido pelo eleitorado. A realidade é que o povo está a fazer um esforço enorme, o que influencia a perceção sobre economia, inflação e salários, que ainda não acompanham totalmente."
Continua a explicação que está diretamente ligada com a polarização da política, "eu sinto que ainda há uma espécie de desconcerto, mas as pessoas parecem agarrar-se a isso, estão presas a isso. Sinto que a classe média o vê dessa forma, é como se dissesse: “Bem, o outro lado já o conhecemos, já sabemos como é, e não gostamos, já o experimentámos.” Acrescenta que há uma espécie de atração por aquele homem que não se mostra como um político e que para a população é alguém mais "tolerável" porque "se atreve a dizer o que muita gente pensa, mas não se atreve a dizer em voz alta." Tal como noutros países, isso fez como tenha começado como um "fenómeno subterrâneo" nunca "ninguém viu chegar a possibilidade de ele ganhar".
E este "fenómeno" "faz com que as pessoas se agarrem a isto", pensam: "estou a fazer este esforço, mas ele já me mostrou que a inflação baixou. Vamos ver o que mais me pode mostrar.” E, depois, no futuro "há também toda uma expectativa" num país que tem necessidade de reformas, "a reforma tributária, a reforma laboral — coisas que na Argentina têm sido adiadas há anos e que geram muita resistência em certos setores" e é muito difícil que os argentinos não pensem que é Milei quem as vai conseguir pôr em prática. "Mostra que as pessoas estão dispostas a aguentar, se realmente o que vem pela frente é algo encorajador, algo importante de alguma forma."
Esta radiografia da população vai ao encontro do discurso de vitória de Milei onde cantou ser “o rei de um mundo perdido”. Para de seguida dizer: “Hoje ultrapassámos o ponto de viragem – começa a construção de uma grande Argentina.” O presidente saudou o resgate financeiro dos EUA como “algo sem precedentes, não apenas na história argentina, mas na história mundial, porque os EUA nunca ofereceram um apoio de tal magnitude”.
“Agora estamos focados em realizar as reformas que a Argentina precisa para consolidar o crescimento e a descolagem definitiva do país – para tornar a Argentina grande novamente”, disse o presidente em espanhol, ecoando o slogan trumpista.
A vitória foi celebrada internacionalmente, com destaque para o presidente dos EUA, Donald Trump, que já tinha anunciado um pacote de 40 mil milhões de dólares em apoio financeiro à Argentina, condicionado à vitória de Milei. Os mercados reagiram positivamente, com ações e obrigações argentinas a subirem significativamente, refletindo expectativas de maior estabilidade política e continuidade das reformas.
Mas se na Europa e América do Norte à vitória de Milei é sempre associado Trump, na Argentina a análise é mais complexa. "O efeito Trump é difícil de quantificar", para os argentinos é importante "o reconhecimento internacional, como aconteceu na presidência de Macri. O governo atual projeta a Argentina visível no mundo, de forma diferente do kirchnerismo, o que influencia a perceção externa". E isso, refere, é muito interessante para a classe média, "a sensação de estar “de pé” no mundo, de sermos reconhecidos, de a Argentina ter presença internacional". Principalmente numa altura em que "as pessoas estão um pouco hesitantes, mas sentem que o país tem potencial." Como exercício pede que esqueçamos quem é o presidente dos Estados Unidos, "o simples facto de o governo dos EUA estar a falar sobre a Argentina já é muito" e é muito importante para os argentinos. "Então, sim, acho que há também esse sentimento de que, de alguma forma, este presidente está a tornar o país mais visível no mundo."
No fim, resume de forma peremtória "nós, os argentinos, vivemos a pensar no dólar — isso é uma realidade". Lembra um programa de comentário pré-eleições onde alguém dizia, “não sei se votas para que na segunda-feira o dólar não dispare”. Na Argentina, nas urnas vota-se com a moeda na cabeça e essa não é só a que está na carteira, "as pessoas sabiam que, se votassem no governo e neste projeto, teriam uma certa tranquilidade cambial — algo que talvez não teriam se votassem noutro projeto político."
A conversa com o 24notícias termina a falar da abstenção apontada como um fator de protesto. O LLA conquistou 16 das 24 províncias argentinas, enquanto a abstenção atingiu 34%, a mais alta desde 1983, que os analistas associam a um cansaço ou desilusão de muitos eleitores, num país onde o voto é obrigatório. A argentina explica que no país "não houve propriamente um clima eleitoral" e que "as eleições legislativas são sempre aquelas em que as pessoas não entendem bem o que está em jogo, quais são os cargos para que estão a votar". E, "as legislativas, por natureza, costumam ter menos participação. Mas também acho que isso tem a ver com o clima da época: as pessoas não se sentem chamadas pela política, não se sentem convocadas, é como se já não lhes despertasse interesse."
__
A sua newsletter de sempre, agora ainda mais útil
Com o lançamento da nova marca de informação 24notícias, estamos a mudar a plataforma de newsletters, aproveitando para reforçar a informação que os leitores mais valorizam: a que lhes é útil, ajuda a tomar decisões e a entender o mundo.
Assine a nova newsletter do 24notícias aqui.
Comentários