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Eram sete no grupo. Vieram de lá de cima, talvez da estrada grande. Quando entraram no trilho, nem sequer olharam para o chão, como se as solas dos seus pés já soubessem de antemão por onde as raízes se estendiam. O grupo era composto por mulheres e homens; alguns pareciam jovens e havia dois de meia-idade, ou até mais velhos. Teriam cinquenta anos? Sessenta? Caminhavam um após o outro, em fila indiana. Meteram depois pelo caminho que conduzia ao lago.

Era de manhã.

Vestiam calças de montanhismo e camisas e t-shirts e calças de ganga velhas. Uma delas usava um vestido da década de 1990: liso, de algodão.

A mulher do vestido gritou alguma coisa. Era alta e parecia forte. Agachou-se e começou a fazer uma fogueira. Tentou acendê- -la junto à água, num sítio delimitado por pedras e com sinais de que ali já tinha sido feito, muitas vezes, fogo. Certamente já ali haviam estado, pensei. Talvez tivessem sido eles a juntar as pedras num círculo.

Estavam em silêncio, mas de repente um deles começou a cantar. Pelo menos, ao início parecia ser uma cantiga. Embora os tons surgissem como que solitários, independentes uns dos outros:

Ah...

Vários deles – não todos – estavam afinados: uma nota, ou várias. A cantiga era como o som de um animal, pensei para comigo, e lembrou-me vacas a mugir ou gaivotas a guinchar. Mal os ouvia. Não fazia vento, e talvez fosse por isso que os conseguia sequer ouvir.

Durante todo este tempo, a mulher do vestido aguardou com expectativa o aparecimento da primeira chama. Soprou-lhe para cima, incentivou-a como um avançado num jogo de futebol, curvou-se sobre ela.

Tiraram de um saco uma caixa de gelados Olá com o que me pare- ceu ser massa crua, e formaram um círculo à volta da fogueira, disputando o espaço sobre as chamas. Estavam tão perto uns dos outros que os corpos quase se fundiam. As cabeças curvadas sobre o fogo.

Um homem um pouco mais jovem afastara-se do grupo e apareceu naquele momento com um pássaro morto nas mãos. Depenou-o, mas passou por algumas dificuldades com as penas das costas e das asas. Depois arrancou-lhe as asas e as patas e grelhou-o lentamente sobre o fogo.

Obrigado, gritou ele.

Obrigado.

Obrigado.

E os outros disseram o mesmo.

Quando o pássaro ficou pronto, cortaram-no em pedaços, que amontoaram em pequenas pilhas. Alguns comiam de forma mais delicada – pegavam numa pequena porção com as mãos antes de a polvilhar com sal, levavam bocados minúsculos à boca, e alternavam cada dentada com pão à caçador.

Outros, como, por exemplo, a mulher que acendera a fogueira, metiam simplesmente um grande naco de carne na boca e mastigavam-no sem grandes maneiras. Obrigado, obrigado, obrigado.

Os mosquitos voavam à minha volta com um zumbido baixo, mas constante.

Livro: "A Colónia"

Autor: Annika Norlin

Editora: ASA

Data de lançamento: 23 de setembro de 2025

Preço: € 18,90

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O grupo quedou-se junto à fogueira de forma um tanto aleatória. Uma das pessoas deitou-se de olhos postos no céu. Outra agachou-se junto à água. Pareciam não ter uma estrutura interna, estavam todas perdidas no seu próprio mundo. Era como observar um grupo de crianças num infantário, mas com- posto por adultos.

Porque não me aproximava deles? Ansiava por algum contacto humano.

Suponho que tinha algum receio. Não porque parecessem, de algum modo, agressivos – não pareciam sê-lo, de todo –, mas porque não os compreendia. Tinha a cabeça a mil à hora, porque tentava juntar peças, formar padrões. Quem eram aquelas pessoas? Porque agradeciam pelos pães à caçador? Como se davam uns com os outros?

Se ao menos estivessem vestidos de forma diferente, pensei. Se usassem cafetãs, ou calças de ioga, ou algo por aí. Se assim fosse, poderia tê-los categorizado, arrumando-os cuidadosamente numa caixa no meu cérebro, talvez rotulada de new age. Mas não estavam vestidos de acordo com os devidos preceitos. Eram demasiado substanciais. Todos usavam calças práticas. Calças de ganga. Um deles vestia um anoraque. Podiam ser passageiros de um autocarro numa carreira vulgar. Pareciam normalíssimos. Pensando bem, também podiam ser programa- dores. Seriam parentes? Ou colegas de trabalho?

Mas não, não podiam ser. Não combinavam uns com os outros, tinham aparências completamente diversas.

Um homem baixo de meia-idade e com olhos grandes pare- cia triste. Mais tarde, iria atirar-se à água e nadar até muito longe da margem, voltando rapidamente para trás. O próprio lago pareceu chocado com a sua velocidade.

Uma mulher pequena, de cabelo escuro, com óculos.

Um homem alto e incrivelmente bonito, que parecia quase grego, como uma estrela de cinema.

Talvez estejam a gravar um filme, pensei. Ele é a estrela, os outros são a equipa de filmagem.

Mas, uma vez mais: não. Havia algo na forma como interagiam uns com os outros, sem conversas de circunstância, demonstrando apenas calma e gratidão. Um silêncio perfeito e os corpos muito próximos uns dos outros diante da fogueira, como se não existisse qualquer distância entre eles. Uma proximidade que me fazia pensar se não teriam passado, juntos, por uma experiência horrível, se não estariam a tentar ultrapassar um trauma. Nenhuma família ou equipa de trabalho que conheça demonstra tanta intimidade entre si.

Um deles estava sentado a uma curta distância dos restantes. Afastara-se alguns metros dos companheiros, descendo pelo caminho que conduzia ao lago. Era o mais novo de todos, um jovem relativamente alto, que coxeava um pouco ao caminhar. Parecia inquieto, como se o seu corpo fervilhasse de uma energia que não sabia direcionar. Tinha feições delicadas, mas uma aura... bem, pesada. Via-o apesar de estarmos bastante longe um do outro.

Quando eu era criança, a mãe de um amigo meu costumava cuidar de cães vadios. Cada cão pior do que o outro: amedronta- dos ou moribundos, sujos ou sem uma pata, ou sem uma orelha, ou com uma infeção. Um dos cães estava num estado lastimável. O meu amigo chamava-lhe Desgraçadinho. Era um rafeiro de grande porte com uma respiração ruidosa, olhos esbugalha- dos e uma pata amputada. Quando me cruzava com o tal cão, sentia-me ao mesmo tempo triste e assustada: queria abraçá-lo, e em simultâneo fugir para bem longe dele.

O Desgraçadinho acabou por morder outro dos cães vadios, um baixote assustado.

O meu amigo disse: “A minha mãe dizia sempre que toda a gente merece uma segunda oportunidade, mas concluiu que a melhor oportunidade para o Desgraçadinho era morrer. Abateu-o a tiro ela própria.”

O jovem só regressou para junto da fogueira quando os outros acabaram de comer. A mulher alta do vestido deu-lhe um bocadinho de massa crua antes de se afastar e começar a caminhar junto à água, e ele deixou-se ficar junto à fogueira a aquecer a massa nas brasas ainda acesas. Virava a cabeça para um lado e para o outro, perscrutava a paisagem, queria saber onde estavam os outros, se ainda andavam por ali. Pelo menos, foi assim que interpretei a situação. Quando avistou dois dos companheiros, acalmou-se claramente, sentou-se numa pedra e esfregou a cara. Abanava um dos pés. Tinha sempre alguma parte do corpo em movimento.

Eu já não pensava no Desgraçadinho havia quinze anos.

Emelie
Primavera de 2023

Corro pelas escadas abaixo e até ao autocarro, apanho-o no último segundo, abro caminho por entre os passageiros, e como, é claro, não encontro nenhum lugar livre, agarro-me a uma barra. Ponho os auscultadores nos ouvidos e ouço alguma coisa para bloquear o ruído, talvez um podcast sobre política americana. É importante estar a par do mundo que me rodeia. O autocarro descreve uma curva quando atravessa a ponte e vejo o sol nascer. A sua luz pinta o cabelo dos outros passageiros de dourado. As pessoas tornam-se bonitas. Pressiono o meu corpo contra o de alguém que não conheço de lado nenhum. Todos fecham respeitosamente os corpos para que o convívio forçado não se torne desconfortável. Estão todos nos seus mundos, a caminho de algo importante, segundo me parece. Há um objetivo claro em todos os olhares. Faço parte da multidão.

Naquelas manhãs, saía sempre bem cedo para ir a uma reunião ou entrevista. Tinha trabalhos temporários por todo o lado: um mês aqui, onze meses acolá, por vezes um projeto que durava dois anos inteiros. Em todo o lado diziam: “ Talvez possas ficar cá a trabalhar permanentemente, se mostrares empenho.” E eu assim fazia: mostrava empenho. Demonstrava um empenho inacreditável.“Oh, não”, diziam com um suspiro,“a Rakel está doente. Precisamos que alguém faça o turno da noite.” Olhavam em volta. E eu cedia sempre.“Pode-se confiar em ti”, diziam. E eu também confiava em mim! Era esse género de pessoa. Conseguia fazer tudo. Os outros diziam que iam para casa, para passar tempo com os filhos, ou que se sentiam um pouco irritados naquele dia, ou que simplesmente não tinham energia para tanta coisa, mas eu não. Eu conseguia tudo. Tinha formado uma rede de contactos impressionante, porque é isso que acontece quando se tem dez ou doze empregos diferentes em oito anos. Saía quase todas as noites depois do trabalho. Primeiro, fazia horas extra, depois, saía. Ia também a jogos de futebol, a peças de teatro, a festas, ao ginásio. Tomava bebidas em bares, corria, participava em clubes de leitura. Inseria-me na comunidade, durante algumas horas imiscuía-me com os outros. Depois ia para casa, para o meu apartamento, que comprara sozinha, tendo pintado as paredes de cor de casca de ovo. Tinha muitas despesas, os empréstimos saíam-me caros, mas adorava cada metro quadrado do apartamento, que me relembrava que era independente. Estava pronta para me matar a trabalhar só para o manter. Era senhora da minha própria vida. Tinha muito orgulho em mim. Alguém de fora poderia até achar que eu sabia o que estava a fazer.

Os meus amigos ansiavam por ter filhos depois de conhecerem alguém, mas eu tinha sempre a sensação de que quanto mais deixava que alguém se aproximasse de mim, maior era o risco de estragar as coisas. Que teria de ceder demasiado, que um dia acordaria e perceberia que levava uma vida que não compreendia.

“Infelizmente, não te podemos oferecer um cargo permanente”, diziam, quando o trabalho temporário estava prestes a terminar. Mas por mim não havia problema, porque uma colega tinha começado a trabalhar noutro jornal e alertara-me de que havia lá uma oferta de trabalho temporário, por dois meses, que podia ser prolongado e tornar-se até um trabalho fixo para quem se mostrasse empenhado.

Não dás grande importância à tua irritabilidade. Acreditas que é justificada. Discutes com um velhinho numa escada rolante por- que o homem caminha demasiado lentamente. Zangas-te com a tua irmã porque te telefona a perguntar como estás; não tens tempo para falar e ficas, além disso, com um peso na consciência. Reviras os olhos à Mika porque ela não concluiu o trabalho, perdeu-se com bagatelas e não teve tempo. Não tiveste tempo?, dizes, furiosa. Temos de trabalhar até o serviço estar pronto, mais nada. Imagina só se todos pensassem da mesma maneira. Mas estás com sorte, Mika, porque acabei o trabalho por ti. Teve de ser, caso contrário, teríamos de terminar já esta reunião, Mika.

Não compreendes estas palpitações do coração. Aparecem de repente. Do nada. Uma sensação de desconforto no peito sempre que andas de bicicleta ou fazes exercício, e também antes de adormeceres. De onde vêm? Parecem-te completamente desnecessárias. Não podes simplesmente livrar-te delas? Não duram muito, são apenas cinco a dez minutos de ódio puro por estares na tua própria pele. Mas nesses cinco a dez minutos... És como que... invadida por um estado emocional. Vives uma experiência física ou psicológica? Não compreendes. Farias o que quer que fosse para te livrares disto.

Dormir é o pior. Ficas deitada a olhar para o teto e sabes que, quanto menos dormires, pior te vais sentir amanhã. Que terás menos energias para lidar com o mundo.

A preocupação está lá, a irritação também, e têm as duas uma pequena reunião, e não, tu não tens, de todo, para onde ir. Estás aprisionada em ti mesma, no teu corpo asqueroso.

– Então, veio cá porque suspeita que tem um esgotamento?

– Começou tudo quando não me consegui levantar da cama. Tinha de me encontrar com umas pessoas, mas não me consegui levantar.

– Ah, estou a ver.

(Pausa.)

– Quanto tempo ficou deitada?

– Quatro dias. Uma vizinha levou-me iogurte e cereais.

Alimentou-me.

– Como se sente agora?

– Não sei...

– Tem de preencher este formulário. Classifique os sintomas.

(Pausa.)

– Não está a preenchê-lo.

– Pois não. Não consigo... Desculpe. O que disse?

– Emelie, vou antes ler-lhe as perguntas. Pode ser?

– Soa... bem.

(Pausa.)

– Sei que é estranho, mas podemos apagar a luz fluorescente só enquanto respondo às perguntas?

Uma manhã, não me consegui levantar. Era sábado e pensava dormir até às nove horas, ou por aí, mas, quando acordei, constatei, para meu horror, que dormira onze horas e meia. Tinha duas amigas à minha espera para almoçar e sabia que teria de me apressar para apanhar o autocarro, porque se apanhasse o que passava quinze minutos depois, chegaria no máximo meia hora atrasada ao local combinado. Portanto, instei o meu corpo a mexer-se, mas ele não me deu ouvidos.

Anda lá, disse-lhe eu. O autocarro está quase a passar.

Ok, respondeu o corpo, que continuou deitado.

Tens mesmo de te levantar agora para o apanhares, disse eu. Sim, eu ouvi-te, respondeu o corpo, mas não aconteceu nada. Tentei levantar uma parte do corpo de cada vez. Não resultou.

Os dedos necessários para escrever mensagens ainda respondiam aos meus chamamentos. Não me deixam ficar mal! Enviei uma mensagem às amigas com quem me ia encontrar. Traváramos amizade havia relativamente pouco tempo e não as conhecia assim tão bem. O pior de tudo era elas não se conhecerem de todo uma à outra, eu era o fator de ligação entre ambas. Era muito rude da minha parte não aparecer.

Escrevi uma SMS:

Estou no autocarro, mas acho que tenho febre e vou voltar para casa para me deitar. Desculpem.

Pensei um pouco e enviei outra mensagem:

Vocês façam o que quiserem, é claro, se quiserem almocem jun- tas, vocês é que sabem. Se quiserem ir à mesma, ficam a saber que a Elin se interessa por questões humanitárias, especialmente as relacionadas com crianças, e que a Iwa trabalhou para a ACNUR.

Pensei um pouco mais e enviei uma terceira mensagem:

Já agora, como os vossos pais são de Halland, é outra coisa que têm em comum.

Queria mesmo ir ao tal almoço. No restaurante, serviam umas sanduíches pequenas muito boas, com um bocadinho de manteiga com sal marinho e queijo parmesão a acompanhar. Planeava comprar vinho depois do almoço, a fim de o beber ao jantar, vinho Amarone, porque o Roy gostava desse. Estava também a pensar em fazer exercício. Depois do exercício, tomaria um duche, depilar-me-ia e besuntar-me-ia com um novo óleo corporal com cheiro a íris, violeta e cedro que tinha comprado. Maquilhar-me-ia e pensaria no que vestir. O Roy era muito bonito. Tinha sempre a sensação de que ele era demasiada areia para a minha camioneta, e que tinha de me esforçar muito para chegar ao seu nível, a fim de que não começasse a refletir nas diferenças que nos separavam.

Íamos a um concerto. O concerto seria num local secreto, ainda não sabíamos onde. Provavelmente seria uma daquelas noites devias ter estado lá, e talvez me deixasse levar completamente pela música.

Excetuando o almoço, conseguiria ainda fazer tudo isso se simplesmente me levantasse nos minutos seguintes.

Quatro dias depois, ainda não tinha ido mais longe do que a casa de banho ou o frigorífico e, sempre que me deslocara, passara várias horas em cada um dos respetivos lugares. A minha cabeça parecia ter sido tomada por uma apatia completa. Aceitara a situação com indiferença e estava incontactável. Não tinha bateria no telemóvel e não me dei ao trabalho de o carregar. Quando finalmente o voltei a ligar, deparei com cem SMS, quarenta emails e 20 mensagens nas redes sociais. No Instagram, comuniquei que faria um jejum de redes sociais, e os meus seguidores responderam com 60 comentários, na sua maioria simples corações vermelhos.

Como não abria a porta, a minha vizinha decidiu usar a chave extra e entrar-me em casa. Achava que eu estava morta.

Não estava, como lhe assegurei, mas ela ficou ainda assim um tanto perturbada quando me viu.

–És viciada em trabalho –disse ela.

Descobri que a minha vizinha também se sentira esgotada no passado, embora de uma forma um pouco mais digna. Tem três filhos e luta pelo seu povo. Todos entendem porque se foi abaixo.

Agora os filhos são crescidos e já saíram de casa. A minha vizinha ainda tem necessidade de cuidar de alguém. Continuou a meu lado e eu não me queixei. Devia ter rejeitado a sua ajuda, mas não o fiz, e embora nos queixássemos de todos nos atirarem com tudo para cima, despejei (com toda a satisfação, diga-se) os meus próprios problemas para cima da mulher. Vi-a cuidar de mim, escutar-me e fazer-me sopa. Senti-me muito contente por alguém me entender. A minha vizinha chama-se Ánne Helena e é sami. Faz questão de informar os suecos sobre os traumas do seu povo, mas presumo que desistiu de algum dia percebermos a situação por nós próprios, de maneira que costuma responder-me quando lhe faço perguntas. Agora estou mais informada acerca de como o Estado sueco roubou as terras e a cultura aos samis, e sei que os samis têm de se mostrar muito contentes, de fechar a boca bem fechada e de se contentar em ser apenas um povo colorido e exótico. E que a área por onde se podem deslocar livremente vai diminuindo cada vez mais, embora a justificação para a limitarem seja agora outra: alegam que o seu modo de vida já é quase impossível de sustentar.

Embora nem sequer fosse nascida quando lhes roubaram as terras pela primeira vez, sinto-me envergonhada, por isso, faço-lhe por vezes o jantar. Infelizmente, tenho consciência de que a minha massa puttanesca não compensa a traição cometida pelos nossos governos.

Como desta vez acabou por ser ela a ter de me fazer o jantar, a dívida tornou-se ainda maior.

A Ánne Helena disse-me que no ano em que teve o esgotamento pegou nos três filhos e foi para a Lapónia. Passou lá o verão e recuperou. Os filhos tiveram de pôr os computadores de lado e de ajudar a família a marcar o gado.

– Bem que precisavam de trabalhar um bocadinho – disse, rindo-se, Ánne Helena, que se serviu de mais vinho.

– A família ou os teus filhos? – perguntei.

– Todos eles – respondeu a Ánne Helena.

A natureza exercera sobre ela um efeito tranquilizador.

Sentava-se ao ar livre e fazia fogueiras. Algumas semanas depois, sentia-se muito melhor, e os filhos também se tinham tornado mais sensatos por efeito do convívio com a família.

– Achas que as renas iam gostar de mim? –perguntei eu, cheia de esperança.

– Não, de maneira nenhuma – respondeu a Ánne Helena. – Sentiriam o teu stress a quilómetros de distância.

De repente, a vida torna-se uma corrida de obstáculos composta de impressões. Descer as escadas, os pés que embatem no chão de pedra. A pancada quando a porta se fecha. A luz dos candeeiros é implacavelmente forte, fere-me os olhos. Na rua, duas mulheres alegres riem à gargalhada precisamente quando passam por mim ou pelos meus ouvidos. No autocarro, todos se apertam uns contra os outros e conversam, conversam, conversam. O homem ao meu lado vê um amigo ao longe e grita.“JONTE! FODA-SE!” Uma rapariga começa a ver um clip no telemóvel e ouve-se uma canção pop por um segundo antes de lhe tirar o som.

O autocarro avança aos solavancos e, sempre que alguém dá um encontrão a alguém, sinto o seu cheiro a suor ou a sua mala retangular, ou vejo a luz azul no ecrã do seu telemóvel. E o autocarro atravessa a ponte e o sol nasce e sinto-me uma gigante de pedra que se desfaria em mil pedaços se tocada por um raio de luz. Retraio-me. O maior defeito do sol é ser demasiado luminoso. E alguém está prestes a sair e diz-me: “Estás no meio do caminho!” E vejo o seu olhar furioso e sinto os olhos a encherem-se-me de lágrimas. Parece-me muito injusto, porque dou sempre o meu melhor. Será que ela não vê isso, aquela mulher furiosa e mandona? E estou sempre a dar e a dar e a dar, porque é que ela não vê isso? E como já não tenho controlo sobre o sistema nervoso e os seus canais lacrimais, choro, choro, choro. Choro no meio do autocarro. De início, baixo a cabeça, com a esperança de que ninguém me veja, porque é uma situação muito confrangedora, mas depois apercebo-me de que estão todos de olhos postos nos seus telemóveis, e de que não havia necessidade de me preocupar.

A questão é esta: nem sequer gosto da natureza. Não gosto de andar ao ar livre. Uma das minhas coisas preferidas de ser adulta era poder escapar ao eterno e forçado AR LIVRE. “Já leste que chegue, vai dar uma volta.” “A aula terminou, todas as crianças têm de sair.” Vestia o casaco em silêncio e descia contrafeita as escadas da escola. Costumava imaginar a experiência paralela dos professores naqueles mesmos intervalos: imaginava-os a beber café numa sala quentinha, e algum deles teria talvez comprado pastéis. Eram essas as minhas fantasias.

Por outro lado, eu e as minhas amigas tínhamos um banco. Sentávamo-nos nele e soprávamos nas mãos para as aquecermos. Falávamos do Harry Potter. Levantávamo-nos e saltitávamos um pouco quando fazia demasiado frio. Por vezes, sentíamos um nó no estômago. E os pés quase dormentes. Sentávamo-nos no banco e esperávamos que fosse meio-dia e dez para entrarmos outra vez. É claro que não usavas calças impermeáveis, não era parvinha de todo.

Adoro a cidade. Adoro a sua pulsação, o seu ritmo. Transmite-me segurança. Só tive realmente medo uma vez na vida: quando, numas férias na Escânia, me enganei no caminho e fui parar a um campo a que não via o fim. Não havia nenhum ponto de referência. Antes de adoecer, descia por vezes do meu aparta- mento até à rua só para absorver tudo: os transeuntes, as vidas que se viviam lado a lado, a luz, a música. O ruído constante da rua, os carros que circulavam na estrada, o limpa-neves, um bêbado aos gritos.

O reconforto de me imiscuir na multidão. Há sempre alguém mais estranho, há sempre alguém que se sente pior. Centenas de pessoas diferentes de mim, centenas com quem partilho algo. Tenho a sensação de que tudo pode acontecer. De que há um milhão de pequenas oportunidades por todo o lado. Tinha apenas de sair e de estar por perto assim que surgissem.

O meu pai é de uma aldeia muito no interior. Às vezes visitávamos a minha avó, tendo a última visita ocorrido nas férias de Natal de há quatro anos. Foi pouco antes de ela adoecer e morrer. Eu ainda não tinha um esgotamento e o meu pai ainda estava completamente lúcido. Lembro-me de uma coisa: do silêncio absoluto. Às oito da noite desligavam a iluminação pública. A escuridão. Além disso, houve duas falhas gerais de eletricidade. Em ambas as ocasiões, a minha avó e eu sentámo-nos à mesa da cozinha sem candeeiros, telemóveis ou wifi. Acendemos velas. Comemos sanduíches. Transportámos a comida que guardáramos no frigorífico para a antiga arrecadação das batatas na cave. Urinámos fora de casa, porque o autoclismo não funcionava sem eletricidade.

A minha avó vivera por muito tempo sem eletricidade, e todos os seus antigos conhecimentos, penicos e candeeiros a petróleo apareceram de repente à vista. Apercebi-me de que todo um mundo de saberes fora repentina e cruelmente erradicado no decurso de apenas duas gerações, perdendo quase por completo a sua utilidade prática. A minha avó era inútil no presente. Não sabia usar homebanking, por exemplo. Mas naqueles momentos descobri que tinha competências que eu desconhecia, porque nunca haviam sido necessárias. Durante uma das falhas de eletricidade, eu e a minha avó sentámo-nos frente a frente, à mesa da cozinha. Não ouvia nada, exceto o virar de páginas quando folheava o livro e a respiração arrastada da minha avó. Não via nada lá fora, e dentro de casa também pouco via além da página do livro que estava a ler e o rosto da minha avó, que à luz do candeeiro a petróleo parecia suave e jovem. Não foi um momento nem bom nem mau; foi apenas... um momento. Existiu e pronto. Foi-me impossível avaliá-lo. E aos poucos apercebi-me de que naquele instante aquilo era o normal, de que era assim que vivíamos: sem barulho, quase sem luz. Dei por mim a comparar aquela existência com a vida que levava na cidade, com as lojas e os carros e os candeeiros públicos e os ecrãs, os ecrãs, os ecrãs.

A Ánne Helena mostrou-me uma entrevista a uma psiquiatra. Tinham-lhe perguntado quando é que o mundo começara a enfrentar um esgotamento. “Quando inventaram a lâmpada”, respondera ela, porque a partir de então tornara-se-nos possível trabalhar sem luz natural. Antes do advento da eletricidade, o mundo estava dividido em duas fases perfeitamente distinguíveis e separadas por ordens como que inscritas na nossa essência: agora há luz e têm de trabalhar; agora está escuro e têm de descansar.

“Não é bem assim”, dissemos nós, humanos, aquando da invenção da lâmpada, para que nos pudéssemos matar de trabalho a um ritmo constante.

A Ánne Helena levou-me a florestas muito distantes da cidade. Nunca lhe teria passado pela cabeça irmos a uma área de churrascos onde eventualmente encontraríamos 200 pais com luvas da Acne a grelhar salsichas veganas. Conhecia sítios desertos. Locais únicos, bastante remotos, no meio da floresta. Quando lá chegávamos, acendia uma fogueira. Reparava que, de repente, o corpo se me relaxava por inteiro. Só me acalmava lá. Sentávamo-nos em silêncio, por vezes não trocávamos uma palavra horas a fio. Era tudo muito triste, mas percebi de imediato que só ali, ao detestável Ar Livre, poderia recuperar a minha saúde. Só ali o meu sistema nervoso parava de se debater com fúria.

A Ánne Helena achava que eu era estúpida, dizia que afastarmo-nos do Ar Livre era como recusarmos estar no nosso próprio corpo. Bem, pela minha parte, eu até recusaria estar no meu, se me fosse possível.

Costumava odiar o Ar Livre, porque voltamos sempre para casa com muita porcaria atrás. Lama nas solas dos sapatos, o que nos obriga a lavar o chão. Uma formiga no saco térmico. O cabelo a cheirar a fumo. É tão sujo.

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