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Orientação
Só 24 seres humanos é que alguma vez viajaram até suficientemente longe no espaço sideral para que vissem a Terra como um globo. A 200 mil quilómetros do planeta, ou a mais de meio caminho da Lua, passando entre o nosso planeta e o Sol, é possível ver a Terra completamente iluminada. Ao seguirem uma órbita polar, esses astronautas conseguem olhar para baixo, para a Terra, de cima do Polo Norte, e ver a Terra — tal como acontece com a maior parte dos planetas do nosso sistema solar — a rodar sobre o seu eixo no sentido contrário aos ponteiros do relógio, naquilo que se chama um «movimento prógrado», ou de oeste para este, uma rotação igual à do Sol. O movimento prógrado é provocado pelo impulso da nuvem de gás e partículas de pó, a partir da qual, inicialmente, se formaram o Sol e as estrelas. À medida que o sistema solar se formava, essas partículas em rotação juntaram-se para formar uma massa que se dividiu em planetas, que, por sua vez, continuaram a girar na mesma direção prógrada, no sentido contrário aos ponteiros do relógio (ninguém sabe porque é que Urano e Vénus são exceções, seguindo uma rotação retrógrada). Ao observar a Terra a rodar, o astronauta pode então imaginar uma linha que atravesse o seu núcleo, começando no Polo Norte e terminando no Polo Sul. Norte, sul, este e oeste: nada parece mais natural e universal do que estes quatro pontos cardeais, quer imaginemos a Terra na nossa mente, quer a olhemos de cima para baixo a partir do espaço.
Contudo, em 7 de dezembro de 1972, um astronauta tirou uma fotografia da Terra com uma orientação muito diferente. A Apollo 17 da NASA, com a sua tripulação de três homens, Eugene A. Cernan, Ronald E. Evans e Harrison H. Schmitt, era a mais recente missão espacial a pousar seres humanos na Lua. Pouco mais de cinco horas depois de a missão ter começado, a cerca de 29 mil quilómetros da Terra, um dos astronautas olhou pela janela e viu o planeta completamente iluminado pela luz do Sol. Pegou numa máquina fotográfica Hasselblad, que fazia parte do equipamento científico da missão, e tirou quatro fotografias da Terra, separadas por menos de um minuto, ajustando a exposição após a primeira fotografia, de modo a conseguir uma segunda imagem mais nítida e definida. Aquilo que as fotografias captaram foi uma visão da Terra de tirar o fôlego, nuvens brancas e brilhantes a ondularem sobre e ao longo de oceanos de azul-cobalto, a cintura de florestas tropicais de África e de Madagáscar, de um verde exuberante, a contrastar com a árida Península Arábica, e a Antártida, branca como a neve, parecendo embalar suavemente o nosso belo e frágil mundo.
Subsequentemente, os três astronautas reivindicaram ter tirado a fotografia, e por uma boa razão: passado pouco tempo, ela tornou-se uma das imagens mais famosas e reproduzidas da história. A NASA designou a fotografia como AS17-148-22727 e atribuiu-a a toda a tripulação. Em breve, a fotografia passou a ser conhecida como a fotografia «Berlinde Azul», a primeira de toda a Terra e a única tirada até agora. Quando a NASA divulgou a fotografia, o seu impacto por todo o mundo foi imediato e profundo. Ela inspirou um movimento ambiental impulsionado por uma perceção da peculiar e coletiva fragilidade da humanidade que habita este deslumbrante planeta azul, a Terra, vista do espaço pela primeira vez e enquadrada pelo vazio negro e inóspito do espaço sideral. A imagem gerou exortações à união global e à humildade ecológica através da reorientação do modo como pensávamos acerca da nossa espécie e das nossas obrigações planetárias.
Mas, quando a NASA revelou, pela primeira vez, a fotografia, viram algo que encararam como um problema: ela fora tirada com o Polo Sul, no cimo do enquadramento, envolto em nuvens, África no meio e a Península Arábica no fundo. A máquina fotográfica fora empunhada por um astronauta sem peso que não conseguia distinguir o topo do fundo no momento em que carregou no obturador. Preocupada com o facto de que a fotografia pudesse desorientar as expectativas do público quanto à aparência do mundo, a NASA inverteu a imagem, de modo a alinhá-la com as assunções da maior parte das pessoas, de que o Polo Norte deveria estar no cimo e o Polo Sul no fundo. O mundo foi, literalmente, virado de pernas para o ar: mas, na verdade, qual é o lado de cima? A história da imagem de si próprio mais reproduzida do mundo demonstra que não existe qualquer quadro de referência universal com base no qual determinar uma direção absoluta — mesmo no espaço sideral. As quatro direções só podem ser entendidas a partir do nosso ponto de observação, que é definido pelo local onde nos encontramos, no globo ou acima dele.
Se invertêssemos os eixos do Norte e do Sul — conforme, com efeito, aconteceu com a fotografia da Apollo 17 —, se invertêssemos o «cimo» e o «fundo», a Terra pareceria rodar no sentido dos ponteiros do relógio, de este para oeste.
Conforme demonstrado pelo tratamento que a NASA deu à fotografia «Berlinde Azul», a maior parte das sociedades contemporâneas tende a orientar a sua geografia mental e gráfica com o norte no cimo. Mas nem sempre foi assim, e algumas sociedades estabeleceram o sul ou o este como os seus pontos cardeais; as suas línguas e crenças ainda refletem essa orientação. Estes quatro termos, aparentemente simples e universalmente aceites, são muito mais subjetivos e específicos de tempos, locais, línguas e culturas do que talvez nos apercebamos. Não existe qualquer razão pela qual o Norte deva, necessariamente, situar-se no cimo dos mapas modernos do mundo (ou das fotografias): o Sul serviria igualmente bem. Mas a história do porquê do Norte ter triunfado encontra-se no cerne deste livro.
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Os pontos cardeais são termos relativos, mas, ao longo dos séculos, tornaram-se indicadores estabelecidos não apenas de onde estamos no mundo, mas também de quem somos. As culturas primitivas localizavam-se a si mesmas no seio do seu ambiente imediato: onde quer que vivessem no planeta, as pessoas conseguiam observar o Sol a nascer na direção a que muitas chamavam este (ou as suas variantes) e observá-lo a pôr-se na direção a que chamavam oeste. De este para oeste foi, provavelmente, o primeiro eixo principal que as pessoas compreenderam, limitando-se a observar o percurso do Sol ao longo do céu. A veneração do Sol, ou heliolatria, caracterizava a veneração de várias divindades solares do Antigo Egito: Hórus (o sol nascente), Rá (o sol do meio-dia) e Osíris (o sol moribundo ou poente). Do outro lado do mundo, os cultos religiosos incas também eram dedicados à adoração do Sol. Os templos da cidadela de Machu Picchu, no Peru, continham postes de orientação em pedra chamados Intihuatana (traduzido como «postes de amarração do sol»), que assinalavam o festival do solstício de inverno, o Inti Raymi. Mas, a este eixo solar horizontal, acabou por seguir-se o entendimento de outro eixo vertical, que ia de norte para sul e que podia ser identificado observando tanto o Sol como as estrelas. Ao meio-dia, espera-se sempre que o Sol esteja a sul no hemisfério Norte e a norte no hemisfério Sul. O eixo Norte-Sul também tem a sua confirmação horizontal no céu noturno. Se vivermos no hemisfério Norte, podemos olhar para cima, para as estrelas, e encontrar o Norte de acordo com a Polaris, a Estrela do Norte ou Polar. O Sul é perpendicular ao Norte. Se vivermos no hemisfério Sul, essa direção é identificada pela Polaris Australis, a Estrela do Sul. A combinação dos dois eixos — Este-Oeste, horizontalmente, e Norte-Sul, verticalmente — cria os quatro pontos cardeais.
A palavra «cardeal» vem do termo latino cardinalis, que significa «charneira» e é algo com uma importância fundamental. Os pontos cardeais são, por conseguinte, pontos centrais e cruciais dos quais depende a orientação; contudo, tal como qualquer charneira, podem movimentar-se para trás e para a frente enquanto posições relativas e passar a significar o seu oposto. É este o permanente paradoxo dos quatro pontos cardeais: eles parecem ser reais e naturais e, no entanto, são inventados e culturais; existem em quase todas as sociedades e, porém, podem significar exatamente o seu oposto, dependendo de onde estamos e de que língua falamos. Na verdade, os pontos cardeais são anteriores à invenção dos quatro pontos da bússola, na qual uma agulha magnetizada se alinha com o campo geomagnético da Terra. Em vez disso, inicialmente, baseavam-se numa combinação de antigas observações astronómicas, distinções físicas e experiências meteorológicas, incluindo os ventos. Este sistema de classificação, aparentemente simples e, contudo, absoluto, fornecia aos seres humanos um método básico de coordenação física no espaço à sua volta: sem direções, estaríamos perdidos. Os quatro pontos têm uma realidade física: nós vemos o Sol a nascer e a pôr-se e rotulamo-los como este e oeste; podemos observar a posição do Sol do meio-dia ou Polaris, ou olhar para uma bússola e designar os pontos como norte e (por consequência) sul. Mas cada ponto é insignificante sem a língua. Uma pessoa aponta numa direção e diz «Aquilo é o este», ou qualquer um dos três outros pontos cardeais. Conforme veremos, depois de a língua se tornar parte da denominação dos quatro pontos, são estabelecidas regras para o seu uso e para o seu significado que se alteram e mudam ao longo do tempo e em diferentes sociedades, dado que cada ponto adquire significados alternativos — que, por vezes, são, inclusive, completamente opostos —, dependendo do modo como os grupos de pessoas mudam e adaptam as suas atitudes face ao mundo natural e às palavras que usam para descrevê-lo. Tal como a língua está sujeita a evoluções e interpretações, verifica-se que o mesmo acontece com os quatro pontos. O Norte muda com o passar do tempo, dependendo de se o calculamos usando as estrelas, um mapa ou uma bússola magnética (mas, adiante, falaremos mais acerca disto).
A palavra «Norte» nunca corresponde uniformemente, ao longo do tempo, a uma só coisa ou a um só lugar. Pelo contrário, pode significar diferentes coisas, dependendo de onde estamos. No Reino Unido, o Norte contém associações à pobreza e ao subdesenvolvimento económico; em Itália e nos EUA, verifica-se exatamente o contrário: o Norte é um local de prosperidade e de sofisticação urbana. Todos os pontos cardeais estão sujeitos a mudanças e adaptações baseadas no modo como são usados no seio daquilo a que alguns filósofos e linguistas chamam «jogos de linguagem»: as regras e convenções das quais as línguas dependem para ser compreendidas e para que os seus falantes ajam com base nelas.
O significado de palavras como «Este» ou «Oeste» só é compreendido através do seu uso no seio das regras e dos «jogos» estabelecidos, em qualquer língua, num dado momento e num local específico. A linguagem requer que haja regras subjacentes a todas as aplicações possíveis de uma palavra ou de um aglomerado de palavras — como os quatro pontos cardeais. Apreender estas regras — tal como as regras de qualquer jogo — significa saber como usar essas palavras em diferentes contextos: um poderá ser um contexto astronómico e outro um contexto religioso, económico, filosófico ou, claro está, geográfico. Mas, quando «Sul» significa coisas diferentes e, muitas vezes, contraditórias para diferentes pessoas, isso não é uma questão de opiniões pessoais arbitrárias: pelo contrário, o significado da palavra funciona de acordo com as regras do jogo de linguagem específico que ela habita, que também estão sujeitas a mudanças e adaptações, mas que só podem ser alteradas em relação com outras comunidades e junto com elas. Este livro não revela qualquer verdade oculta nem qualquer realidade geográfica duradoura relativa ao Norte, ao Sul, ao Este e ao Oeste porque essa verdade não existe. Pelo contrário, segue os «caminhos» de cada ponto cardeal em diferentes culturas e ao longo do tempo. A adoção de um conjunto de significados de linguagem direcional, em vez de outro, demonstra que a natureza de cada um dos quatro pontos, ao longo da história e em diferentes culturas, é relativa e não absoluta. No que toca às palavras que qualquer um de nós usa para referir esses pontos, em qualquer língua que seja, o contexto escrito e geográfico é vital. A situação é tudo quando se trata de compreender os pontos cardeais.
Embora a língua e as «parecenças familiares» entre os quatro pontos sejam fulcrais para o modo com os entendemos, alguns psicólogos cognitivos acreditam que a apreensão mental das direções pode, inclusive, ter precedido a língua nos seres humanos primitivos. O espaço era anterior à língua, e, por conseguinte, as palavras e as metáforas espaciais tornaram- -se centrais no desenvolvimento e na evolução linguística. Além de «cimo» e «fundo», há inúmeros termos espaciais que invadem as línguas antigas e modernas, caracterizando os sistemas conceptuais e as relações pessoais. Estes vão de «amigos íntimos» e «afastamento» a «fim do caminho» e «deixar tudo para trás das costas».
Na língua inglesa, «orientarmo-nos» é localizarmo-nos no espaço, e, contudo, a palavra vem do termo latino oriens, que significa «este» ou «nascente» (como o Sol). O significado literal de «desorientação» é perdermos a noção da direção para a qual fica o este. A partir daí, multiplicaram-se e sobrepuseram-se rapidamente as ideias e as crenças, dependendo das regras e dos jogos de linguagem em que habitávamos.
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