A edificação de uma fábrica de ondulações mecânicas fora do ambiente natural dos oceanos, reproduzindo sensações recolhidas no mar é um sonho que alimenta a vontade do homem desde os finais do século XIX.

Ludwig II, o “Rei Cisne” ou“Rei Conto de Fadas”, eletrificou um lago à volta do seu castelo, na Bavaria para criar movimentos ondulatórios. O naturopata Friedrich Bilz  ergueu o Bilz-Bad (Undosa Bilzbad), em Radebeul, Alemanha, a 25 de junho de 1912, e tornou este spa a primeira piscina de ondas do mundo que ainda sobrevive ao tempo.

Da extravagância à saúde, a produção de vagas artificiais começa a irromper em solo firme, entra no lúdico e no desejo de colocar as pranchas de surf em ação. Os Estados Unidos da América adiantaram-se nos finais da década 1960 do século passado e Arizona, Alabama e Disneylândia entram no mapa dos primórdios das ondas Made in terra.

Timidamente, à boleia do crescimento do surf a nível mundial, as competições começam a abrir portas às vagas fabricadas. Marui Wave Pool, no Japão, foi palco nos distantes anos 80 de uma etapa do circuito mundial da ASP (Associação de Surfistas Profissionais), associação que deu origem à atual Liga Mundial de Surf (WSL).

A Kelly Slater Wave Company (KSWC), empresa de Kelly Slater, abre a Caixa de Pandora e coloca a tecnologia de ondas no circo mediático ao permitir as etapas do circuito mundial de surf nos improváveis Surf Ranch (EUA), Lemoore, Kings County na Califórnia, a 100 quilómetros do Pacífico e o Surf Abu Dhabi, na ilha Hudayriyat, Emirados Árabes Unidos, receberam

A empresa do 11 vezes campeão do mundo de surf, juntamente com a Wavegarden, líder mundial de origem basca e a australiana e a Surf Lakes, assumem-se como pioneiras na criação de tecnologia capaz de gerar diferentes tipos de vagas em tamanho e forma, uma I&D espalhada igualmente a outros cantos do planeta (belga AllWaves).

Óbidos recebe última tecnologia e produzirá menu de 25 ondas

A tendência não é moda passageira e veio para ficar. E tem escolhido locais onde nem nos sonhos mais loucos pensaríamos surfar. Bristol, Inglaterra, Cardiff, País de Gales, Edimburgo, Escócia, Munique e Dusseldorf, Alemanha, Sion, Suíça, praia da Grama, interior de São Paulo, Brasil, país onde os projetos crescem à velocidade da luz, Melbourne e Sydney, na Austrália, na British Columbia, Canadá, Roterdão e Haia, Países Baixos ou Coreia do Sul, são alguns dos pontos cardeais onde a mão e mente humana desenha ondas non stop para todos os gostos e dificuldades com recurso a alta tecnologia.

Portugal não podia ficar fora deste movimento. Tal como noutros pontos do globo, a localização inopinada surpreende. Será em Óbidos, cidade Literária (UNESCO), terra da Ginja e da Feira do Chocolate, vila medieval sem qualquer relação com o mundo das pranchas, mas encravada entre três mecas do surf mundial, Ericeira, Peniche e Nazaré.

A ideia nasceu do sonho de Manuel Vasconcelos. Foi acompanhado pela Wavegardem, empresa de engenharia basca, fundada em 2005 autora de, dez anos depois, da primeira piscina de ondas no País de Gales, Surf Snowdonia. Hoje, a empresa tem 12 parques ativos, do Brasil à Escócia, tem a marcas das suas ondas em outros 10 em pipeline e 50 projetos em projeto.

O Surf Village, assim se chama o empreendimento, será o berço da primeira piscina de ondas artificiais em Portugal. Inserido numa área de cinco hectares, situa-se nas proximidades da Lagoa de Óbidos, a dois quilómetros do mar (praia do Rei Cortiço), vizinho de resorts (Bom Sucesso e Lagoas Village) e campos de golfe.

A tecnologia usada para as ondas é de última geração, e a primeira do género na União Europeia. “Vamos incorporar as funcionalidades tecnológicas mais recentes e será um dos mais avançados do mundo ao nível ambiental”, assegurou Josema Odriozola, engenheiro mecânico, fundador e presidente executivo da Wavegardem, durante a apresentação do parque de ondas.

A fábrica da espuma surfável receberá mais de um milhão de litros de água, será capaz de gerar até mil ondas por hora, a onda mais potente terá um custo energéticos de 10 cêntimos, acrescentou na mesa redonda de apresentação do projeto.

No menu há 25 tipos de ondas diferentes. Democrata, vira à esquerda,  à direita, tem manobras para todos os níveis de principiantes a profissionais e está aberta ao treino profissional ou diversão pura. “Em época à alta, podemos começar às 7h00 e fechar à meia-noite”, num cenário de ondas “matematicamente perfeitas”, prometeu Manuel Vasconcelos, presidente executivo da Surfers Cove, promotora do empreendimento.

“Somos complementares ao mar. Podem aprender aqui e depois aplicam no oceano”, fixou o CEO da Surf Coves, caminho que pode ser aproveitado pela própria seleção nacional de surf. “Tivemos uma declaração de interesse do antigo presidente do Comité Olímpico, José Constantino, que realçava esta plataforma para uso do alto rendimento desportivo”, recordou Manuel Vasconcelos em conversa com os jornalistas.

A sentença foi assumida por Gonçalo Saldanha, presidente da Federação Portuguesa de Surf (FPS). “Será um parque de diversões para os nossos selecionadores. A grande vantagem é o planeamento e não depender de condições meteorológicas e adaptar as ondas a longboard ou para surf (surf adaptado)”, acrescentou.

25 milhões de investimento 

“É um investimento de elevada dimensão: 25 milhões de euros,” informou o presidente executivo da Surfers Cove, promotora do empreendimento que é muito mais do que só uma piscina de ondas.

O bolo é dividido entre capitais privados e públicos. “40% são Fundos Comunitários, Turismo de Portugal e o Compete - Programa Inovação Produtiva. O projeto não avançava sem os Fundos Comunitários, é uma fatia importante”, realçou o CEO que partilha a liderança executiva com Marcelo Martins (Onda Pura Surf Center), no duplo papel de promotores e investidores.

“O resto (60%), são investidores privados, maioritariamente, portugueses”, sublinhou à margem da conferência de apresentação decorrida num estaleiro de obras, exato local onde será implantado o edifício principal.

“Tivemos investidores diferenciados, financeiros, da indústria de surf, os próprios promotores, eu próprio investi também no projeto, famílias...”, enumerou. No aglomerado entra a Menlo Capital, a Despomar, Admar, Draycott, os acionistas do Noah Surf House e do Hotel Areias do Seixo e o surfista profissional, Kanoa Igarashi, japonês, top-10 da Liga Mundial de Surf (WSL), medalha de prata olímpica em Tóquio2020 e um amante de Portugal, onde tem residência.

Não desata o segredo dos valores investidos por cada um dos acionistas. “Meio milhão para cima, promotores um pouco menos”, é o que pode dizer sobre um projeto que deverá gerar “uma faturação anual estimada de 10 milhões de euros”, quantifica. “Terá um retorno muito interessante para todos os investidores”, antecipa o antigo homem da banca, setor onde esteve “17 anos”, sinalizou.

No que toca à injeção financeira (para além do financiamento bancário), Manuel Vasconcelos revelou outra modalidade, um passe familiar (agregado de 4 pessoas). “Criámos uma comunidade de sócios-fundadores. Numa primeira fase foram 100, abrimos agora a outros 100, cada qual pagou uma joia e têm os benefícios adicionais durante 10 anos, tal como nos Campos de golfe, por exemplo”, informou.

Da ideia em 2022, à primeira pedra do empreendimento, 2025, passaram três anos. A obra do primeiro parque de ondas artificiais “começou no final de julho”, anotou. No final do próximo verão (2026) é “para estar a bombar ondas”, sendo que a abertura oficial decorrerá “no final do ano”, calendariza.

“Tive convites para investir nos Estados Unidos e no Japão e não o fiz” 

De entre os investidores, um nome sobressai. Kanoa Igarashi, surfista da elite mundial (Championship Tour) desde 2016. A forte ligação a Portugal, onde tem residência, país pelo qual nutre “um carinho diferente pelas pessoas e cultura”, subjaz às razões para a aposta feita.

“É o país onde passo mais tempo”, confessou. “Ajudou-me bastante na evolução do surf” e “mesmo sem competir por Portugal, sinto que levo sempre a bandeira quando estou na água”, assumiu o japonês, medalha de prata nos JO Tóquio.

“Investir numa piscina de ondas foi sempre um sonho. E não para mim”, anotou. “Sei que o futuro do surf é construção de piscinas de ondas”, contou aos jornalistas. “Tive convites para investir nos Estados Unidos (Califórnia) e no Japão e não o fiz. Senti uma coisa da alma que tinha de ser em Portugal”, exclamou.

“Queria fazer parte de um projeto que realmente fará fazer diferença”. Aproveitando o “potencial que o Portugal tem”, sente-se confiante que ajudará a “próxima geração”.

Desde que surfou pela primeira vez numa piscina de ondas, Kelly Slater ficou “apaixonado”, adiantou. “Na piscina de ondas consigo fazer manobras que nem sabia que era possível. O backflip que fiz no ano passado, nunca tinha pensado ser possível fazer”, exprimiu.

Procura, por isso, transformar as montanhas de água produzidas artificialmente num campo de treino alternativo ao mar. “Cada onda que apanho numa piscina, sinto que melhorei um bocadinho”, sustentou apontando para este novo laboratório como o caldeirão dentro do qual cozinhará os dois grandes objetivos no horizonte próximo: campeão do circuito mundial e medalhado de ouro olímpico em Los Angeles 2028.

Vasco Ribeiro, uma das muitas caras conhecidas presentes na apresentação do Surf Village, pentacampeão nacional, é um aficionado do que a tecnologia de ondas artificiais pode oferecer em contraponto à mãe natureza. “Há espaço para os dois. Surfo nas piscinas e no mar, é uma grande mais-valia para para profissionais e quem está a começar”, identificou o surfista do Estoril.

A razão é simples. “É a repetição e temos um sítio onde podemos evoluir e repetir em ambiente controlado”, apontou o surfista que considerou a estreia de Portugal na rota das piscinas de ondas encaixa-se na “evolução” que está a acontecer no meio. “É quase obrigatório, nunca é tarde e vai ser bom para toda a gente”, finalizou.

Combate à sazonalidade 

Para além de “democratizar o surf”, assumiu Marcelo Martins, gestor operacional do Surf Village, o que vai nascer em Óbidos pretende ser muito mais do que um hotel de surf ou um mero espaço de diversão aquática.

Frederico Valsassina é o arquiteto que assina os 56 bungalows, o edifício principal feito de madeira da Carmo, de Oliveira de Frades, e cujos módulos de quatro metros (T0) permitem “adicionar peças para fazer T1 a T2”, detalhou.

Da arquitetura simples, destaca-se a relação “piscina de ondas, mar, jardins e uma piscina própria, um restaurante que permite estar “com um olho no mar, o outro na piscina”, identificou durante a apresentação do Surf Village que terá ainda um Loja 58 Surf, skate parks, courts de padel e beach ténis, ginásio e escola de surf.

Na envolvência, o pinhal que bordeja a Estrada Municipal M306 será requalificado, potenciando a biodiversidade existente. Manuel Vasconcelos regressou à localização do primeiro parque de ondas artificiais em Portugal, assente, por casualidade, em terrenos da família.

“Estamos entre o triângulo dourado da Nazaré, Peniche e Ericeira”, apontou. “Não há como não entrar no mapa”, antecipa. “Óbidos era o município que bebia menos da indústria do surf”, recordou. “Agora é um bom complemento a estes resorts turísticos. Não queremos ser mais um hotel com Campo de Golfe. Precisamos destas atrações turísticas inovadoras onde podemos tomar uma ginjinha com uma onda matematicamente perfeita”, sorriu.

Situado a cerca de 100 quilómetros de Lisboa e mais de 200 do Porto, a diferenciação do Surf Village, projeto “privado que cumpre serviço público” permitirá dinamizar a economia local, acentuou Filipe Daniel, presidente da Câmara Municipal de Óbidos. “Estamos fora dos grandes centros do turismo. Óbidos não é Lisboa, Porto, Algarve, nem Madeira e o turismo é fundamental combater a sazonalidade”, frisou ao 24notícias, Francisco Calheiros, presidente da Confederação do Turismo de Portugal.

Catalogado como um exemplo de “boa aplicação dos fundos europeus” e uma sintonia entre o “setor público e privado” projeto “reforça Portugal como destino de eleição para a prática de surf a nível mundial”, concluiu Pedro Dias, secretário de Estado do Desporto.