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Vivemos no tempo mais próspero da História da Humanidade. Isso é um facto, que tenho vindo a repetir. Nunca houve tanta esperança de vida, tanto acesso à educação, tanta redução da pobreza extrema. No entanto, também nunca foi tão nítido o vazio que tudo isso deixou à mostra: um buraco de sentido, uma crise de valores.
A miséria de hoje já não se deve à falta de recursos ou conhecimento: explica-se com má organização e falta de sentido moral. Quando conversamos, votamos ou até compramos sem procurarmos partilhar um sentido de moralidade comum, sobra um mundo onde ser bom parece ingénuo e ser mau parece compensar. A bússola moral encravou. E não, não é só o “mundo lá fora”. É nos corredores do poder, nas plataformas digitais, nas instituições e nas casas dos que antes admirávamos.
Durante séculos, a Igreja Católica foi o eixo moral da Europa. E caiu do pedestal, com razão. Abusos encobertos, dogmas imutáveis, uma estrutura quase ditatorial. A ciência veio, explicou melhor o mundo e o progresso varreu tudo o que não se adaptou. Justo. Mas... e agora? Substituímos a bússola por quê?
Os valores ficaram em suspenso, como se tivéssemos medo de os definir. A sociedade parece indiferente a verdadeiros juízos de valor. Os falsos moralismos, esses, mantêm-se. É fácil criticar e tentar censurar um humorista, alguém que não tem poder ou do qual nos podemos aproveitar (e quem sabe “sacar um milhãozito”). Mas quando o homem mais rico do mundo faz uma saudação nazi? Nem um mero milhãozito. Nada! Assim, entre os memes e os algoritmos, quem tenta seguir valores é muitas vezes gozado: ingénuo, "anjinho", ultrapassado. Bem, antes “anjinhos” que Anjos…
É neste contexto que o novo filme de James Gunn oferece algo que a cultura precisava: um herói sem tabus, sem medo da política ou dos mais complexos juízos morais. Vi, encantado, o filme que melhor traduz uma banda desenhada para o grande ecrã. Fá-lo sem se refugiar unicamente naquele humor batido ou num vilão tão irreal que nem nos obriga ao mínimo raciocínio moral. A proposta é simples e eficaz: um Super-Homem que salva esquilos. Que é super... por ser bom. Disruptivo? Na verdade, sim. Porque a bondade, hoje, tornou-se revolucionária.
A mensagem é clara e urgente: para ser super, basta fazer o bem. Com compaixão, com valores. Isto aplica-se ao bairro, à empresa, à escola e até à geopolítica. Sim, valores aplicam-se até aí… ou aplicavam-se. Agora, quando vejo imagens de Jarhanpur no telejornal (ao ver o filme as semelhanças são inegáveis), seguidas da mais recente narrativa do governo de Netanyahu, anseio o aparecimento do herói de Krypton.
Fora do cinema, no meio do ruído mediático, esquecemo-nos que a maioria silenciosa é decente. A verdadeira Humanidade não se encontra em tweets. Está nas pessoas que cedem lugar no metro, que cuidam da avó, que perdoam no silêncio. Talvez só nos falte ver essa maioria refletida nos espelhos da atualidade.
O mundo atual amplifica os Luthors: os que manipulam, corrompem, conquistam poder a qualquer custo. Recebem as manchetes, as entrevistas, os cliques. Mas são a minoria barulhenta. Os Super-Homens (com H grande) estão aí, mas agem no anonimato. Só aparecem quando é mesmo preciso. Às vezes vestem fato, outras vezes, nem disso precisam: como Zelensky, o comediante que virou símbolo de resistência.
Quantas vezes já não vimos um “anónimo” transformar-se em herói comunitário? Quantas vezes não fomos nós esse herói, mesmo que só por cinco minutos?
A resposta não está em criar novos dogmas ou messias. Está em reconhecer que os valores existem, com ou sem religião. Que moralidade não é um equívoco dos crentes, mas uma necessidade civilizacional. Como podemos melhorar se não definirmos os critérios e as métricas que guiem o progresso? O mundo atual reflete as métricas que têm reinado. O PIB cresce, mas será que estamos mesmo a progredir? Afinal o PIB cresce por cá, à medida que a habitação própria se torna uma miragem para o cidadão comum, ou na América cada vez que os custos de saúde (e as carteiras dos CEOs das seguradoras) engordam. E se analisarmos a atualidade sob o prisma de outros valores, por exemplo, os que inspiraram a Revolução Francesa: liberdade, igualdade, fraternidade? Será que avançamos assim tanto? Eu diria que talvez tenhamos melhorado desde então, mas muito mais lentamente do que o progresso científico e económico permitiriam, quando combinados com os valores certos.
Saí do cinema com uma convicção: ser boa pessoa não é antiquado. Não é fraco. Por isso, o Super-Homem de Gunn é mais que uma personagem: é um lembrete. A Humanidade não precisa de deuses. Precisa de bons humanos e já tem milhares de milhões prontos a emergir, como heróis debaixo do gelo.
No fundo, tentem ser as melhores pessoas que conseguem ser, no dia-a-dia, porque “maybe that’s the real punk rock”!
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