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Encontrámo-nos no seu atelier na Rua do Alecrim, em Lisboa, onde trabalham cerca de dez pessoas, e quando entrei no seu gabinete, antes de começar a gravar a entrevista, desligou Rachmaninoff. Diz que não pode passar sem os lápis de cera Caran d'Ache ou o rolo de papel vegetal onde faz os seus esquissos, mas a música é essencial enquanto trabalha.
Um mês antes ouvi-o falar sobre sobre "Urbanismo, Habitação e Espaço Público", numa conferência organizada pelo Juntar Lisboa, um movimento de reflexão cívica independente, criado por um grupo de cidadãos, profissionais e especialistas em várias áreas, com o objetivo de pensar a cidade de forma construtiva.
Ricardo Bak Gordon, professor convidado em Harvard, Navarra, Barcelona, Lovaina ou Mendrisio, tem uma extensa obra nacional e internacional e diversos prémios no currículo: FAD (Fórum de Arquitetura e Design), AICA (Associação Internacional de Críticos de Arte) e Valmor, entre outros.
Nesta entrevista, denuncia a falta de obra pública em Portugal e a incapacidade da administração de concretizar projetos: "Há contratos assinados e projetos concluídos que ficam na gaveta", critica. E dá como exemplos a reconversão das antigas instalações da EDP em sede da câmara de Almada ou os 168 fogos da Quinta das Conchinhas, em Lisboa.
O arquiteto insiste que a habitação pública deve ser prioridade e recorda que Portugal tem uma das taxas mais baixas da Europa: 2% contra uma média de 11%, com países a atingirem os 20%.
Lisboa é o centro da conversa, e para Ricardo Bak Gordon a cidade devia ser pensada como um território único à volta do Tejo, em articulação com a margem sul. Mas há outros temas em cima da mesa, como a construção em altura — um tabu em Portugal —, ou as demolições, palavra maldita para as autarquias.
Antes de mais, pode fazer um retrato do setor e daquilo que é atualmente a vida dos arquitetos.
Por um lado, é um pouco incerta; por outro, nunca deixa de estar num processo semelhante: os arquitetos são um pouco uma caixa de ressonância dos tempos e da sociedade. O trabalho vai sendo um reflexo daquilo que vai acontecendo nas nossas vidas coletivas e está à vista de todos: há pouco investimento público, pouca obra pública e muitas promoções privadas.
Ou seja, o que vemos é muito turismo, vemos o fenómeno turístico a desenvolver-se cada vez mais e parece que essa é a nossa única vocação e a nossa única indústria. Curiosamente, essa indústria até tem sido suportada mais por investimento privado do que público. E os arquitetos vão reagindo um pouco a esse mercado.
Penso que a grande missão dos arquitetos devia ser fazer mais obra pública do que obra privada - e há tanta obra pública que se devia fazer e que faz falta. Mas o que acontece com frequência é haver projetos que se desenvolvem e que depois não se concretizam, o que é ainda mais frustrante.
"Há pouco investimento público, pouca obra pública e muitas promoções privadas"
Que projetos são esses que desenvolveu e ficaram por concretizar?
Tenho uma série deles, mas dou alguns exemplos recentes. Há dois ou três anos, ganhámos um concurso para fazer a nova sede da Câmara Municipal de Almada, um concurso lançado pela Câmara Municipal de Almada, um projecto interessantíssimo, porque era a revitalização do centro de Almada a partir da utilização de um edifício preexistente, a sede da EDP de Almada, um edifício de Keil do Amaral, modernista, que seria reconvertido em sede da câmara.
Fizemos o projeto em todas as fases e, vale a pena dizer, porque às vezes as pessoas não têm essa noção, um projeto de arquitetura para ficar concluído atravessa três fases de desenvolvimento muito importantes — o estudo prévio, o projeto de licenciamento e o projeto de execução —, que são conjuntos de desenhos infindáveis, cheios de detalhes, de pormenores, feitos por arquitetos e por equipas imensas que se juntam para fazer esses trabalhos, de engenheiros de toda a sorte a consultores.
"Penso que a grande missão dos arquitetos devia ser fazer mais obra pública do que obra privada"
Que explicação dá a câmara?
O facto é que, até hoje, a Câmara Municipal de Almada não lançou o concurso de empreitada, sem que saibamos se isso acontece porque não tem vontade, porque não conseguiu financiamento, ou porque não tem estrutura para que isso aconteça, porque todos estes cenários são possíveis.
Também assistimos em Portugal a cenários em que os dirigentes querem fazer, mas não têm meios - humanos, de gestão, de decisão -, para transformar a coisa vontade em coisa real. É muito insólito que assim seja, mas é verdade.
Já tive, ao longo da minha vida, conversas, inclusivamente com ministros, em que dizem que no quinto andar a coisa é decidida, no quarto andar começa a ter dificuldades, no terceiro andar é bloqueada e nunca chega ao segundo andar.
Mas existe um contrato, o projeto foi comprado?
Existe um contrato para fazer o projeto, o projeto foi feito e comprado e pago, neste caso pela Câmara Municipal de Almada. A questão é que nós trabalhamos para que as coisas sejam executadas. Não me satisfaz fazer um projeto e ser pago por ele se depois não se concretiza. Mas isto repete-se muitas vezes.
"Há dois ou três anos, ganhámos um concurso para fazer a nova sede da Câmara Municipal de Almada [...] Até hoje, a Câmara Municipal de Almada não lançou o concurso de empreitada"
É, além do mais, má despesa pública: gasta-se dinheiro e tempo para ficar tudo na mesma?
Absolutamente. Mas já nem vou por aí, porque isto é completamente distópico. Embora também seja verdade que muitas vezes há projetos que são encomendados apenas para tentar dinamizar fundos, para apresentar candidaturas a fundos. Mas os projetos de execução não deviam ter esse objetivo, são projetos prontos para a obra e que devem ser construídos.
Falou noutros casos e gostava que desse mais exemplos.
Tenho outros casos. Há tempos, fiz um trabalho interessantíssimo para a Câmara Municipal de Lisboa: a reabilitação do Teatro Romano, ao pé da Rua da Madalena, o edifício mais antigo da cidade. O sítio arqueológico tem sido escavado sob a direção do próprio Museu do Teatro Romano, mais concretamente da sua diretora, Lídia Fernandes.
A ideia era que o teatro deixasse de ter a latada que está a proteger um edifício com dois mil anos e se fizesse algo digno, que lhe desse valor. Até podíamos dizer que é um investimento ligado ao turismo, mas também à cultura e ao urbanismo, seguramente uma mais-valia para a cidade.
Fizemos o trabalho, todas as fases de projeto, e nunca saiu do papel.
A habitação é o tema do momento. Ganhou um concurso do IHRU — Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana para a construção de 168 fogos, já em 2023. Em que fase está o projeto?
Participámos em vários concursos públicos lançados pelo IHRU e ganhámos dois. Um veio a ser anulado por conflito dentro do próprio júri — o Castelo da Maia, nos arredores da Área Metropolitana do Porto. O outro manteve-se: a Quinta das Conchinhas, em Lisboa, um trabalho para os tais 168 fogos.
Uma vez mais, contratámos, fizemos, desenvolvemos todas as fases do projeto e, neste momento, passou um ano sobre a última entrega do projeto de execução, já revisto, e o que é facto é que ainda nada saiu do papel.
A Quinta das Conchinhas fica no vale de Chelas, na Zona J. É curioso notar este fenómeno, a tendência de mudar os nomes dos sítios, provavelmente na esperança de alterar a sua condição. Mas a condição dos lugares não se altera só mudando o nome, altera-se se houver investimento público que melhore o território e a vida das pessoas que lá moram.
Não adianta nada chamar-lhe Quinta das Flores Amarelas e do Sol Nascente se depois não se meter dinheiro na educação, nas infraestruturas urbanas, nos transportes públicos e nos apoios sociais de que estes bairros também carecem.
"Trabalhamos para que as coisas sejam executadas. Não me satisfaz fazer um projeto e ser pago por ele se não se concretiza"
A propósito de mudança de nomes: a antiga Parque Escolar, que fazia a reabilitação de escolas públicas, mudou de nome para Construção Pública em junho de 2023 e expandiu a sua atividade para a habitação pública. Isto pode gerar confusão com o IHRU, o instituto que gere a habitação pública?
Sei que o IHRU lançou e promoveu os concursos, contratou os projetos e agora tem em seu poder esta coleção de projetos concluídos que não avançam.
Segundo notícias recentes, esses trabalhos — já prontos para lançamento em concursos de empreitada —, irão transitar para a Construção Pública, a antiga Parque Escolar, que desenvolveu um imenso trabalho de reabilitação das escolas públicas portuguesas. Aparentemente, será essa a entidade a lançar os concursos e a desenvolver as obras.
Não digo que não. Aliás, admito que, assim que for desbloqueado o empréstimo do Banco Europeu de Investimento para construir 12 mil fogos de raiz — como anunciou recentemente o primeiro-ministro —, estes projetos, já prontos, irão finalmente avançar.
"O IHRU lançou e promoveu os concursos, contratou os projetos e agora tem em seu poder esta coleção de projetos concluídos que não avançam"
Tem larga experiência internacional. Noutros países, nomeadamente na Europa, quanto tempo medeia entre a aprovação de um projecto público e o início da sua construção?
Posso responder com outra pergunta: recorda-se de quando o TGV começou a ser discutido por Portugal e Espanha? A Península Ibérica é geograficamente una, mas, passados estes anos, em Espanha existem 4.400 km de linhas de alta velocidade e em Portugal existem zero.
Isto é muito interessante: o que mudou? Qual é o dia em que um país toma a decisão e implementa, e o outro em que se discute indefinidamente sem implementar?
As obras públicas — e a obra em geral — são processos difíceis, morosos e lentos por natureza. Portanto, a condição da urgência é imperativa.
"Recorda-se de quando o TGV começou a ser discutido por Portugal e Espanha? A Península Ibérica é geograficamente una, mas, passados estes anos, em Espanha existem 4.400 km de linhas de alta velocidade e em Portugal existem zero"
Demora mais a avançar a obra do que a desenvolver o projeto?
Os projetos de arquitetura são lentos e precisam de tempo. Mas, imagine, a aprovação das câmaras municipais demora mais tempo do que o tempo dado aos projetistas para desenvolverem uma fase do projecto, que significa terem equipas de 20 pessoas a trabalhar e a produzir centenas de desenhos.
Esta incapacidade da administração pública de trabalhar nesta consciência da urgência é total.
"É curioso notar este fenómeno, a tendência de mudar os nomes dos sítios, provavelmente na esperança de alterar a sua condição. Mas a condição dos lugares não se altera só mudando o nome, altera-se se houver investimento público"
Esses são os impedimentos burocráticos, digamos assim. O PRR tem uma execução de 40% nesta altura e o Portugal 2030, que está no quinto ano, de 21%. Dizemos que não temos dinheiro, mas quando temos não o aproveitamos. Faz sentido?
Não temos capacidade de gerir esse dinheiro nem de ter equipas bem geridas e capazes de, em tempo útil, pôr as coisas a andar. Volto a dizer: passou um ano desde que o projeto da Quinta das Conchinhas revisto foi entregue. Este compasso de espera é maior do que o tempo que o atelier teve para desenvolver o projeto de execução de um pedaço de cidade. Que, de repente, fica parado.
Claro que é preciso ter uma grande dinâmica na administração pública para se conseguir responder em tempo a coisas que são fundamentais. A urgência neste processo de habitação, por exemplo, é imensa. E devia haver consciência disso, ou seja, não podem perder 24 horas desde o dia em que recebem os projetos, quanto mais 24 semanas ou 24 meses. Isso não acontece e depois dá nisto.
"A incapacidade da administração pública de trabalhar nesta consciência da urgência é total"
Pergunto sempre: qual é a pedra na engrenagem? O que leva a administração pública a ser mais papista do que o Papa? Também em questões de acessibilidade vemos exemplos disso, Portugal e Espanha têm regulamentos diferentes na área da mobilidade reduzida.
A história das casas acessíveis é gritante. Em Portugal alguém decidiu exacerbar o espírito da lei das acessibilidades, o que fez com que todas as casas que se constroem, ou que se reabilitam, tenham de ter casas de banho acessíveis, onde possa entrar uma cadeira de rodas.
Até aqui, ainda podíamos dizer que está tudo bem. Mas em Espanha considera-se um círculo (para rodar uma cadeira de rodas) de 1,20m de diâmetro, em Portugal é 1,50m. O ser humano é o mesmo, a cadeira é a mesma, mas aqui pôs-se mais 30cm para dar a volta.
Portanto, num empreendimento com 168 fogos, tem 168 casas onde a instalação sanitária é do tamanho de um quarto. Isso custa uma fortuna em espaço, em metros quadrados. Nos países mais desenvolvidos - desde logo na Holanda -, o que acontece é que cada vez que se faz um edifício, uma percentagem dos apartamentos tem áreas acessíveis.
Não faz sentido, sobretudo na habitação pública, que é gerida pelo Estado central ou pelas autarquias, onde existe a possibilidade de, se alguém ficar numa cadeira de rodas, poder trocar do quarto andar para o rés-do-chão, realojar numa casa preparada. Mas isto é só um pequeno exemplo desta entropia, desta mania de ligar o complicómetro, que faz com que as coisas não aconteçam.
"Em Espanha considera-se um círculo (para rodar uma cadeira de rodas) de 1,20m de diâmetro, em Portugal é 1,50m. O ser humano é o mesmo, a cadeira é a mesma"
Nos Países Baixos existem imensas residências universitárias. Visitei várias: os quartos são mínimos, mas confortáveis, alguns com casa de banho privada, outros partilhada. Em Lisboa, há um projeto para transformar um antigo edifício do Ministério da Habitação, na Avenida 5 de Outubro, em residência universitária — mas não avança por causa do número de quartos.
É sempre mais fácil criar dificuldades para que não se faça nada do que ser responsabilizado por aquilo que se faz. Só que, não fazer nada também tem consequências.
A União Europeia tem, em média, 11% de habitação pública. Os Países Baixos têm entre 20% e 30% e Portugal tem 2% a 3%. Estamos na cauda da Europa em relação à habitação pública. Não estará na altura de pensarmos nisto e de nos comprometermos com a habitação pública? Pelo contrário, as promoções privadas de especulação continuam a fazer-se.
Espanha está a fazer uma coisa que aqui também tem de se fazer, envolver privados, construtoras e grupos de promoção imobiliária como parceiros neste processo.
Quando não se faz habitação pública, revela-se a postura política de um país face à consciência de como quer amparar a sua comunidade. Se você investe em habitação pública, está preocupado com os seus concidadãos, quer que a habitação seja um direito — como, aliás, está na Constituição — e vai fazer a sua parte.
E é para isso que pagamos impostos como pagamos. Porque, noutros países onde também se pagam impostos, a habitação pública representa 12%, 15%, 20% do total. E não consta que as mulheres andem a parir no meio da rua pela Europa fora, o que começa cada vez mais a acontecer aqui. Se vamos por este caminho, é o caminho do salve-se quem puder — e então, de facto, a Constituição está desatualizada.

Não há empresas de construção e mão-de-obra, garantem as entidades públicas. Verdade ou desculpa de mau pagador?
Há um fundo de verdade. E os poucos concursos públicos que têm sido lançados ficam muitas vezes desertos. Isto quer dizer que as autarquias lançam os concursos com um valor de obra impensável, não há uma atualização de preços. Os organismos públicos não têm noção do preço do metro quadrado de construção hoje.
As empresas que existem conseguem faturar mais no privado, por isso deixam os concursos públicos desertos. Espanha está cheia de trabalho e, se calhar, as empresas que lá estão não têm interesse em vir para Portugal por concursos com valores mais baixos.
Não haverá mecanismos que possam evitar que os concursos fiquem desertos? Por exemplo, não colocar um valor máximo e deixar que seja o mercado a fazer o preço e depois perceber se é possível e se tem enquadramento.
Estamos na véspera de eleições autárquicas. Se pudesse, o que ia ver, onde ia mexer nesta área?
Há duas ou três coisas que acho que devem ser feitas. Perceber onde é que a burocracia está a encriptar os processos para que se possam desenvolver. Isso está instalado na câmara municipal, está nas outras entidades adjudicantes, está, de certeza, no Estado e nessas empresas e que já aqui falámos, como o IHRU.
O IHRU teve durante 20 ou 30 anos uma vocação, que era cobrar rendas. De repente, pedem-lhe para fazer coisas que nunca foram a sua vocação, podíamos até perguntar se lhes deram formação, se arranjaram novos quadros. Esperemos que a Construção Pública venha responder a essa solicitação, mas só vendo.
Não é só mais um organismo num processo que já é difícil, como disse?
Só vendo. A única coisa que posso dizer em relação à Construção Pública, e vou andar um pouco para trás no tempo, é que fui um dos muitos arquitetos e engenheiros que participaram no Programa de Modernização do Parque Escolar do Ensino Secundário, que funcionou. Teve os seus problemas, mas foi talvez o tempo histórico da contemporaneidade em que a obra pública mais avançou e mais trabalho se fez, com a modernização de imensas escolas secundárias em termos de infraestruturas
"A cidade de Lisboa devia ser o território que gravita à volta do estuário do Tejo [...] e aí estariam juntos o Montijo, Alcochete, Seixal, Almada, Barreiro"
Mas estava a falar da desburocratização e interrompi.
Há outras questões que me parecem essenciais, uma delas tem a ver com a gestão da área metropolitana da cidade, um assunto que me diz muito e no qual gosto de pensar, que tem a ver com a ideia de que a cidade de Lisboa devia ser o território que gravita à volta do estuário do Tejo.
Senta-se em frente ao rio em Alcântara e parece que o outro lado está à distância de umas braçadas, só que já é concelho de Setúbal. Como é que uma cidade que já viveu da água e à volta da água — os fenícios e romanos vieram para aqui exatamente porque Olissippo [designação pré-românica de Lisboa], era o Porto-Seguro. E instalaram esta cidade precisamente por essa condição extraordinária desse delta à volta do estuário do Tejo.
Acho que o futuro de Lisboa devia mesmo ser lido e trabalhado nesse território contínuo, e aí estariam juntos o Montijo, Alcochete, Seixal, Almada, Barreiro e tudo isso. Este é, para mim, um aspeto fundamental: olhar para esta metrópole, que tem imenso potencial, e voltar a lê-la como um lugar único.
Isso obrigaria a grandes mudanças ao nível da organização?
Aí entram coisas como o transporte fluvial, as acessibilidades. Não podemos olhar para essas outras cidades à volta do estuário e achar que têm de reportar com veneração ao Terreiro do Paço.
Aliás, se estiver no Barreiro e quiser ir ao Seixal e perguntar à Siri o caminho, ela manda ir ao Terreiro do Paço para depois regressar à margem sul — quando já lá está.
Temos de confrontar este tema quando nos perguntamos para onde pode Lisboa crescer. A resposta está em crescer à volta da bacia do Tejo, de forma sustentada.
Agora, isto significa que temos de deixar de olhar para a outra margem como um dormitório. Não, tem lá casa e trabalha lá, vai viver ali. Veja Brooklyn ou New Jersey. Quando olha para Nova Iorque, é lá que a geração de 30 e 40 anos procura fazer a sua vida, a ilha de Manhattan está esgotada.
Acho até que o fenómeno turístico que estamos a viver nos devia alertar para isso, Lisboa corre o risco de perder o encanto.
Disse que as cidades precisam de densidade. Lisboa tem uma baixa densidade populacional — pouco mais de 5 mil habitantes por metro quadrado — comparada com muitas cidades europeias. E não tem construção em altura, o edifício mais alto, a Torre Vasco da Gama, tem 145 metros. Porquê?
Por causa dos sismos não será, o Japão é das regiões mais sísmicas do mundo e Tóquio, por exemplo, está cheia de torres. São Francisco ou Los Angeles, nos Estados Unidos, também. Hoje existem técnicas.
O centro histórico de Lisboa tem 2.000 anos de construções e um palimpsesto que gerou este centro urbano da cidade, admito que não queiramos elementos disruptivos. Diferente são áreas como, por exemplo, o vale de Alcântara ou Alta de Lisboa.
Claro que temos a proximidade do aeroporto, uma grande desculpa para não se construir em altura durante muitos anos. Mas até isso, saindo do canal e das rotas de canal de aproximação à pista, podíamos fazer. Temos é um plano diretor que desde sempre olhou com muito desdém para isso.
Lembro-me sempre de um projeto do arquiteto Álvaro Siza, convidado para fazer um estudo sobre a zona onde está a Lx Factory e o viaduto da Alcântara, que propunha a construção de três torres nesse território, que ficavam exatamente com a altura dos pilares do viaduto. Com isso, libertava o chão, para que o chão fosse espaço público.
A construção em altura também tem que ser vista na perspetiva de ir libertando o solo para espaço público. Se não pode construir em altura e tem direito a xis metros, o mais provável é que vá empapar tudo e não sobre nada para poder oferecer algo de novo à cidade e aos seus cidadãos.
A construção vertical tem de ser desmistificada e, mais uma vez, tem que ser vista caso a caso, para compreender onde há e não há lugar, onde pode e onde não faz sentido.
Temos muito território desocupado, para não dizer abandonado?
Dou-lhe um exemplo: a Margueira, em Almada. É um território incrível, desocupado, onde eram os estaleiros da Lisnave. Está lá o famoso pórtico da Lisnave, que se vê muito bem de Lisboa e arredores. Será o equivalente a 30 ou 40 pisos, mas está lá construído, parado e abandonado.
Seria um território extraordinário para pensar e desenvolver uma cidade de futuro. Faz-me sempre impressão que haja esta reação tão negativa à construção em altura.
"O Regulamento Geral das Edificações Urbanas foi pensado para a cidade moderna dos anos 70, mas continua a ser aplicado também na reabilitação. Em Alfama, se quiser pôr uma escada num prédio, perde casa"
Disse logo no início que a arquitetura é um reflexo da sociedade, vai evoluindo com a sociedade. A lei tem evoluído?
Não, pelo contrário, tem retrocedido bastante. Há uns anos, na gestão do vereador Manuel Salgado, houve um período em que foi suspensa alguma legislação para se poder promover a reabilitação e nessa altura sentiu-se um boost. Depois voltámos ao mesmo.
Veja-se, por exemplo, a questão das instalações sanitárias acessíveis. O Regulamento Geral das Edificações Urbanas, o famoso RGEU, foi pensado para a cidade moderna dos anos 70, mas continua a ser aplicado também na reabilitação.
Em Alfama, por exemplo, se quiser pôr uma escada num prédio, à luz do RGEU fica só a escada e perde casa toda, porque não cabe lá mais nada. Não é possível.
Há leis a mais e bom senso a menos. A história das cidades, que é a história dos seres humanos, está aí para percebermos o que é e o que não é razoável. Mas neste momento estamos muito encriptados em legislação a mais e cada autarquia tem a sua. Há uma proliferação de legislação municipal sobre construção do Algarve ao Norte, com requisitos diferentes e interpretações diferentes para a mesma coisa, até naquilo que é definição de área útil e área privativa muda de uma câmara para outra.
É completamente kafkiana a quantidade de legislação que para depois não conseguimos fazer as coisas que são efetivamente essenciais.
Só não vou dizer que estamos na pior fase porque a lei de Murphy ensinou-nos que se puder ficar pior, vai ficar pior.
"Há leis a mais e bom senso a menos"
Em Portugal existe outra raridade, não de fazem demolições, Mesmo que seja mais barato e mais eficaz deitar abaixo, opta-se sempre por emendar. Porquê e com que vantagens?
É verdade. Julgo que o facto de não se demolir talvez se deva a um certo complexo de pobreza, que faz com que não consigamos olhar para as construções como passíveis de serem subtraídas. Quando as construções, como todas as outras coisas que são manufaturadas, têm um período de vida previsto e razoável, há umas que se podem manter, naturalmente, como as pirâmides do Egito, mas há outras que cumpriram o seu tempo e se continuarmos a sobrepor, a forçar melhoramentos, corremos o risco de estar a alterar a construção de os melhoramentos custarem mais caro do que deitar abaixo e fazer de novo.
Aliás, no tempo da Parque Escolar, se algum aspeto ficou aberto ao debate, para ser estudado, foi a ideia de fazer melhoramentos às escolas pavilhonares. As escolas pavilhonares, que representam 75% das escolas secundárias portuguesas, foram feitas no pós-25 de Abril, quando o ensino secundário passou a ser obrigatório e, por isso, foi urgente ter um sistema que pudesse ser aplicado de Norte a Sul, interior ou litoral.
Os pavilhões cumpriram o seu desígnio, muitos de nós estudámos nessas escolas pavilhonares, e chegaram ao fim, porque não cumprem os requisitos térmicos, acústicos e tantos outros, como a qualidade do ambiente, a relação entre espaços encerrados e espaços de circulação, coisas assim.
O que é facto é que ninguém teve coragem à época de pôr isto causa, de demolir esses pavilhões, e isso é nitidamente um trauma de um país pobre.
"Julgo que o facto de não se demolir talvez se deva a um certo complexo de pobreza"
Lembro-me bem da implosão das torres de Tróia em direto. Não foi assim há tanto tempo, e parecia quase o lançamento de um vaivém espacial.
Aí tem um bom exemplo. Em paralelo, estive a trabalhar na Suíça, logo depois da Parque Escolar, e fiz uma série de projetos de escolas, acabei a construir uma escola pública na Suíça. Onde se passa exactamente o contrário, têm uma noção exata do percurso de vida de uma edificação, — não só das escolas, da habitação desde logo —, e estão permanentemente a subtrair e a adicionar sem qualquer complexo.
Nas cidades de que estivemos a falar, onde há vibração e onde se sente o pulsar dos tempos, está-se permanentemente a substituir. Aqui, de facto, temos esta sensação de que não se pode demolir nada e julgo que os organismos de proteção do património estão a perder a noção do que é essencial preservar e a tentar estender de uma forma mais ou menos sem critério a tudo.
Tem de haver uma certa abertura para que as coisas possam continuar a evoluir, senão os outros avançam e nós ficamos parados — na arquitetura como no transporte de alta velocidade — sempre a limitar a ação. E os resultados estão à vista.
"Nas cidades onde há vibração e onde se sente o pulsar dos tempos, está-se permanentemente a substituir"

Quando e como surgiu a sua paixão pela arquitetura?
Ainda não tinha bem a noção do que era arquitetura, mas lembro-me de, em miúdo de liceu, brincar muito com instalações elétricas: motores, interruptores, baterias, Meccano, coisas assim.
De repente, fiz duas visitas a edifícios modernos – olhando hoje é fácil perceber porquê: eram em betão armado aparente, com aberturas interiores e exteriores diferentes das convencionais. Uma foi à Fundação Gulbenkian e outra a uma casa particular do arquiteto Artur Rosa (um dos autores da Gulbenkian). Tiveram grande influência em mim e, pela primeira vez, tomei consciência do espaço construído.
De um dia para o outro comecei a desenhar casas e nunca mais perdi esse entusiasmo. Mais tarde fui estudar para a António Arroio, e aí abriu-se este caminho para uma vocação.
Depois tive um percurso académico muito variado, comecei por estudar na Escola do Porto, sem saber bem o que era na sua perspetiva histórica e o impacto quase mítico na formação da arquitetura portuguesa e não só. Voltei para Lisboa, de onde era, e sou confrontado com dois mundos totalmente distintos, um era a escola racional do Porto, outro era uma escola amparada no pós-modernismo da época, basta dizer-se que estou a estudar em Lisboa quando o arquiteto Taveira está no seu auge.
A seguir aparece uma coisa absolutamente mágica, o Programa Erasmus, candidato-me e sou o primeiro aluno a ir estudar para a Itália, em 1988/89, ninguém sabia bem o que aquilo era. Veio a ser uma das coisas mais extraordinárias que a Europa comunitária inventou.
"De um dia para o outro comecei a desenhar casas e nunca mais perdi esse entusiasmo"
Pode dizer três obras que considere extraordinárias ou marcantes para Portugal, pelo menos uma em Lisboa?
Há coisas que são, para mim, impactantes em Lisboa. A primeira, não tenho dúvida, é a Baixa Pombalina, a primeira cidade pré-fabricada do mundo, uma coisa absolutamente extraordinária, a aplicação deste modelo cartesiano feito de urgência — veja o tempo em que conseguiram fazer a Baixa Pombalina e veja o tempo que levamos para fazer um edifício de 168 fogos.
Imagino o que terá sido implementar aquele modelo, não só do ponto de vista construtivo — o sistema anti-sísmico, as fachadas todas idênticas, vãos, janelas, portas, os esgotos.
Do século XX, destaco uma obra a que as pessoas não se lembram de chamar arquitetura, a Ponte sobre o Tejo, um elemento absolutamente extraordinário. Quando se olha para uma planta e se vê uma linha e a capacidade transformadora de uma incisão tão milimétrica e linear e a força que essa peça tem na transformação de lugares, de juntar duas margens, de fazer expandir a cidade. Isto além da sua técnica e também a sua elegância.
Há outras coisas que vejo com muito interesse, como por exemplo a regularização da linha de costa da cidade, feita nos anos 40. A frente da cidade de Lisboa, da Torre de Belém ao Terreiro do Paço, é basicamente uma linha reta, mas o que é incrível é que era um traçado orgânico, até ao dia em que alguém decide que vai lançar uma linha reta para regularizar a frente toda da cidade.
Mais um vez, para mim o que isto tem de interessante é a capacidade transformadora dos lugares. E o perdermos o medo, porque imagine o que seria hoje alguém dizer que vai normalizar a frente da cidade... Caía o Carmo e a Trindade, mas assim já está feito. E hoje anda tudo por lá a correr e a passear sem a consciência de que é o resultado de uma decisão de regularizar uma linha de seis quilómetros.
E, por oposição, quais são as aberrações arquitetónicas?
As aberrações são as coisas que ainda não fizemos. Para ser absolutamente honesto, como dizia o arquiteto Paulo Mendes da Rocha, quando se olha para a cidade como um todo, não se vê se é bonita feia, há outras valências, como a funcionalidade.
Uma aberração pode ser, por exemplo, a nossa coroa norte e a ligação entre a Amadora e Loures, que falta promover, mais uma vez por questões administrativas. Tudo isto tem de ser cada vez mais ligado para deixar de haver uma espécie de sensação hierárquica em termos urbanos e suburbanos. Temos que cuidar mais de todos os lugares da cidade, não pôr os ovos todos no mesmo sítio.
Outro aspeto é o turismo. O que é preciso ver é quem são as pessoas que estão aqui a trabalhar. O trabalho hoje é um grande assunto do qual ninguém quer falar, porque o ócio venceu, é o ócio que manda, trabalho é uma coisa dirty [suja], ninguém quer saber do trabalho. Então, tira-se o trabalho da frente, afastam-se as aparências do trabalho, que parece mal. Ter contentores a trabalhar à beira-rio é uma coisa horrível, quando era uma imagem que dava mais personalidade à nossa frente urbana. As universidades saem do centro da cidade para irem para aqueles sítios onde nem sequer há transporte público, os hospitais que estavam no centro da cidade vão desaparecendo.
Esta sensação de que expurgamos a cidade das suas vibrações do quotidiano e ela passa a ser só para o ócio, deixando a coroa norte, onde vivem e trabalham uma quantidade de pessoas, à sua sorte, quando carece de mais infraestruturas, de lugares mais pensados para as pessoas que trabalham.
Como é que isso podia ser mudado?
Há uma coisa que pouca gente conhece, o SESC (Serviço Social do Comércio), um serviço social que promove o bem-estar e a qualidade de vida no Estado de São Paulo, no Brasil, e que existe desde 1950. São centros de cultura, educação, saúde e lazer para os funcionários públicos e para os trabalhadores do comércio, normalmente colocados entre o trabalho e as residências, é uma associação imensa a trabalhar para as pessoas que, de facto, precisam. Não imagina a emoção que é ver as pessoas que já estiveram a limpar um edifício irem, a meio da tarde, a uma aula de dança ou a uma oficina de escultura.
E tudo isto é feito com uma pequena contribuição do seu salário, que pode ser 1% ou 0,5%. Aqui, e se calhar na Europa continuaria a ser notícia, não há nada disto. Conheço muito bem este programa, porque trabalhei durante anos com Paulo Mendes da Rocha, que fez um centro deste que acompanhei e visitei, e, além disso, fiz a residência da Embaixada de Portugal no Brasil. E recentemente entrámos num concurso onde houve 300 propostas e ficámos em quarto lugar (fizemos um consórcio Bak Gordon, um atelier suíço e outro de São Paulo).
É um tema que me interessa imenso e gostava que os autarcas portugueses se interessassem por isto.
Qual a interação de um arquiteto com os organismos do Estado, governos central e local? Existe uma dinâmica de troca de ideias?
Não, não existe. Pelo motivo que disse no início: quase não há obra pública, por isso os arquitetos não são chamados a participar. E o que houve no passado, interesse em que os arquitetos fizessem parte da visão estratégica, desde logo do planeamento, dos planos diretores municipais, está a desaparecer.
Cada vez mais os arquitetos estão a ficar no final a linha de produção do projeto, que é o equivalente a, mais ou menos, fazer o prédio. E os arquitetos não estudaram para fazer prédios, estudaram para pensar cidades, para participar no pensamento estratégico dos territórios e na política também, porque tudo é política. Se cuidar da obra pública na cidade para todos, é uma política, se, pelo contrário, promover apenas o ócio e o desenvolvimento de uma única indústria que é o turismo, é outra política.
"Posso viver sem quase nada, sou uma pessoa com muito pouco desejo de estar rodeada de objetos"
Se o convidassem para renovar um área da cidade, para onde ia olhar imediatamente?
Há duas áreas que para mim são muito claras em Lisboa e estão muito à vista, o vale de Alcântara, desde Campolide até cá abaixo, uma área muito extensa e com muitos problemas para resolver, bairros sem acesso, a rua Maria Pia, toda aquela zona é um grande assunto, e o vale de Chelas é outro, continua a ter necessidade e muita intervenção, é onde está o projeto da Quinta das Conchinhas. E depois entramos na famosa coroa norte, territórios que têm de ser cosidos com as cidades perimetrais, Loures, Amadora, as Moscavides da vida.
Outro dia alguém me contava que se ia fazer um concurso para a rua Ferreira Borges, em Campo de Ourique. Com certeza, todos os lugares podem ser melhorados, mas é preciso razoabilidade. Entre isso e as áreas que mencionei não tenho dúvida qual é prioritário. Há muito assunto para tratar.
Dois objetos sem os quais não pode viver e porquê?
Posso viver sem quase nada, sou uma pessoa com muito pouco desejo de estar rodeada de objetos. No contexto de trabalho, dois objetos sem os quais não posso trabalhar são uma caixa de lápis de cera, com os quais faço os meus esquissos, o meu rolo de papel vegetal, onde faço os desenhos. Os lápis Caran d'Ache e o papel vegetal são há muitos anos o ponto de partida para tudo o que acaba a ser produzido.
A Inteligência Artificial é um aliado ou um inimigo?
As duas coisas. Ainda não estamos a sentir a concorrência da Inteligência Artificial, mas isso é porque estamos num país que é uma aldeia, porque na China estão a ser construídas cidades à razão de várias por cinco milhões de habitantes e aquilo a que chamamos a parametrização da arquitetura pode ter a concorrência da IA, que consegue produzir este trabalho praticamente sem arquitetos. Admito que no futuro, se estivermos a falar de industrialização, isso será possível. Se quisermos dar, como espero, uma certa atenção ao que é único e exclusivo, é difícil dispensar os arquitetos.
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