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Harvey Weinstein, Jeffrey Epstein, Boaventura de Sousa Santos, António Capelo. À primeira vista, são homens de contextos muito diferentes: cinema e entretenimento, elite académica, teatro, redes de poder social. Mas há um conjunto de traços comuns que se repete nestes casos, ajudando a explicar por que é tão difícil quebrar o silêncio, denunciar ou sequer ser ouvido.

Todos eles detêm ou detiveram poder: formal, institucional, simbólico ou mediático. Weinstein, um magnata de Hollywood, produtor influente, capaz de decidir carreiras. Epstein, bilionário rodeado de pessoas poderosas, com redes internacionais de influência. Boaventura de Sousa Santos, professor catedrático, figura de referência nas Ciências Sociais em Portugal e internacionalmente. António Capelo, nome reconhecido nas artes do espetáculo.

Esse poder permite-lhes criar relações de dependência, obediência, gratidão ou temor. A forma como o exercem sobre as vítimas — pessoas em posição hierarquicamente inferior, com vulnerabilidades ou aspiração profissional — fá-las sentir que lhes devem algo, o reconhecimento, uma bolsa, uma profunda gratidão eterna; o que por sua vez, é explorado por eles para alcançarem mais poder e controlo.

Weinstein prometia papéis ou benefícios em troca de «favores sexuais» — leia-se abuso sexual. Epstein mantinha redes de favores, viagens, luxo, introduções a pessoas influentes. Boaventura foi acusado de exercer abuso de poder sobre investigadoras subordinadas ou em situações de avaliação académica. Capelo, segundo denúncias, aproximava-se de alunos através de convites, mensagens de teor sexualizado, fotografias onde expunha o pénis, exercícios físicos com contacto corporal excessivo e desadequado, entre outros comportamentos.

O poder como arma e controlo total

Os abusadores manipulam o ambiente social, profissional ou institucional para manter controlo. Criam condições em que denunciar parece impossível — ou de facto o é — porque colegas ou testemunhas se calam por medo de represálias, de perder oportunidades ou de serem desacreditados. Quanto às vítimas, estas veem-se inseridas num contexto onde os abusadores espalham os seus tentáculos e parecem controlar tudo e todos.

No relatório independente do CES de Coimbra, várias vítimas relataram humilhações, assédio moral, toques não consentidos e relações forçadas com discentes/investigadoras em situação de dependência. O poder hierárquico era usado para condicionar avaliações, financiamentos e projetos. O relatório fala em «padrões de conduta de abuso de poder e assédio por parte de algumas pessoas que exerciam posições superiores na hierarquia do CES», incluindo «contactos em horas impróprias (por vezes durante a madrugada) para tratar de assuntos não urgentes e, por vezes, para satisfação de necessidades e caprichos pessoais (como solicitações para aquisição de produtos para consumo próprio dos investigadores/as principais e/ou professores/as)».

Em Hollywood, inúmeros testemunhos revelaram como Weinstein controlava carreiras, ameaçava arruinar reputações e manipulava atrizes com promessas ou chantagens. Já na ACE Porto, Capelo afirmou ser alvo de acusações anónimas e difamação, mas há ex-alunos que relatam convites privados, mensagens de cariz sexual e abuso da sua posição institucional para manter proximidade ou obter favores.

Associações de apoio especializado à vítima de violência sexual:

Quebrar o Silêncio (apoio para homens e rapazes vítimas de abusos sexuais)
910 846 589
apoio@quebrarosilencio.pt

Associação de Mulheres Contra a Violência - AMCV
213 802 165
ca@amcv.org.pt

Emancipação, Igualdade e Recuperação - EIR UMAR
914 736 078
eir.centro@gmail.com

A narrativa invertida: o acusado como “vítima”

Quando confrontados, muitos destes homens recusam a veracidade dos relatos, atacam os denunciantes, dizem ser vítimas de difamação, vingança pessoal ou acusam interesses políticos e ocultos. Usam processos judiciais ou ameaças legais para intimidar e inverter os papéis. Esta estratégia é comum e funciona como uma forma para rebater denúncias, desacreditar vítimas e intimidar.

Boaventura processou investigadoras que o acusaram, alegando difamação e boatos que visavam denegrir a sua honra. Capelo anunciou intenções semelhantes contra a página de Instagram que deu voz a denúncias de ex-alunos. Weinstein, antes da publicação do artigo de Jodi Kantor e Megan Twohey no New York Times, mobilizou advogados e exerceu pressão para silenciar testemunhas. No livro Catch and Kill, Ronan Farrow documenta essas ameaças e retaliações.

E não são casos isolados. R. Kelly e Sean “Diddy” Combs, por exemplo, mantinham jovens em dependência financeira e emocional, prometendo carreiras e destruindo reputações de quem resistia. Kevin Spacey e Louis C.K. usaram a fama e o privilégio para impor silêncio e desacreditar vítimas.

E os abusadores “anónimos”?

Seria um erro pensar que este padrão é exclusivo às figuras públicas. Ele repete-se, de forma devastadora, em contextos íntimos e familiares: pais, tios, professores, treinadores, médicos, padres, ou outros adultos cuidadores e de referência. 

A semelhança está no poder e no uso que fazem dele. Nestes casos, o poder não é mediático nem institucional a grande escala, mas simbólico e emocional no círculo da vítima. O treinador é visto como mentor, o médico como protetor, o padre como guia espiritual, o professor como autoridade, o tio ou pai como cuidador. É precisamente esta confiança que é manipulada para conquistar a confiança das vítimas, forçar o seu silêncio e submetê-las a traumas.

Tal como nos casos mediáticos, estes abusadores controlam o contexto: isolam a vítima, desacreditam-na perante a família, prometem represálias se falar ou convencem-na de que ninguém acreditará nela. Usam o prestígio da sua função — a autoridade do professor, a respeitabilidade do médico, a santidade do padre — para impor medo e perpetuar a violência.

E quando há denúncia, recorrem às mesmas estratégias: fazem-se passar por injustiçados, acusam a vítima de mentir e usam a sua credibilidade social para virar a comunidade contra quem ousa quebrar o silêncio.

Porque é urgente desmontar este padrão

Reconhecer o fio comum entre Weinstein, Epstein e um professor de escola ou um padre de aldeia é reconhecer que o abuso sexual não é um ato isolado de desejo descontrolado. É um ato planeado, um assalto premeditado, de abuso de poder.

Este poder pode ter escala global ou familiar, mas funciona da mesma forma: aproxima-se pela confiança, conquista pela manipulação, perpetua-se pelo silêncio imposto e defende-se pelo descrédito da vítima.

A pergunta que devemos fazer, uma das muitas, não é apenas «quem cometeu?», mas «como é que o poder e as estruturas que o protegem continuam a permitir que estes crimes aconteçam?». Enquanto não desmontarmos os sistemas — mediáticos, académicos, religiosos, familiares — que blindam os abusadores e silenciam as vítimas, continuaremos a repetir as mesmas histórias, com os mesmos padrões, apenas com nomes diferentes.

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Ângelo Fernandes é o fundador da Quebrar o Silêncio — a primeira associação portuguesa de apoio especializado para homens e rapazes vítimas de violência sexual — e autor de “De Que Falamos Quando Falamos de Violência Sexual Contra Crianças?”, um livro sobre prevenção do abuso sexual de crianças, e do romance “Neblina”.