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Entre os principais sinais desta transformação está a crescente priorização de temas de interesse militar na atribuição de bolsas de doutoramento, um fenómeno que levanta questões éticas, políticas e estratégicas no seio da comunidade académica. "Sim, há incentivos para alinhar investigação com interesses estratégicos, incluindo militares”, revela Sofia Lisboa, presidente da ABIC, ao 24notícias. No entanto, a Fundação Calouste Gulbenkian, a NOVA FCT e a Universidade de Coimbra negaram esta acusação.

A estudante de doutoramento explica que “a seleção dos temas segue, muitas vezes, agendas políticas e económicas, não apenas científicas (políticas públicas, fundos de coesão etc.)”, o que inclui temas evidentes na ordem do dia, como a guerra.

Com o argumento de reforçar a soberania nacional e integrar Portugal nos esforços europeus de defesa, são várias as apostas nos trabalhos de estudo em tecnologias de uso dual (civil e militar), cibersegurança, drones, inteligência artificial aplicada à vigilância, e sistemas de defesa autónomos, e a academia acaba por ser um terreno fértil de produção de conhecimento nesse sentido.

A Fundação Calouste Gulbenkian avançou que “não apoia nem se associa a projectos na área mencionada”, enquanto a NOVA FCT referiu que “os projetos de investigação da universidade não têm associações” a programas militares.

Uma proposta belicista

Em 2025, a Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) assinou um protocolo com o Instituto de Defesa Nacional (IDN) para lançar o programa “Defesa + Ciência”. Esta iniciativa tem como objectivo promover a investigação científica com aplicação directa no sector da Defesa Nacional, nomeadamente em áreas como tecnologias de uso dual, cibersegurança, inteligência artificial, drones e vigilância marítima.

O programa, que prevê financiamento de cerca de 8 milhões de euros até 2030, inclui componentes destinadas à formação avançada, incluindo doutoramentos e integração de investigadores em centros ligados ao sector da defesa. Ainda que este financiamento represente uma fração do investimento total em ciência, o surgimento de linhas temáticas explícitas para a defesa é um sinal da crescente aproximação entre os mundos académico e militar.

Sofia Lisboa acredita que “a militarização do financiamento condiciona escolhas, e vai levar cada vez mais investigadores e centros de investigação a trabalhar em temas relacionados com a defesa e o militarismo para garantir fundos”.

Não foi possível obter resposta da FCT.

Europa como pano de fundo

Esta tendência não é exclusiva de Portugal. A nível europeu, o European Defence Fund (EDF), criado pela Comissão Europeia, é um programa estruturado para apoiar projectos colaborativos de investigação e desenvolvimento no domínio da defesa. Entre 2021 e 2027, o fundo tem um orçamento de cerca de 7,9 mil milhões de euros, dos quais um terço é destinado à investigação e dois terços ao desenvolvimento de capacidades tecnológicas e industriais.

O EDF financia consórcios formados por empresas, centros de investigação e universidades europeias, focando áreas como ciberdefesa, sensores avançados, comunicações seguras, sistemas autónomos, tecnologias espaciais e inteligência artificial aplicada ao sector da defesa.

Embora o programa não atribua bolsas de doutoramento individuais, algumas instituições de ensino superior participam em projectos financiados pelo EDF, o que pode ter impacto na orientação de linhas de investigação e na integração de investigadores em formação em contextos com aplicação militar. Há também incentivos explícitos à participação de pequenas e médias empresas e à inovação tecnológica com uso dual (civil e militar).

O discurso europeu que enquadra o EDF sublinha a necessidade de reforçar a autonomia estratégica da União Europeia e de desenvolver uma base industrial de defesa robusta e independente. No entanto, esta estratégia tem gerado debate em vários países, sobre o equilíbrio entre segurança, inovação e os princípios éticos que devem orientar a ciência financiada com dinheiros públicos.

O preço da inovação e o abandono das ciências sociais

A comunidade científica portuguesa começa agora a despertar para este debate, exigindo maior transparência nos critérios de financiamento, bem como uma discussão pública sobre o papel da ciência num mundo cada vez mais tensionado geopoliticamente.

Este é um problema que afeta não só projetos de áreas ”chamas ciências ‘duras’”, mas principalmente investigadores de ciências sociais e humanas, segundo Sofia Lisboa. A estudante lembra que “além do valor insuficiente das bolsas, os critérios priorizam agendas  que se aplicam a áreas de inovação, em detrimento de outros temas”.

A desigualdade na atribuição dos apoios “é notória com a meta de 50% das bolsas passarem a ser atribuídas em ambiente não académico” defende. Ou seja, as bolsas são concedidas para investigadores que desenvolvam parte do seu doutoramento fora das universidades ou centros de investigação, em entidades externas, como em empresas ou na administração pública.

A medida foi anunciada em 2022 , a ministra da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, vigente, Elvira Fortunato, com o objetivo de reforçar a ligação entre a ciência e a sociedade e aumentar a empregabilidade dos doutorados.

Contudo, a desvalorização da ciência fundamental e teórica, sobretudo em áreas como filosofia, história, literatura, e a falta de independência científica, ao associar o conhecimento a interesses empresários de curto prazo, fragilizam a medida.

Precariedade e mais precariedade

“Os maiores desafios continuam a ser os mesmos, infelizmente”, lamenta Sofia Lisboa. “A precariedade associada ao facto de sermos trabalhadores sem direitos laborais e sem o reconhecimento de um vínculo laboral, o valor das bolsas esteve congelado 17 anos, o corte nos vários subsídios de apoio à investigação”, são apenas alguns exemplos.

De acordo com a estudante, os investigadores não têm subsídio de férias, natal nem alimentação, ou sequer direito a subsídio de desemprego, por não existir um contrato laboral. “Não fazemos descontos para a segurança social equivalentes aos nossos rendimentos, logo teremos a nossa reforma penalizada pelo facto de fazermos investigação”, acrescenta.

Para as mulheres, a precariedade agrava, uma vez que não existem licenças de gravidez ou qualquer tipo de proteção dos direitos de parentalidade. Os investigadores, apesar de produzirem conhecimento, criarem informação, e ser-lhes exigido um horário a tempo inteiro, não são à luz da lei, um trabalhador.

“Os novos desafios são aqueles que se apresentam aos trabalhadores em geral”, explica a doutoranda. “Com o novo pacote laboral que neste momento está em discussão, pretende-se que a precariedade seja a regra e não que o caminho seja para acabar com os sectores onde ela ainda existe”.

Tudo isto contribui para que a profissão de investigador se torne simultaneamente menos apelativa e mais indispensável. No campo científico, a crescente orientação do financiamento para fins aplicados revela-se, segundo Sofia Lisboa, “prejudicial ao desenvolvimento” da sociedade e também “à vida dos profissionais”, comprometendo a investigação fundamental e a liberdade científica.

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