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Há esta frase no livro de Bruno Maçães que nos coloca inevitavelmente a pensar no tipo de sorte que cada um de nós teve no momento da história em que vivemos. “O lar é aquilo que não tem de ser merecido”.
Não tem, de facto, e num momento em que a discussão sobre fronteiras e nacionalidades ganhou espaço na agenda global, o livro “Construtores de Mundos - A Tecnologia e a Nova Geopolítica”, faz-nos pensar nessa espécie de lotaria que é o local onde nascemos ou a família de que fazemos parte. “Um mundo sem um lar, um mundo sem fronteiras, não estaria muito mais perto de um mundo onde tudo tem de ser merecido, um mundo organizado segundo princípios fundamentais de justiça política. As políticas nacionais tendem a excluir muitos dos que são afetados pelas suas políticas simplesmente por serem estrangeiros, um facto que nada fizeram para merecer. Não será essa a principal razão pela qual a globalização parece ser uma força irresistível?”, questiona.
Mas, vamos começar pelo princípio, já que “Construtores de Mundos” é um exercício de pensar a geopolítica – ou de propor uma nova geopolítica – em que os mundos criados pela tecnologia, ou artificiais se assim os quisermos definir têm primazia sobre aquele outro mundo a que nos habituámos a chamar de “real”.
Qual foi o ponto de partida?
“É um livro que resulta de muitos anos de viagens, de conversas, de jornalismo, de reflexão, no qual tento retirar alguma aprendizagem. Comecei a pensar nele já em 2018, por isso foi um processo longo. É um livro que tenta explicar os desenvolvimentos da geopolítica contemporânea. São surpreendentes. Acho que em 2015 ninguém imaginaria que estaríamos aqui”, responde na entrevista ao 24notícias.
No livro, Bruno Maçães reúne -e relaciona – autores e episódios com o objetivo de nos provar uma tese: a de que a geopolítica e a tecnologia são a mesma coisa, e que esta virtualização progressiva das nossas sociedades e das nossas vidas é, de facto, um processo geopolítico. “Porque é através da criação destes mundos virtuais, destes mundos artificiais, que o poder é exercido”, defende.
Uma das analogias que usa no livro é a equivalência da geopolítica atual a um jogo de vídeo em que quem tem o poder define as regras e quem não tem é obrigado a jogar de acordo com essas premissas.
O nosso adversário está a jogar um jogo de vídeo. Nós estamos a programá-lo. Irei reservar o termo superpotência para aqueles Estados envolvidos numa batalha para moldar o sistema global
Os Estados podem agora combater-se sem vencerem na batalha direta, mas estabelecendo as regras sobre as quais os outros Estados deverão operar. Podemos chamar-lhe uma forma de governo indireto. (...) O nosso adversário está a jogar um jogo de vídeo. Nós estamos a programá-lo. Irei reservar o termo superpotência para aqueles Estados envolvidos numa batalha para moldar o sistema global. A grande vantagem de se ser um administrador de sistema global é poder punir os infratores e perseguir os objetivos, manipulando o próprio sistema sem ser por meios mais diretos”, lemos numa das passagens.
Quem programa o mundo em que vivemos? Bem-vindos à Matrix da nova geopolítica
“Esta capacidade de transportar a batalha para um nível virtual é o que define as superpotências”, explica o autor. “As potências normais continuam a travar guerras ao nível físico, ao nível do mundo natural, mas este mundo natural é manipulado, criado, projectado em grande parte pelas grandes superpotências que são os Estados Unidos e a China”.
No livro, logo no início, há dois fenómenos que são assinalados como catalisadores ou aceleradores destes “novos mundos”: as guerras tecnológicas entre os Estados Unidos e a China e a pandemia de Covid-19 em 2020. O paralelismo com os universos da ficção é uma das fórmulas que Bruno Maçães usa para nos descrever esta nova teoria para entendermos as forças que controlam o mundo. E a China é inequivocamente uma dessas forças.
“Como argumentei em livros anteriores, este é um país que não dá sinais de convergir com a sociedade ocidental nos valores políticos e económicos, mas cuja capacidade de competir com o ocidente parece incontestável. Se a China conseguir demonstrar que a sociedade ocidental não é o único modelo capaz de desenvolver e controlar tecnologias essenciais do futuro, a competição política global, ocorrerá entre diferentes modelos (...) Se hoje Tolkien [autor da obra “O Senhor dos Anéis”] escrevesse, optaria provavelmente pela expressão realidade virtual em vez de encantamento”.
Os executivos e funcionários chineses têm um ditado que ouvi muitas vezes durante a época que vivi em Beijing. As empresas de terceiro nível fazem produtos, as de segundo fazem tecnologia e as de topo estabelecem padrões
Bruno recorda alguns marcos, como, por exemplo, o facto de a China ter sido, em 2023, o primeiro país a aprovar uma estrutura reguladora para produtos que geram texto, imagens, vídeo, código e outros media ou quando, no início de 2024, o Ministério da Indústria e da Tecnologia da Informação de Pequim reuniu 60 especialistas para formar um novo grupo de trabalho com o objetivo de estabelecer padrões para o setor do metaverso. Este grupo incluía “representantes da Huawei, o gigante dos jogos de vídeo Tencent, do campeão da procura na web e inteligência artificial Baidu e da empresa de tecnologia, financeira Ant Group e da fabricante de computadores Lenovo”. Acrescenta ainda o autor: “de modo mais global, os funcionários chineses dirigem pelo menos quatro organizações de padrões, incluindo a União das Telecomunicações Internacionais, um órgão das Nações Unidas que governa a conectividade telefónica e da internet, e a Comissão Eletrotécnica Internacional, um grupo industrial que governa as tecnologias elétricas e eletrónicas”.
“Os executivos e funcionários chineses têm um ditado que ouvi muitas vezes durante a época que vivi em Beijing. As empresas de terceiro nível fazem produtos, as de segundo fazem tecnologia e as de topo estabelecem padrões”, remata.
As lições da pandemia. Afinal era possível reprogramar a sociedade
A ascensão da China explica as guerras comerciais e tecnológicas com a América de Trump que ,somadas á pandemia, à guerra na Ucrânia e à crise climática escrevem o que Bruno Maçães considera “capítulos de um processo revolucionário”.
E se não tivesse havido a pandemia, o livro que escreveu teria o mesmo cenário ou teria sido muito mais lento?
“O livro é uma espécie de diário de há oito anos, em que tudo o que podia acontecer, aconteceu. Vejo uma linha comum entre os acontecimentos geopolíticos mais evidentes, como a Ucrânia ou a guerra tecnológica entre os Estados Unidos e a China, e a pandemia, porque o importante na pandemia não é o vírus. Os vírus sempre existiram, e as pandemias sempre existiram. O que considero historicamente muito importante na pandemia foi a reação. A reação de redesenhar profundamente as nossas sociedades, com recurso à tecnologia, seja ela digital ou biotecnológica. Mas, acima de tudo, a pandemia mostrou que as sociedades podem ser redesenhadas”, responde na entrevista ao 24notícias.
Uma das propostas de “Construtores de Mundos” é precisamente um novo olhar sobre o que a pandemia provou sobre a capacidade das sociedades seguirem regras diferentes das convencionadas. “A pandemia de Covid deve ser vista como um novo início, mesmo que a revolução que a provocou tenha sido mais simbólica do que material. (...) Tudo o que tomávamos como garantido desapareceu”, escreve num dos capítulos.
É especialmente interessante olharmos para o que aconteceu com a economia. Bruno Maçães recorda no seu livro a resposta da América à pandemia citando a realizadora Astor Taylor, em março de 2020. “Tantas das políticas que os nossos representantes eleitos há muito nos dizem que são impossíveis e impraticáveis, afinal eram perfeitamente possíveis e praticáveis. Esta é uma oportunidade sem precedentes, não apenas para carregar no botão de pausa e temporariamente aliviar a dor, mas para mudar permanentemente as regras. O vírus ensinou-nos que a vida social pode ser reprogramada”.
O livro relata também o testemunho de um funcionário de saúde do Reino Unido que explicou, poucos meses depois do início da pandemia, que a princípio não foram implementadas medidas restritivas porque ninguém sabia que era possível e muito menos fácil impor um confinamento numa sociedade moderna. O confinamento tornou-se inevitável a partir do momento que a China o assumiu, antes disso a visão era a oposta.
Os governos mostraram que as recessões, mesmo durante uma catastrófica pandemia, são escolhas políticas. Um tal destino não está pré-determinado
E o facto é que a vida social foi reprogramada, a economia for reprogramada, o capitalismo foi reprogramado. A resposta económica à pandemia mostrou a viabilidade de soluções que tipicamente não são equacionadas. Escreve o Bruno Maçães: “ao criarem vários estímulos económicos e programas sociais, como pagamentos diretos a cidadãos e empresas, os governos mostraram que as recessões, mesmo durante uma catastrófica pandemia, são escolhas políticas. Um tal destino não está pré-determinado”.
Se a reprogramação foi possível, pode voltar a ser para outro tipo de finalidades, como por exemplo encontrar respostas à crise climática.
“Hoje em dia, é muito difícil pensar que a forma como vivemos em sociedade é mais ou menos determinada pela natureza das coisas, o que era um argumento muito comum. Não há alternativa, as coisas têm de ser assim, ou são assim, ou entrarão em colapso. Todos estes argumentos deixaram de funcionar porque, durante a pandemia, vimos que é possível introduzir mudanças radicais”, defende Bruno Maçães.
Os superpoderes definem as regras. Os outros podem decidir qual o jogo que querem jogar
A ciência política tem explorado explicar as relações entre Estados com conceitos como hard power e soft power, mas, nos últimos anos e sobretudo nos que se seguem, há um conceito que ganha cada vez mais força que é o associado à capacidade tecnológica e a consequente capacidade de criar mundos virtuais. “Normalmente falamos de superpoderes, mas não sabemos realmente o que isso significa, ou o que distingue um superpoder. Um superpoder é o que molda o mundo, o que programa o mundo. E um poder normal, digamos, é um poder que precisa de agir dentro do mundo programado por outros, por superpoderes”.
A capacidade de criar mundo é o poder criativo, sintetiza Bruno Maçães. “As grandes superpotências são quase como divindades que criam um mundo no qual os seres humanos normais têm de viver”.
Trump tem a vantagem de revelar frequentemente o que está escondido. E ele tem essa virtude. E quando assumiu o cargo, vimos os CEO de seis grandes empresas tecnológicas atrás dele
De quem é esse poder efectivo, dos Estados que têm a capacidade de criar esses mundos ou das empresas que são globais e que podem ou não estar ao serviço dos Estados?
“Recebi muito esta pergunta, o que me surpreende um pouco, porque é muito claro, na minha convicção, que os Estados são claramente dominantes. O poder criativo é relativamente invisível, porque o mundo criado parece ser um mundo natural, imperceptível. O meu livro é um esforço para revelar o poder invisível, o que está por detrás da realidade. O que é visível são as empresas que são mais visíveis. Mas o que está por detrás das empresas são claramente os grandes Estados e as empresas não são mais do que os seus braços tecnológicos”.
A tomada de posse de Donald Trump, defende, foi, por isso, “um momento muito curioso”. “Trump tem a vantagem de revelar frequentemente o que está escondido. E ele tem essa virtude. E quando assumiu o cargo, vimos os CEO de seis grandes empresas tecnológicas atrás dele”.
Com este novo mapa dos mundos, onde está o contrapoder? “ O contrapoder é, obviamente, muito importante. Se estamos preocupados com a liberdade, temos de nos preocupar com a existência de contrapoderes. No meu livro, existem dois tipos de contrapoderes. Há o dos criadores do mundo, que está em competição permanente, e é por isso que não existe apenas um criador de mundos. Não existe sequer um único mundo. E existem também aqueles agentes que vivem dentro de mundos criados por outros e que também têm poder porque podem decidir não participar. Por exemplo, agora, entre os Estados Unidos e a China, existe uma enorme rivalidade sobre quem criará o mundo do futuro, mas os outros países têm um papel importante a desempenhar. Não definem o jogo, mas podem decidir qual o jogo que querem jogar. Podem preferir jogar o jogo chinês ou o jogo americano, porque os programadores do jogo são os Estados Unidos e a China”.
Pode muito bem acontecer é que a Rússia desempenhe o papel de ajudar a proibir a ordem americana e preparar o caminho para uma ordem chinesa
Neste mesmo xadrez, ou como diz Bruno Maçães, “na narrativa ou peça dramática que construí no meu livro, a Rússia desempenha o papel de um destruidor. No sentido quase técnico, procura a liberdade do mundo americano sem oferecer um mundo alternativo. O que a Rússia quer é um mundo em que esta ordem americana desapareça e seja substituída por uma espécie de ordem natural, sobre a qual sou muito céptico, porque não existe uma ordem natural. Do ponto de vista russo, é uma espécie de regresso ao passado, ao século XIX, o que não creio que seja possível, mas o que pode muito bem acontecer é que a Rússia desempenhe o papel de ajudar a proibir a ordem americana e preparar o caminho para uma ordem chinesa”.
Em analogia, recorda o que aconteceu nas duas primeiras décadas do século XX, quando a Alemanha Imperial quis construir uma ordem e substituir o Reino Unido como grande potência mundial. “Falhou nesse objetivo, mas acabou por contribuir muito para que o Reino Unido fosse substituído pelos Estados Unidos, porque acabou por esgotar as forças britânicas. Como não tinha capacidade criativa, essa capacidade foi assumida pelos Estados Unidos. Aqui pode acontecer algo semelhante, por vezes a história repete-se. A Rússia não tem claramente capacidade criativa, nem tecnológica, nem política, nem cultural, na minha opinião, mas está certamente a contribuir para enfraquecer a ordem americana”.
A Europa pode tornar-se uma colónia tecnológica americana
E a Europa, que teve um início de século XXI difícil, claramente sem capacidade de influenciar este mundo ou estes novos mundos, é programador ou simples jogador?
“As coisas não estão a correr bem. Estamos a tornar-nos muito dependentes. Se acontecer com a inteligência artificial o mesmo que aconteceu com as grandes plataformas da internet, seremos, para todos os efeitos, uma colónia americana. Se a inteligência artificial das grandes empresas americanas for aplicada às nossas sociedades no seu conjunto, se for aplicada à publicidade, à consultoria, aos serviços médicos, ao tráfego aéreo, ao tráfego urbano, à organização urbana, à organização governamental, a inteligência artificial penetrará em todas estas áreas. Se for a inteligência artificial das quatro ou cinco grandes empresas americanas, aceitaremos o nosso estatuto de colónia tecnológica americana”.
Numa entrevista que foi realizada ainda antes do anúncio de acordo sobre tarifas entre EUA e EU, Bruno Maçães mostrava-se esperançado que a Europa pudesse ter uma palavra de afirmação. “Trump pedirá qualquer coisa e precisamos de saber dizer não.Se isso não acontecer, temo pelo nosso futuro. Imagino um futuro em que a Europa se torne uma espécie de Índia sob o Império Britânico. Pode haver Estados semiautónomos, mas o poder real não existe”.
Sobre Bruno Maçães
Bruno Maçães é consultor sénior na Flint Global, onde aconselha algumas das mais importantes empresas do mundo sobre geopolítica e tecnologia. É também colunista na New Statement, é membro do European Council on Foreign Relations e foi secretário de Estado para os Assuntos Europeus em Portugal durante a crise da zona euro. Entre os seus livros incluem-se Corredor e Rota, uma ordem mundial chinesa de 2018, O Despertar da Eurásia, Em Busca de uma Nova Ordem Mundial, de 2019.
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