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Os testemunhos que vieram a público sobre António Capelo, ator e professor, são perturbadores, mas, infelizmente, não surpreendentes. Perturbadores porque descrevem assédio e violência sexual contra alunos — alguns ainda menores de idade — ao longo de décadas. Não surpreendentes porque seguem um guião que conhecemos demasiado bem: o dos abusadores que, de geração em geração, repetem os mesmos métodos e beneficiam das mesmas cumplicidades.
O que une Capelo e tantos outros não é a biografia individual, mas a posição assimétrica de poder. É professor, diretor artístico, figura pública com prestígio, e explora jovens em formação, desejosos de reconhecimento, e à procura de aprovação num meio competitivo. A relação hierárquica é evidente: Capelo detém responsabilidades que não cumpre e recorre a poderes e privilégios de que faz uso. É neste desequilíbrio que navega habilmente para assaltar as vítimas: não pela força física bruta, mas pela autoridade simbólica e formal, e pelo capital social de quem domina o contexto onde se insere.
Como agem os abusadores?
Segundo os testemunhos, a dinâmica descrita reproduz aquilo que a literatura especializada identifica sobre a forma como os abusadores manipulam as vítimas e os adultos cuidadores: manipulação e sedução. Primeiro surgem os contactos aparentemente inocentes, uma proximidade que vai testando os limites das vítimas. Depois, mensagens sexualizadas, perguntas sobre orientação sexual, convites ambíguos. Segue-se a dessensibilização ao toque em contexto de exercício teatral, até ao cruzamento deliberado da fronteira entre a pedagogia e a intimidade — leia-se, abuso. É um processo de escalada nos gestos e conversas, e de total controlo da relação que impõe às vitimas, que mina a resistência e explora a vulnerabilidade delas. Tal como o guia de prevenção publicado pela Quebrar o Silêncio descreve, estas estratégias fazem parte de um padrão: criar oportunidades de contacto, isolar a vítima e normalizar comportamentos de abuso sexual.
Quando confrontados, muitos abusadores seguem também outro guião: o da contra-ofensiva. Negam intenções, justificam a proximidade como expressão de afeto ou de liberdade artística e acusam quem denuncia de difamação. No caso de Capelo, já avançou com uma queixa-crime contra a página Não Tenhas Medo, espaço anónimo que se propôs dar voz a vítimas silenciadas. Não é apenas defesa: é uma tentativa de inverter a posição de poder, de intimidar quem ousa expor. E, claro, de quem pode. O capital social e financeiro que muitos abusadores detêm é vastamente superior ao das vítimas, que, por sua vez, veem o seu discurso e ações esquadrinhadas, são alvo de troça, escárnio e acusações, e de uma completa descredibilização. Sobre este ponto, recomendo a audição de um episódio do podcast Um género de Conversa, de Paula Cosme Pinto e Patrícia Reis, com a convidada Maria João Faustino.
Onde começa e termina a violência?
A violência não se esgota no momento do abuso. Os efeitos prolongam-se no tempo. Na Quebrar o Silêncio, acompanhamos homens que viveram situações semelhantes. Muitos carregam anos de silêncio, de vergonha e de autoquestionamento. Alguns descrevem como, no início, não reconheceram o que lhes acontecia como abuso; parecia “parte do jogo”, uma “prova” de maturidade ou de pertença.
Mesmo sem consciência plena, as consequências manifestam-se desde o momento do abuso e estendem-se pela idade adulta: ansiedade, depressão, hipervigilância, dificuldades em estabelecer relações de confiança, impacto na vida sexual e afetiva, entre tantas outras. Importa sublinhar que a violência sexual é uma violação grave dos direitos humanos das vítimas e pode ter um impacto devastador nas suas vidas. É fundamental reconhecer a dimensão traumática para começarmos a compreender e aceitar por que razão as vítimas podem não reagir, ou até reagir de forma que aparenta envolvimento no abuso (resultado da manipulação do agressor), por que razão permanecem anos ou décadas em silêncio e por que hesitam em denunciar.
Não haja ilusões: António Capelo não está sozinho. Há muitos outros, em escolas, clubes, igrejas, empresas, associações culturais e desportivas. Todos dependem da mesma equação: poder de um lado, vulnerabilidade do outro; silêncio cúmplice em redor; descrédito das vítimas quando falam. É esta estrutura que permite que o abuso se perpetue.
Por isso, a discussão não pode ficar apenas centrada na figura de um homem, por mais conhecido que seja. É necessário falar do contexto que torna possível a repetição deste guião: instituições que fecham os olhos, comunidades artísticas que romantizam o “genial” à custa da vida dos jovens, uma sociedade que insiste em duvidar da palavra de quem denuncia.
O teatro é um espaço de criação, mas não pode ser palco de impunidade. Que a coragem destes testemunhos não se esgote na indignação momentânea. Que se transforme em mudança estrutural: canais seguros de denúncia, políticas públicas bem definidas e centradas na segurança das vítimas, formação obrigatória para todos os profissionais que lidem com crianças e vítimas em violência sexual, e um compromisso coletivo de acreditar nas vítimas.
Se não aprendermos com este caso, e como sabemos, haverá tantos outros. A cada silêncio, a cada descrédito, somos todos e todas coniventes com os abusadores, principalmente o Estado Português.
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Ângelo Fernandes é o fundador da Quebrar o Silêncio — a primeira associação portuguesa de apoio especializado para homens e rapazes vítimas e sobreviventes de violência sexual — e autor de “De Que Falamos Quando Falamos de Violência Sexual Contra Crianças?”, um livro sobre prevenção do abuso sexual de crianças e do romance “Neblina”
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