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Vários ex-alunos da Academia Contemporânea do Espetáculo (ACE), no Porto, acusam o ator e professor António Capelo de assédio sexual e comportamentos abusivos durante o período em que lecionava na escola. O docente, entretanto reformado, considera as denúncias “graves e totalmente distorcidas” e garante já ter avançado com uma queixa-crime por difamação.

A escola, por seu lado, garante que não recebeu qualquer queixa, incluindo o Canal de Denúncia que foi instituído no ano letivo 2024/25 e que é gerido por uma comissão independente da direção.

O 24notícias falou com um dos alunos de António Capelo que corrobora as denúncias que têm sido feitas com a sua própria experiência enquanto aluno e, mais tarde, como ator. Ricardo Carvalho (nome fictício) tinha 16 anos "quando tudo aconteceu". É assim que se refere àquilo que hoje diz com segurança ter sido assédio. Era estudante na Academia Contemporânea do Espetáculo e António Capelo era também o diretor de curso.

Foi a partir do momento em que começou a tê-lo como docente que as coisas se agravaram. No primeiro ano, após algumas semanas de aulas, a rotina foi interrompida pelos projetos especiais, altura em que se suspendiam disciplinas como História da Arte ou História do Teatro para preparar um espetáculo. Esses projetos reuniam alunos de interpretação, figurinos, luz e som, sendo sempre dirigidos por um encenador. No final desse ano, foi António Capelo quem assumiu o projeto do grupo.

Associações de apoio especializado à vítima de violência sexual:

Quebrar o Silêncio (apoio para homens e rapazes vítimas de abusos sexuais)
910 846 589
apoio@quebrarosilencio.pt

Associação de Mulheres Contra a Violência - AMCV
213 802 165
ca@amcv.org.pt

Emancipação, Igualdade e Recuperação - EIR UMAR
914 736 078
eir.centro@gmail.com

Durante esse período, o diretor pediu aos alunos de produção o contacto de Ricardo, justificando com o facto de o aluno estar atrasado. Pouco depois, Ricardo recebeu uma chamada de um número desconhecido, mas não atendeu. Ao entrar na sala, o professor disse-lhe que tinha sido ele a ligar, pediu-lhe para guardar o número, mas avisou para não contar a ninguém, "como se fosse um segredo especial". Nessa mesma noite, recebeu uma mensagem: "Queres vir tomar um copo?". Ao perceber que era do professor, respondeu que devia haver engano e identificou-se como "o Ricardo, o teu aluno". Mas a resposta foi clara: não havia engano, era mesmo para si.

No início, Ricardo não associou o comportamento a assédio. Havia rumores entre os alunos, sobretudo entre os mais velhos, de que "todos os anos o Capelo escolhia dois ou três rapazes que lhe chamavam a atenção", aqueles que fossem escolhidos eram "os bonitinhos". Os comentários corriam entre colegas, mas os professores nunca intervieram. Na altura, partilha Ricardo, estava também a descobrir a sua sexualidade, num processo solitário e ainda marcado pela ideia social de que ser homossexual era errado. Por isso, o facto de um adulto mais velho validar o seu desejo confundia-o: mensagens insinuosas, convites, toques durante as aulas — tudo parecia ambíguo num contexto em que os professores, dada a natureza do próprio curso, tinham proximidade física com os alunos.

Só anos mais tarde, em 2019, já em terapia, é que Ricardo conseguiu nomear a experiência como assédio sexual. Na altura, limitava-se a sentir desconforto, mas não conseguia pôr em palavras nem reconhecer a gravidade do que acontecia. Lembra que uma das mensagens recebidas dizia simplesmente "Que calor…", enviada de forma abrupta e invasiva.

Admite que, nessa ocasião, não sabe como teve a presença de espírito, mas conseguiu responder: "Capelo, enquanto eu for teu aluno, quero que a nossa relação seja unicamente profissional". O professor respondeu que queria falar com ele sobre a sua postura na escola, ao que Ricardo contrapôs que, nesse caso, poderiam marcar uma reunião formal em setembro, no gabinete. "Essa reunião nunca aconteceu".

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Apesar disso, os convites e mensagens continuaram. Era frequente receber SMS durante a noite, às vezes frases soltas como "vida de cão". Os colegas comentavam e alguns também eram alvo de mensagens semelhantes. Muitas vezes, em jantares de grupo, vários rapazes recebiam convites ao mesmo tempo. A prática era, de tal forma, conhecida, que parecia naturalizada, embora todos sentissem desconforto que não sabiam explicar.

Mais tarde, já fora da escola, Ricardo ainda trabalhou num projeto no Teatro do Bolhão com António Capelo. Recorda uma situação desagradável em que, durante o aquecimento, o professor se colocou de pernas abertas sobre ele. Apesar de reagir e pedir para que saísse de cima, a situação foi desvalorizada com uma risada.

A certa altura, Ricardo já tinha consciência de que algo estava errado, mas ainda não tinha a clareza de nomear como assédio laboral e sexual.

Embora não possa dizer com certeza, afirma que não lhe restam muitas dúvidas de que os outros professores sabiam do que se passava até porque, refere, os comportamentos eram ostensivos e nada discretos. Nunca lhe passou pela cabeça fazer uma queixa na escola ou pedir ajuda à direção, uma vez que o "outro membro da direção era o marido ou namorado do Capelo". O silêncio e a normalização imperavam.

Ricardo diz que nunca foi prejudicado diretamente na carreira, mas admite que as experiências tiveram um impacto profundo na sua vida. Fez estágio numa companhia de teatro conhecida, trabalhou em séries e projetos, mas continua em terapia há mais de dez anos. Conta que ainda hoje sente dificuldade em lidar com figuras masculinas em posição de poder, receia estar sempre a ser sexualizado e, durante muito tempo, associou a validação do seu trabalho artístico à sua aparência física.

Com a recente exposição pública do caso, Ricardo sente-se dividido entre a dor de reviver as memórias e a esperança de que se faça justiça. Reconhece que os testemunhos de outros colegas revelam situações ainda mais graves, incluindo o envio de imagens íntimas não solicitadas. Considera, no entanto, que todos os relatos são sérios e que a escola não pode continuar a proteger comportamentos abusivos. "Adorava que mais nenhum aluno passasse por aquilo que eu passei", afirma, sublinhando que só agora, com uma geração mais consciente, preparada pelo movimento Me Too, se começam a apresentar queixas formais. Ainda assim, lamenta a reação da escola, que em vez de assumir responsabilidade, tem optado por comunicados que lhe parecem tentativas de encobrimento. Para Ricardo, a ferida mantém-se: "Até hoje tenho problemas com a minha intimidade por causa disto".

António Capelo: "Está a tornar-se um monstro na minha cabeça, não faz sentido nenhum"

Contactado pelo 24notícias, o ator António Capelo, de 69 anos, respondeu que tem conhecimento das denúncias online. "Vi através de uma página no Instagram gerida por pessoas anónimas, que não sei quem são, com depoimentos anónimos, que de facto me acusam de uma forma muito violenta".

"Falei ao meu advogado, até porque isto já se arrasta há um ano — houve uma outra página que andou também com este tipo de coisas —, e movemos uma queixa-crime contra esta página no Ministério Público", adianta. "Isto é um julgamento em praça pública absolutamente abominável".

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Segundo o ator e professor, a página "Não tenhas medo" associou-se a uma outra, "+ um casting", para poder ter mais visibilidade e ultrapassar os entraves do anonimato.

"Há uma coisa horrível, horrível, horrível: frases descontextualizadas que têm outro sentido. Se um aluno não tem condições para entrar na escola e eu lhe digo que tem de se esforçar mais, tirado do contexto e dito assim, pode levar as pessoas a pensar que estou a dizer ao aluno que tem de ter alguma coisa comigo do ponto de vista sexual", exemplifica.

"Isto é completamente absurdo, ilógico e desproporcional em relação ao que está a acontecer. Aliás, há provas públicas. O ator Sérgio Praia já disse numa entrevista que muitas vezes entrou na minha casa e que lhe matei a fome enquanto foi meu aluno na escola, porque não tinha o que comer. Muitos alunos foram à minha casa comer, buscar livros, esse tipo de coisas. Não foram fazer outras coisas", argumenta.

António Capelo considera que está a "ser absolutamente pressionado com isto tudo". "Está a tornar-se um monstro na minha cabeça, não faz sentido nenhum. Acho isto um ato de injustiça profundo, estou absolutamente abismado. Não podem vir pessoas para o Instagram ou para o Facebook, pôr a minha cara, dizer que eu sou um predador sexual e que sou isto e aquilo, a partir de denúncias anónimas mal interpretadas, ainda por cima. Não pode ser".

Sobre o contacto mais físico com alunos nas escolas, o ator recorda que "hoje em dia, nas aulas de interpretação, os professores não podem tocar nos alunos. Uma coisa absurda, ridícula, não faz sentido nenhum. Não se pode dizer ao aluno: 'olha, o teu diafragma está aqui abaixo do teu estômago'. Não se pode tocar, não se pode fazer nada. E andamos todos a pactuar com isso e não há uma discussão séria".

Quanto a mais justificações, António Capelo remete para um comunicado que partilhou com o 24notícias e em que explica o seu afastamento da ACE - Escola de Artes.

"A Academia Contemporânea do Espetáculo foi, ao longo de três décadas, um projeto construído com dedicação, exigência e espírito de comunidade. Nasceu num ambiente familiar e cresceu assente na partilha, no trabalho em conjunto e no rigor artístico e pedagógico. Após 30 anos de atividade ininterrupta, tomei a decisão de me afastar das aulas e de todas as funções de direção — artísticas, administrativas e pedagógicas. Fi-lo por compreender que o projeto é maior do que qualquer pessoa e deve ser protegido de circunstâncias que lhe possam retirar credibilidade", pode ler-se.

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"Nos últimos tempos, tenho sido alvo de acusações anónimas e difamatórias que põem em causa a minha honra, a minha vida profissional e até a minha vida privada. Não me revejo em práticas de denúncia anónima nem em linchamentos públicos, que em nada contribuem para a justiça ou para a verdade", diz o ator e professor.

"As acusações que me dirigem são graves e totalmente distorcidas da realidade. A minha conduta sempre se pautou pela exigência profissional, pelo respeito e pelo cuidado com os alunos. Gestos de proximidade, de afeto ou de apoio — como abraços, empréstimos de livros, partilha de refeições ou acolhimento em momentos de necessidade — nunca tiveram outro propósito senão o de educar, apoiar e formar seres humanos e profissionais", evidencia.

Por isso, afirma que não vai "aceitar nem compactuar com campanhas difamatórias que procuram destruir" não apenas o seu nome, "mas também o trabalho e a credibilidade de uma instituição com provas dadas na formação artística em Portugal".

"Reafirmo a minha confiança na verdade e na justiça tendo já apresentado uma queixa-crime por difamação contra quem se arroga dono da verdade", reforça. "Continuarei, com serenidade e firmeza, a defender a minha honra, reputação e imagem e os valores que sempre guiaram a minha vida, bem como a dignidade da instituição".

Escola confirma que não houve "qualquer queixa"

O 24notícias contactou também a ACE - Escola de Artes, que começou por confirmar que "António Capelo já não leciona na ACE há três anos. Está reformado, não exercendo qualquer cargo nesta instituição".

Além disso, nunca foi recebida nenhuma denúncia durante esse tempo. "Em nenhum dos instrumentos de auto-avaliação ou órgãos de controlo pedagógico da escola foi registada qualquer queixa contra este antigo professor. Nem junto da 'rede' de profissionais que enquadram o quotidiano escolar e que estão em contacto directo com os alunos, como diretor de turma, diretor de curso ou direção pedagógica, nem nos inquéritos anónimos de avaliação individual dos professores por parte dos alunos, que a escola promove anualmente, desde 2011. De igual modo, também não se verificaram queixas desta natureza nos inquéritos, anónimos, produzidos pela Comissão de Avaliação Interna, em 2023/24, ou nos inquéritos às/aos alunas/os criados pela Associação de Estudantes, em 2021".

Quando ao acompanhamento de possíveis casos, a instituição esclarece que "no Regulamento Interno (RI) da ACE estão definidos os seus princípios éticos e de conduta, igualdade, não discriminação e combate ao assédio e ao bullying, em contexto escolar. Estão estabelecidos os princípios, os procedimentos, a comissão de ética e os princípios de confidencialidade".

Assim, "no início de cada ano letivo, são amplamente divulgadas junto da comunidade escolar as normas do RI ligadas a esta dimensão, nomeadamente na receção às/aos alunas/os do 1.º ano, no Manual de Acolhimento que lhes é enviado. Junto das/os professoras/es, em reuniões, o Serviço de Psicologia alerta sempre para a importância do respeito e da conduta do professor junto das/os alunas/os".

"Em conformidade com as orientações das nossas associações socioprofissionais, a escola criou, no ano letivo 24/25, um canal de denúncia, com um endereço de correio eletrónico que está disponível para toda a comunidade educativa. O Canal de Denúncia é gerido pela Comissão de Ética, que é independente da Direção da Escola, e é composta pela responsável do Serviço de Psicologia, uma representante da Direção Pedagógica e um elemento variável que será chamado à comissão de acordo com a natureza da queixa. Este canal nunca acolheu qualquer queixa ou denúncia, desde a sua formação", é ainda especificado.

Todavia, em julho, um outro caso que envolve um professor da instituição veio a público, mas no polo em Famalicão. Segundo a ACE, o visado, João Albergaria, "cessou o seu vínculo com a escola em abril de 2025", por decisão da direção.

António Capelo foi mandatário do BE. Partido diz ter recebido denúncia "presencial" de antigo aluno

Em 2019, António Capelo foi mandatário nacional do Bloco de Esquerda às Europeias, mas, segundo o partido, "nunca foi aderente" do partido. A propósito destas acusações, o BE diz que "recebeu na semana passada, por parte de uma pessoa, eleita local do Bloco e antigo aluno do ator António Capelo, o relato presencial de atos muito graves cometidos por este professor de teatro. A denúncia é um passo de grande dificuldade para as vítimas, que merecem ser ouvidas e ver os seus testemunhos respeitados".

"O relato agora recebido, referindo acontecimentos com mais de uma década, é consistente com outros, citados publicamente nos últimos dias, que apontam para uma conduta que o Bloco repudia absolutamente. O Bloco está solidário com as vítimas e a apresentação de queixas nas instâncias próprias", diz o BE em comunicado.

"Em 2023, o Bloco propôs no Parlamento a clarificação da tipificação do crime de assédio no Código Penal, com vista a melhor enquadrar abusos cometidos por pessoas que, em relação às vítimas, se encontram em lugares de poder. Os espaços de trabalho e de formação devem ser livres de assédio, tal como têm defendido as associações representativas do setor das artes, entre outras, ao proporem protocolos seguros de denúncia e de ação", é ainda frisado.