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“Pergunto a mim mesmo. Porquê? Porque é que ainda estou aqui. Tão longo, estas três semanas. Só estou a contar os quilómetros até Paris”.
O desabafo foi proferido por Tadej Pogacar, ciclista profissional da UAE Team Emirates-XRG, na passada sexta-feira, dia 25, em La Plagne, no final da 19.ª etapa da 112ª edição do Tour de France.
A confissão apanhou de surpresa muitos dos que acompanham a modalidade e o atleta. O fenómeno “extraterrestre”, relevou, nesse instante o seu lado terreno.
Afinal, o ciclista completo, exímio trepador e explosivo velocista, ultracompetitivo, cujo máximo de frequência cardíaca em prova atinge os 205 pulsações por minuto, em contraponto com o batimento cardíaco de 35 durante o sono, é de carne e osso e tem a fadiga e o cansaço mental como expressões máximas do sentimento humano.
Vestido com a desejada camisola amarela, o esloveno de 26 anos entrou, finalmente, em Paris e nos Campos Elísios (altura em que se celebram os 50 anos de chegada a esta avenida da capital francesa) após 76 horas 04 minutos 56 segundos a pedalar ao longo das três semanas e venceu, pela quarta vez na carreira, a Volta a França em bicicleta. Algo que nenhum outro ciclista conseguiu com esta idade.
Igualou o britânico Chris Froome e fica a um degrau de Jacques Anquetil (1957, 1961–1964), Eddy Merckx (1969–1972, 1974), Bernard Hinault (1978–1979, 1981–1982, 1985) e Miguel Indurain (1991–1995), todos com cinco vitórias no "Grande Boucle".
O triunfo na prova desenhada em 1903 para promover o jornal desportivo francês L'Auto, aconteceu após o final da 21.ª etapa e dos últimos 132,3 quilómetros que ligaram Mantes-la-Ville a Paris.
O trajeto ficou marcado pela inédita subida (quatro vezes) à colina de Montmartre. Debaixo de chuva, Pogacar liderou uma fuga de meia dúzia de ciclistas mas não arriscou na última subida e descida e terminou, a solo, no 4.º lugar, 19 segundos atrás do vencedor, Wout Van Aert, da Visma.
Vencedor do Tour em 2020, 2021, 2024 e 2025
O Tour foi testemunhado e acompanhado pelos pais, Mirko, ex-gerente de uma fábrica de cadeiras e Marjeta Pogacar, antiga professora de francês, língua que sempre usou para colocar o filho na ordem quando o comportamento assim o exigia.
Atualmente gestores da Fundação Tadej Pogačar, humildemente, pedalaram atrás do filho numa camper van, oferta de um patrocinador, em 2020.
“Pogi”, alcunha pelo qual é conhecido, estreou-se nos triunfos no Tour de France em 2020, edição adiada por causa da pandemia do COVID-19. Então, aos 20 anos, foi coroado o segundo ciclista mais jovem de sempre a terminar de amarelo em Paris. Repetiu a dose em 2021 e 2024, ano que foi de sonho para o esloveno ao somar o título mundial e o triunfo no Giro D’Italia.
Na prova de todas as provas de três semanas, Tadej Pogacar foi ainda “vice-campeão” nas edições 2022 e 2023, ambas vencidas pelo dinamarquês Jonas Vingegaard.
Para além da vitória final em 2025, Pogacar soma, em cinco anos de Tour de France, 21 etapas como o primeiro a cortar a meta de braços no ar.
Um trilho de sucesso iniciado a 6 de setembro de 2020, na etapa 9, Pau – Laruns, 153 quilómetros, e cuja última subida ao lugar mais alto do pódio ocorreu no passado dia 18, no percurso entre Loudenvielle – Peyragudes (etapa 13, cronoescalada de 10 km).
Este ano, Pogacar venceu quatro etapas na Volta a França e manteve acesso, e quente, o duelo com Jonas Vingeegard, ciclista que manteve sempre à distância no retrovisor.
Tour de Avenir, Volta ao Algarve e 3.º na La Vuelta. Os passos antes do Tour
Recuemos a 2017, ano da profissionalização do ciclista natural da Eslovénia. Venceu o Tour de Avenir (Volta ao Futuro), Volta a França dos pequenos, com a equipa eslovena do ROG – Ljubljana. Este, poderá ter sido o marco decisivo na vida em cima do selim.
Dois anos depois, foi 3.º classificado na La Vuelta (Espanha), em 2019, já ao serviço do UAE Team Emirates e triunfou na 45.ª Volta ao Algarve, nessa mesma época, tudo antes de explodir em França no ano do fecho temporário do mundo.
Companheiro do português João Almeida, provou, nos últimos anos, ser capaz de vencer qualquer corrida do calendário velocipédico – Grand Tours, clássicas e mundiais, além de subir ao pódio olímpico.
Liège - Bastogne – Liège, Volta à Lombardia, Tirreno-Adriatico, UAE Tour, campeão do mundo, medalha de bronze nos Jogos Olímpicos Tóquio2020, quatro Tours e um Giro, fazem parte de um vasto palmarés que inclui 103 vitórias em corridas.
Representa, desde 2019, profissionalmente a UAE, mas Pogacar poderia estar vestido com a malha do rival Soudal-Quickstep team.
Joxean Fernandez Matxin, atual diretor desportivo na UAE Team Emirates, em 2017, espiou, na qualidade de responsável pelo scouting da Quickstep, Pogacar, quando o esloveno representava a Radenska Ljubljana.
Observado em Montauban (França), Fernandez Matxin conta ao The Athletic o primeiro encontro. “Lembro-me do Tadej nos últimos 300 metros atacar e tentar vencer. Não venceu, mas soube que era mais forte e de outro nível”, recordou.
Na abordagem a Pogacar, recorda. “Os atacadores eram de uma pessoa normal, os sapatos tinham talvez quatro anos”, disse ao recuperar este encontro quase de terceiro grau. Então, o atual diretor desportivo da equipa da Península Árabe apercebeu-se, de imediato, estar perante “um super corredor com imensa margem de crescimento. Não era profissional e sabíamos que era um talento puro”, descreveu.
Imitar o irmão mais velho abriu-lhe as portas do céu
Nascido em Klanec, nos arredores da capital eslovena, Liubliana, Tadej Pogacar é o terceiro de quatro irmãos, dois rapazes e duas raparigas. Os jogos em família, do xadrez ao Pokémon, passando pelas cartas, faziam parte da rotina familiar. Tal como a obrigatória limpeza da bicicleta antes de cada corrida.
De corpo franzino, magro, pequeno demais para chegar aos pedais durante a infância e puberdade, os primeiros metros de Pogacar foram percorridos numa roda gigante (monociclo), enquanto as primeiras pedaladas, em desnível, foram dadas na quinta da família do pai, no verão, local onde punha a mão na terra para colher batatas.
A vontade férrea de imitar o irmão, Tilen, dois anos mais velho, de quem “Pogi” afirmou ao Times, em 2021, ser melhor que ele, serviu de passadeira para se tornar, para muitos, o melhor de todos os tempos nas duas rodas, depois de ter experimentado futebol e outros desportos, sempre no encalço do Pogacar mais velho.
Um convite do clube local, Rog Ljubljana, endereçado a Tilen, feito pelo treinador Miha Koncilija, serviu de via verde para Tadej se transformar no que é hoje.
Os irmãos receberam bicicletas, calçado e capacetes, despesas fora do orçamento da família Pogacar, conforme admitiu Marjeta ao site cyclingweekly.
Aos 11 anos, alcançou a primeira vitória na subida a Krvavec, estrada para a estação de esqui (11.7km e 8.3% de pendência) visível do quintal da família Pogacar.
A baixa estatura, uma desvantagem até quase à maioridade, marcou a futura mentalidade de Pogacar. “Não sentia pressão para ganhar, porque nunca tinha ganhado até então”, recordou a mãe numa recente entrevista ao The Athletic.
Aprender a ganhar e saber perder é um mantra que cresceu com o esloveno. A prová-lo está o que disse em 2022. “Não poderia haver melhor maneira de perder o Tour de France do que esta", admitiu Tadej Pogacar, após ver Vingegaard terminar de amarelo. "Dei tudo hoje, pensando na classificação geral. Sairei da corrida sem arrependimentos”, disparou.
Os irmãos eslovenos, Andy e Fran Schleck, foram os primeiros heróis dos Pogacar. Tien cedo pendurou a bicicleta (trabalha em logística numa empresa de transportes), enquanto Tadej virou os olhos para Alberto Contador e prossegui a pedalar a escrever as páginas do seu próprio capítulo.
Confiança e ambição, os músculos que guiam Pogacar
João Pedro Mendonça, jornalista da RTP e um conhecedor do ciclismo internacional, partilhou com o 24notícias um apontamento feito pelo próprio quando assistiu à série da Netflix. Juntou, no pensamento íntimo, os dois aliens do ciclismo atual, Jonas Vingegaard (Visma-Lease a Bike), segundo na geral deste ano e Tadej Pogacar, o campeão em título.
“Quando acreditas piamente, que vais vencer, a vitória confirma-te a ideia. Quando tens dúvidas que vais vencer, a vitória alimenta-te”, alinhou. “Um autoconfiante, obviamente está sempre menos preparado para a dúvida do que aquele que está sempre a duvidar. Tal como tanta coisa na nossa vida, a dúvida treina-nos”, continuou.
“Os músculos mais importantes do Vingegaard parecem ser a abnegação e a força de vontade. Os músculos mais importantes do Pogacar parecem ser a confiança e a ambição”, contrapôs a voz que acompanha o Tour de France e as outras grandes provas velocipédicas, para a além da sempre acarinhada Volta a Portugal.
Dieta, a lesão e alta relojoaria no pulso esquerdo
Confiante e ambicioso, o ciclista que quase ganhou tudo, conseguiu nesta edição da Volta a Franca chegar aos pés de uma marca do mítico Eddy Merckx.Pedala cerca de 30 mil quilómetros por ano de acordo com o cyclistshub. Em 2024 completou quase 10 mil quilómetros em corrida, ao longo de 58 dias de competição, segundo o procyclingstats.
Para ser super-herói, num caminho nem sempre fácil e com muita disciplina, Pogacar segue, como todos os atletas de elite, um rígido protocolo alimentar antes e após as etapas, variando o menu conforme ataca a alta montanha ou contrarrelógio.
A roda dos alimentos gira à volta de hidratos de carbono, arroz, geleias, barras, panquecas de chocolate, ovos e o favorito cheesecake e risotto de beterraba, tudo acompanhado pelo ingestão de 1 garrafa de água por hora (hidratação) alimenta o talento existente cuja privação de muita coisa terrena faz parte do dia a dia.
O escrutínio é do chef basco, Gorka Prieto-Bellver, responsável pelas proteínas e calorias da UAE. Por ser quem é, Pogacar tem direito a uma fórmula feita de propósito para as suas características elaborada pela bebida energética (Enervit) que o patrocina.
Em oito anos como profissional, Tadej Pogacar sofreu uma lesão grave: fraturas no escafóide e no osso semilunar da mão esquerda em abril de 2023, após uma queda durante a clássica Liège-Bastogne-Liège.
Voltou a cair no chão e a magoar o pulso esquerdo onde usa o relógio do patrocinador Richard Mile RM 67-02.. A peça de alta relojoaria acrescenta 32 gramas ao peso total do ciclista (66kg para 1,77 m de altura) que, também, gosta de guiar carros.
“Brincar na areia como se fosse uma criança”
“Ele está só a brincar na areia como se fosse uma criança", sublinhou o amigo e compatriota, Matej Mohoric, na reportagem do The Athletic “The making of Tadej Pogacar, the Tour de France’s laidback superstar”.
"Obviamente que quer vencer. O Ciclismo é tudo o que lhe importa. Nada mais. Mas só quer acordar todos os dias, andar de bicicleta e, no dia seguinte, acordar e sair a pedalar. Mas nunca fica stressado com isso", assinalou, referindo-se ao superciclista.
Pese embora o cansaço físico e o desgaste emocional, admitido pelo próprio, antes de fechar o pano do Tour, Pogacar manifestou o seu lado mais humano e racional.
“Mesmo na terceira semana, quando se está cansado, mais ou menos irritado com todos ao teu redor, e, só se quer ir para casa”, adiantou. “No final, quando se pedala nessas grandes subidas e as pessoas apoiam, dá uma motivação extra” disse Pogacar, na versão 2015. “Realiza-se que afinal não é tão mal estar aqui. Em especial, se se tiverem boas pernas, então tudo fica bem” referiu em la Plagne, o extraterrestre que demonstrou ser humano e que, em 2025, foi mais controlado, frio, calculista, conservador e menos expansivo nas chegadas.
Findo um “tour de outro nível”, após colecionar a quarta camisola amarela do Tour de France,Tadej Pogacar irá desfrutar o verão em casa e anunciará, em breve, se confirma a inscrição na Volta a Espanha, onde não compete desde 2019 e que nunca venceu.
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