
Acompanhe toda a atualidade informativa em 24noticias.sapo.pt
A Constituição da República Portuguesa (CRP) não é revista há 20 anos e, como escreve a constitucionalista Catarina Santos Botelho, "tal como o vinho envelhecido, a Constituição madura corre o risco de oxidação e de perda de qualidade se for abandonada incólume à sua sorte".
"Não é saudável" estar tanto tempo sem rever a Constituição, considera a professora coordenadora dos mestrados de Direito da Faculdade de Direito da Universidade Católica do Porto, que acredita que é importante revisitar a atualizar a CRP. E cita um estudo conduzido por académicos que mostra que o tempo médio de vida de uma constituição é de 19 anos.
Para o jurista José Ribeiro e Castro, a Constituição é uma "ilusão", um texto "profundamente socialista, ideológico e programático" que elenca uma quantidade de direitos — emprego, saúde, habitação, educação — que "só servem para, volta e meia, um deputado qualquer fazer um 'brilharete' e dizer que ela não está a ser cumprida". "Não vale a pena escrever 100 vezes que a Constituição consagra o direito à habitação, é preciso construir casas", ironiza.
Para o deputado, o texto constitucional está cheio de "pormenores inúteis", "uma quantidade de artigos que não servem para nada", "normas que torcem, distorcem e limitam", "verdadeiras amarras", um "conjunto de intenções que, na realidade, dependem da vontade da sociedade e da economia e daquilo que ela produz para distribuir riqueza".
Para o ex-deputado, o ideal seria "escrever uma Constituição nova, uma versão consolidada, voltada para o século XXI e mais reduzida, com pouco mais de 100 artigos em vez dos atuais 296".
"Pedimos à Constituição forças e cometimentos que ela não tem, como se fosse uma fórmula mágica", sublinha Catarina Santos Botelho. "Por exemplo, há quem queira introduzir um limite ao endividamento público ou ao défice, como se por um toque de Midas nunca mais houvesse défice. A Constituição é limitada pela ação política", recorda.
Para a professora de Direito, "constitucionalizar o direito fundamental à água seria basilar". No entanto, recorda, "a Bolívia constitucionalizou o direito fundamental à alimentação e, pouco depois, um relatório das Nações Unidas veio atestar que 20% dos bolivianos estavam subnutridos".
Direito à habitação, ao emprego, à cultura, ao lazer, à proteção da saúde, à educação e à maternidade. São todos princípios consagrados na Constituição, mas quantos são, na prática, direitos que o Estado consegue garantir aos cidadãos? Muitos juristas consideram estes artigos aspiracionais, criando uma discrepância entre a promessa legal e realidade.
Os especialistas não têm dúvida de que as revisões serão sempre processos complexos e controversos, com uma gestão difícil do que cortar e o que acrescentar. No entanto, se até 2005 houve um "frenesim constitucional", como lhe chamou um dos pais da Constituição, Jorge Miranda, que levou a sete revisões desde a sua adoção, em 1976, assistimos agora a um longo período sem alterações e, para muitos, algumas normas tornaram-se obsoletas e absurdas.
"Precisamos de uma boa Constituição e uma constitucionalista tem sempre mil e uma ideias e aspetos que gostaria de aperfeiçoar. Mas é preciso ter honestidade intelectual e bom senso para perguntar: esta constituição impediu reformas estruturais? O que não muda, é por causa da Constituição ou a Constituição é um bode expiatório?", diz Catarina Santos Botelho.
"Dissolução dos blocos político-militares"
A referência aos blocos político-militares é "um dos aspetos cujo teor não faz sentido", diz o advogado Rogério Alves. Segundo o n.º2 do artigo 7.º, que trata as relações internacionais, "Portugal preconiza [...] a dissolução dos blocos político-militares". Ora, Portugal é membro fundador da NATO (1949) e a Constituição não exigiu a sua saída da organização.
Jorge Miranda tem vindo a defender publicamente a revogação deste artigo desde 1980, uma vez que surgiu "no contexto da turbulência do Verão de 1975", mas não tem sentido prático numa ótica institucional moderna. Como disse em tempos, só não foi eliminado por inércia ou por demagogia.
Até hoje, nenhum partido apresentou uma proposta formal de revisão do artigo 7.º para revogar ou alterar a premissa constitucional da dissolução dos blocos político-militares. No entanto, este é um dos argumentos usado pelo Partido Comunista e pelo Bloco de Esquerda para defenderem a saída de Portugal da NATO.
Se o PCP diz mata e quer "uma estratégia soberana de desenvolvimento e uma política externa não subordinada à agenda da União Europeia e da NATO e assente na paz e na cooperação", o BE diz esfola e pede a "saída de Portugal da NATO e a defesa do desarmamento negociado e com uma base multilateral, rejeitando inequivocamente todos os cenários de aproximação à formação de um exército europeu".
Uma política agrícola incomum
É talvez na Parte II, que trata a "organização económica", que estão as maiores incongruências. Estudos académicos mostram que a Constituição tem mais de 25 artigos a regulamentar o papel do Estado na economia. O jurista e antigo deputado do CDS, José Ribeiro e Castro, dá como exemplo o artigo 81.º, sobre as "incumbências prioritárias do Estado". Uma delas, fixada na alínea h), é "eliminar os latifúndios e reordenar o minifúndio".
No que diz respeito à "eliminação de latifúndios", o artigo 94.º é ainda mais específico: "O redimensionamento das unidades de exploração agrícola que tenham dimensão excessiva do ponto de vista dos objetivos da política agrícola será regulado por lei", diz. E prevê: "As terras expropriadas serão entregues a título de propriedade ou de posse, nos termos da lei, a pequenos agricultores, de preferência integrados em unidades de exploração familiar, a cooperativas de trabalhadores rurais ou de pequenos agricultores ou a outras formas de exploração por trabalhadores".
Estas disposições foram redigidas após o 25 de Abril, num clima fortemente influenciado por ideais revolucionários e pelo contexto da Reforma Agrária. A intenção era corrigir desigualdades fundiárias, especialmente no Alentejo, onde as grandes extensões de terra estavam mais concentradas, promover o acesso direto à terra pelos trabalhadores.
Ao mesmo tempo, pretendia-se racionalizar o minifúndio, sobretudo no Norte e Centro, onde as parcelas de terra eram demasiado pequenas para uma exploração agrícola economicamente viável.
De lá para cá, a agricultura portuguesa mudou: mecanização, políticas europeias (PAC) centradas em subsídios, quotas e competitividade e abandono de terras tornaram esta divisão irrelevante e o latifúndio clássico desapareceu como problema económico e político. Muitas explorações foram reconvertidas para culturas como o olival, a vinha ou a floresta, com modelos empresariais modernos. A sustentabilidade e a inovação tornaram-se prioridade.
O conceito "latifúndio" não tem definição legal ou técnica clara nos dias de hoje e os artigos tornaram-se irrelevantes na atualidade. Juristas como Gomes Canotilho e Vital Moreira já defenderam que várias normas ligadas à Reforma Agrária ou à estrutura da propriedade devem ser interpretadas à luz da sua função histórica, mas não impõem obrigações ao Estado.
Trabalhadores têm ou não poderes de gestão?
No capítulo dos "direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores", o artigo 54.º, sobre comissões de trabalhadores, é outro dos considerados inusitado, pelo menos no que toca à alínea b), que consagra às comissões de trabalhadores o direito de "exercer o controlo de gestão nas empresas".
Uma vez mais, a norma é inspirada num modelo já ultrapassado de "controlo operário", segundo o qual os trabalhadores participam ativamente e com poder efetivo nas decisões de gestão. Apesar de estar na Constituição há quase 50 anos, o legislador nunca definiu em concreto o que significa "controlo de gestão" ou quais os seus limites.
O Código do Trabalho reconhece às comissões de trabalhadores alguns direitos de informação e consulta, mas não de decisão nem de controlo. Alguns juristas consideram que a expressão "controlo de gestão" é ambígua e pode até ser conflituante com os direitos dos gestores, a segurança dos investidores ou os princípios de gestão moderna e de economia de mercado.
Também aqui Vital Moreira e Gomes Canotilho defendem que esta norma deve ser interpretada de forma meramente programática, como um objetivo político de democratização das empresas, mas não como um direito exigível em tribunal.
O mesmo se passa com os artigos 88.º, que prevê que os "meios de produção em abandono" possam ser expropriados e objeto de arrendamento ou de concessão de exploração compulsivos, e 89.º, que assegura a participação dos trabalhadores na gestão das unidades de produção do setor público. Para Rogério Alves, são mais dois artigos a abater.
Diversos especialistas olham para estas normas como resquícios de um modelo económico e político antiquado, que não só não têm aplicação prática real hoje, como também entram em tensão com os princípios constitucionais dominantes, como a propriedade privada, a economia de mercado ou a integração europeia.
A falsa autoridade do presidente da República
A "referenda ministerial" é para António Araújo, mestre em Direito e doutor em História Contemporânea, outro absurdo. De acordo com o artigo 140.º, determinados atos do presidente da República precisam da assinatura de um membro do governo, geralmente do primeiro-ministro ou do ministro responsável pela pasta em causa, para ter validade. Segundo a norma, "a falta de referenda determina a inexistência jurídica do ato".
Estão em causa atos como "nomear e exonerar os membros do governo", "dissolver as Assembleias Legislativas das regiões autónomas, ouvidos o Conselho de Estado e os partidos nelas representados", "nomear e exonerar, sob proposta do governo, o presidente do Tribunal de Contas e o Procurador-Geral da República", "indultar e comutar penas", "nomear os embaixadores e os enviados extraordinários, sob proposta do governo, e acreditar os representantes diplomáticos estrangeiros" ou declarar "estado de sítio e de emergência", entre outros.
Esta norma reforça o princípio do parlamentarismo, em que o presidente da República é responsável apenas por alguns atos próprios e autónomos, sendo os restantes executados sob responsabilidade do governo.
As principais críticas têm que ver com a falsa coautoria política. Alguns constitucionalistas argumentam que certos atos do presidente são, na prática, da sua exclusiva responsabilidade, por exemplo, dissolver a Assembleia da República ou nomear o primeiro-ministro. A "referenda" pode até obrigar a que um membro do governo assine algo com o qual não está de acordo ou até que o afeta diretamente, como a demissão de um ministro.
Por outro lado, a responsabilidade política é de certa maneira distorcida. A lógica da referenda é que quem assina, responde politicamente pelo ato. Mas se é o presidente que toma a decisão, e o ministro só a assina por obrigação formal, a responsabilidade política torna-se ficção.
A falta de clareza e risco de bloqueio institucional são outro argumento contra. Há situações em que o presidente da República não pode cumprir a Constituição sem a assinatura de um ministro, que pode recusar-se a assinar. Isso cria um risco de impasse institucional.
Socialismo ou solidariedade?
O preâmbulo da Constituição e a célebre frase "abrir caminho para uma sociedade socialista" tem sido desde há muito objeto de grandes discussões. Catarina Santos Botelho propõe que a palavra "socialista" seja substituída por "solidária".
A frase é tão datada que começa com "a Assembleia Constituinte", órgão substituído pela Assembleia da República com as eleições de 25 de Abril de 1976.
Jorge Miranda e Vital Moreira, entre outros, defendem que o preâmbulo não tem valor normativo vinculativo, é antes um texto de enquadramento político-ideológico, útil para interpretar o espírito da Constituição, mas sem força jurídica autónoma.
Partidos como o PSD, o CDS-PP, a Iniciativa Liberal ou o Chega consideram a menção à "sociedade socialista" obsoleta, ideológica e desajustada da democracia pluralista. Tem havido propostas para remover ou rever o preâmbulo durante processos de revisão constitucional, mas nunca foram aprovadas.
A última revisão constitucional ocorreu em 2005, foi a sétima revisão da CRP. Os últimos processo de revisão constitucional têm vindo a falhar devido à queda do governo, o fim da legislatura faz caducar o processo. Em novembro de 2024, o Chega anunciou que vai desencadear novo processo de revisão para reduzir o número de deputados para 150. Todos os partidos com assento parlamentar — PS, PSD, BE, Chega, IL, PAN, Livre, CDS-PP — manifestaram intenção de apresentar projetos próprios caso a iniciativa do Chega avance.
A última proposta do PSD apontava como prioridades a o mandato único de sete anos para o presidente da República, com poderes reforçados incluindo nomeações de PGR, Banco de Portugal e Tribunal de Contas, sob audição parlamentar, o direito de voto a partir dos 16 anos, o voto eletrónico consagrado ou a previsibilidade fiscal.
No caso do Chega, as propostas incluem a redução do número de deputados para 150, a introdução de mandatos limitados e restrições à imunidade parlamentar, o endurecimento de penas (incluindo prisão perpétua), o voto obrigatório, o uso controlado de metadados e restrição de direitos dos imigrantes e refugiados.
Já a Iniciativa Liberal apoia a redução de deputados dentro de limites já permitidos, a constitucionalização do direito ao esquecimento/apagamento de dados, o acesso a metadados sob controlo judicial, um sistema de saúde que integre SNS, privado e social, com base na liberdade de escolha, mais facilidade para despedir.
O PS recusa a redução de deputados e propostas de alterações aos círculos eleitorais e tem abertura moderada a mudanças como o voto antecipado, com prazos fixos para eleições. Apoia a proposta de recurso de amparo ao Tribunal Constitucional para proteção de direitos fundamentais e está aberto a alterações que reforcem a transparência e combate a abusos legislativos.
BE, PCP, PAN e Livre propõem o reforço de direitos eleitorais, especialmente voto dos imigrantes (Livre, BE, PCP), tornar o ensino secundário e superior gratuitos (BE, PCP), com progressividade (PS). PCP propõe eliminação dos limites mínimos e máximos de deputados, PAN quer penalização do enriquecimento ilícito, Livre e PCP propõem maior autonomia das regiões e eliminação do Representante da República.
Comentários