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INTRODUÇÃO

O meu nome é Henrique Cymerman. Sou judeu, nascido em Portugal, com profundas raízes espanholas. Um dos meus antepassados chegou à Península Ibérica vindo da Alemanha no final do século XVIII. Atualmente vivo em Telavive.

Trabalho há mais de três décadas para diversos meios de comunicação (sobretudo televisivos, entre eles a SIC) de dez países em quatro continentes. A minha especialidade é a política do Médio Oriente.

Além do que faço no meu trabalho profissional, por convicção pessoal sempre me empenhei na promoção do entendimento entre o país que adotei como meu e o mundo árabe. Por exemplo, sou o único jornalista que entrevistou todos os líderes do Hamas desde os anos 1990, e fui um dos fundadores da Câmara de Comércio e Inovação entre Israel e os países do Golfo. Em nome do Papa Francisco, colaborei com ele durante 12 anos no diálogo entre israelitas e palestinianos, organizando a primeira Oração pela Paz no Vaticano entre os presidentes Mahmoud Abbas e Shimon Peres.

Na última década, contribuí para os Acordos de Abraão e procurei promover o diálogo entre muçulmanos e judeus. Para mim, a paz no Médio Oriente é mais do que um desejo teórico e distante – é o culminar de um projeto pessoal. Por isso, sempre que o vulcão na margem oriental do Mediterrâneo desperta, levo as mãos à cabeça e penso: «Outra vez, não!» Acredito que a nossa geração não se pode dar ao privilégio de deixar aos nossos filhos e netos a difícil missão de alcançar a paz. A chave para a mudança é a educação, isolando os radicalismos de todos os lados.

Na minha família, não nos limitamos a falar disso – agimos nesse sentido. De facto, essa é a única esperança para mudar o futuro. As imagens e os acontecimentos que se desenrolaram em Gaza desde o ataque do Hamas, em 7 de outubro de 2023, são dolorosos para qualquer pessoa – também para um judeu e para um cidadão israelita. Em Israel, não somos indiferentes ao sofrimento
nem aprovamos acriticamente todas as medidas tomadas. Cada morte é uma tragédia.

O governo de Netanyahu é profundamente impopular em vastos sectores da população e foi favorecido pelos acontecimentos de 7 de outubro. Como é sabido, os extremos alimentam-se mutuamente. Esta guerra já devia ter terminado pelo menos em
março de 2025.

É também importante compreender que a incursão do Hamas em 7 de outubro encarnou todos os fantasmas e pesadelos dos israelitas (inclusive dos árabes israelitas, que também foram afetados). Tive oportunidade de ver o vídeo com imagens captadas após a entrada do Hamas nas localidades devastadas.

Quando, dias depois, cheguei ao kibutz Nir Oz – onde um quarto da população foi assassinada ou raptada, incluindo amigos de
Buenos Aires próximos do Papa Francisco – vi coisas que gostaria de esquecer, mas que sei que jamais as conseguirei apagar da memória. Algumas revelei, outras não tive coragem de relatar por respeito aos pais, mães e filhos das vítimas. Muitas vezes, estas famílias recusam-se a divulgar os pormenores do que se passou por pudor e respeito, algo muito enraizado na tradição judaica.

Na época dos atentados suicidas do Hamas, nos anos 1990 e início dos anos 2000, já me tinha apercebido desse fenómeno: os familiares não queriam mostrar as imagens dos seus entes queridos assassinados. Quando há um dilema entre responder aos que afirmam que as violações são uma invenção israelita, ou respeitar a privacidade das vítimas, a maioria dos israelitas não tem dúvidas.

Este livro é uma tentativa de explicar ao leitor em língua portuguesa o enigma de Israel para além da premência dos títulos noticiosos. A ideia nasceu na sequência dos terríveis acontecimentos de 7 de outubro de 2023, e por isso também quis que
fosse publicado exatamente dois anos depois – para sublinhar a importância dessa data na história de Israel e no eterno conflito
com o mundo árabe.

Como é possível que, apesar de ocupar milhares de manchetes nos meios de comunicação em todo o mundo, Israel continue
a ser tão desconhecido? Será ignorância? Má-fé? Prefiro acreditar que é a complexidade – as verdades absolutas são absolutamente frágeis.

Para compreender o presente, é preciso conhecer o passado. Por isso, quis que este livro híbrido (abarca relações internacionais,
política, atualidade) incluísse uma forte componente histórica não apenas sobre Israel, mas também sobre o povo judeu.

Talvez, em Portugal, se veja Israel como uma grande potência militar apoiada por uma superpotência global. É verdade – mas não é toda a verdade. Basta olhar para o mapa da região e ampliá-lo: Israel é tão pequeno que, consoante a escala, nem sequer aparece. Esse território de 22 145 km², com uma população de 10,1 milhões de habitantes (dos quais 2,1 milhões são árabes), está rodeado por países que são mais ou menos hostis à causa israelita – ou, no mínimo, são árabes ou muçulmanos.

A norte, até à Turquia; a oeste e sul, ao longo da margem Sul do Mediterrâneo até Marrocos e Iémen; a Leste, quase até à Indonésia.

Livro: "O Enigma de Israel"

Autor: Henrique Cymerman

Editora: D. Quixote

Data de lançamento: 30 de setembro de 2025

Preço: € 21,90

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Ou seja, estamos a falar de perto de dois mil milhões de pessoas. Esta perspetiva raramente é mencionada nos noticiários, mas faz parte da realidade que queremos analisar.

Como se verá nas páginas deste livro, os judeus são nativos desta terra há milhares de anos – muito antes de o rei David declarar Jerusalém como capital há três milénios. A história do Estado de Israel nasce no contexto do maior genocídio da história, o Holocausto, ocorrido no coração da Europa. Mas desde a proclamação do Estado de Israel, a 14 de maio de 1948, o país teve de enfrentar a hostilidade dos seus vizinhos. Durante anos tentou alcançar um entendimento para uma convivência pacífica.

Também essa história dos esforços de paz explica muita coisa que não cabe nos títulos dos jornais.

Sempre afirmei que no Médio Oriente nada é o que parece. Ainda hoje fico fascinado ao descobrir factos não divulgados que, se fossem conhecidos, surpreenderiam o mundo. Para concluir esta introdução, gostaria de desconstruir cinco dos mitos mais falsos e surpreendentes sobre este tema:

1. Quando são citados números de mortes fornecidos pelo Ministério da Saúde de Gaza, é preciso entender que se trata da própria organização Hamas. Não por acaso, os seus combatentes vestem-se como civis para serem contabilizados como tal. Existem milhares de vítimas inocentes – uma tragédia que o povo palestiniano (nem nenhum outro) merece. Desde 2007, mais de dois milhões de pessoas em Gaza são reféns de um grupo classificado como terrorista pela Liga Árabe e pela União Europeia. Em vez de investir centenas de milhões de dólares em túneis – mais longos do que os metros de Nova Iorque ou de Paris – esse grupo poderia tê-los investido em construção, escolas, hospitais e no futuro da sua população.

2. Quando manifestantes gritam palavras de ordem atraentes mas superficiais, muitas vezes escritas em Teerão, não compreendem que estão a clamar pela destruição de um Estado reconhecido pelas Nações Unidas, onde vive metade do povo judeu. Quando chamam aos israelitas «supremacistas brancos», esquecem-se de que mais de metade da população descende de judeus oriundos de países árabes, como Iraque, Síria, Líbano, Egito, Argélia ou Marrocos – além de haver em Israel uma comunidade significativa de origem etíope.

3. Quando se afirma que Israel é um Estado de apartheid, seria melhor olhar para os factos. Os árabes israelitas estão representados no Supremo Tribunal, no parlamento, dirigem hospitais públicos, têm partidos que já integraram coligações de governo e têm direito de voto como qualquer outro cidadão.

4. Dias após o ataque do Hamas, e muito antes da incursão terrestre em Gaza, já se tinham registado cerca de 2500 manifestações hostis a Israel em todo o mundo, com mensagens uniformes e faixas impressas profissionalmente. O advogado canadiano Warren Kinsella investigou e concluiu que os organizadores estavam a ser pagos, que se tratava de uma campanha organizada. Lembremo-nos: uma mentira repetida mil vezes continua a ser uma mentira.

5. O massacre de 7 de outubro radicalizou uma parte da sociedade israelita, que perdeu a esperança na paz. No entanto, sondagens mais profundas mostram que mais de dois terços dos israelitas sonham com a paz que englobe mais países árabes e muçulmanos – entre eles Síria, Líbano, Indonésia e, sobretudo, uma normalização histórica com a principal nação muçulmana, a guardiã dos lugares sagrados: o reino da Arábia Saudita. Para alcançar um compromisso com os palestinianos, serão necessárias decisões históricas – e muitos apontam três condições essenciais: segurança, segurança e segurança. É fundamental que o fantasma de 7 de outubro seja enterrado para sempre e que nunca mais se repita um massacre semelhante.

Daí que israelitas e palestinianos precisem de novas lideranças, menos ancoradas nos fantasmas do passado. Quero acreditar que os próximos Anwar Sadat e Isaac Rabin já nasceram – e já caminham entre nós. Sou otimista… mas um otimista informado. E é por isso que acredito que, apesar da dureza destes dois últimos anos, talvez estejamos mais perto de uma solução do que em qualquer outro momento desde… a histórica Conferência de Paz de Madrid?

PRÓLOGO

Os israelitas: a segunda Guerra da Independência

Ser judeu é fazer parte da história mais extraordinária jamais vivida por algum povo, que abrange mais países, mais circunstâncias adversas, mais triunfos e tragédias do que alguma outra história. Cada um de nós tem um capítulo a escrever nessa história e passar o livro às próximas gerações. Isso é ser judeu.

– Grande Rabino Lorde Jonathan Sacks

Israel é um país que nasceu no olho do furacão e que, apesar da sua enorme criatividade e êxitos, nunca deixou de o estar.

São disso reflexo mais de uma dezena de guerras e de intifadas, levantamentos populares palestinianos, bem como milhares de atentados terroristas.

Entre a Segunda Guerra do Líbano de 2006 e o massacre de mais de 1200 israelitas em 7 de outubro de 2023, às mãos dos milhares de homens do Hamas que invadiram o Sul do país, Israel viveu uma das suas épocas relativamente mais tranquilas.

Houve atentados terroristas e algumas operações limitadas contra o Hamas e a Jihad Islâmica, mas foram 17 anos em que a economia israelita cresceu significativamente e o país viveu um ambiente de hedonismo, consumismo e satisfação. São os anos da «Start-up Nation» e de um rendimento per capita superior ao do Japão e ao de todos os países da União Europeia.

É certo que os debates internos sobre o futuro do país se intensificaram.

Por exemplo, no que diz respeito ao papel do poder judicial e do Supremo Tribunal, tendo levado centenas de milhares de pessoas a manifestar-se, durante dez meses, contra a «revolução judicial» que o governo de direita de Benjamin Netanyahu tencionava levar a cabo.

Este período de relativa tranquilidade acabou com o maior massacre da história de Israel, no dia de Simchat Torá, a festividade judaica que celebra a Torá, a 7 de outubro de 2023. De acordo com os dados atualizados do exército israelita, 5700 palestinianos oriundos de Gaza, e não apenas os 3000 que se pensava ao início, infiltraram-se em Israel. Desses, 3800 eram membros dos comandos do Hamas «Nukba» (os eleitos).

Os restantes eram cidadãos de Gaza, alguns seguidores do Hamas, e saqueadores que roubaram tudo o que puderam das povoações israelitas do Sul do país. Nalguns casos, carregaram camiões com televisões, computadores, máquinas de lavar loiça, máquinas de lavar roupa e muito mais. Mil membros do Hamas dispararam foguetes a partir de Gaza sobre território israelita, num total de 4300 projéteis só nesse dia negro. Os seguidores do Hamas entraram em Israel rompendo o muro de segurança em 119 pontos diferentes, e não apenas em 60, como inicialmente estimado.

Este foi o ataque terrorista mais grave da história de Israel e um dos mais importantes da história do terrorismo mundial. A agressão islâmica provocou uma vaga de violência cujos efeitos se farão sentir durante anos. Perante as 1200 vítimas assassinadas
e as 251 sequestradas em Gaza, os israelitas reconhecem que o seu pior pesadelo passou a ser acordar em pijama e ser levado para a Faixa de Gaza pelo Hamas, ou então para as zonas libanesas administradas pelo grupo xiita pró-iraniano, o Hezbollah.

Não por acaso, o ataque do Hamas aconteceu no 50.º aniversário da Guerra do Yom Kipur, o maior golpe estratégico que o mundo árabe impôs a Israel. Em outubro de 1973, o Egito e a Síria lançaram um ataque-surpresa simultâneo a norte e a sul, justamente no dia de jejum mais importante do calendário judeu, em que muita gente se encontrava nas sinagogas.

Meses antes do massacre de 7 de outubro de 2023, realizou-se um encontro no hotel Commodore, na Faixa de Gaza, destinado a revelar as verdadeiras intenções do Hamas na maior matança da sua história. Na presença de líderes políticos e militares da organização islâmica, bem como de peritos, advogados, economistas, contabilistas, notários e engenheiros, falou-se do «dia seguinte» ao ataque a Israel. Ali ficou claro que o verdadeiro objetivo do Hamas com o ataque, que estava a ser planeado havia muito tempo, era ocupar partes do Estado de Israel e dividi-las em cantões, cada um com o seu governador.

Um grupo de economistas próximos do Hamas apresentou uma lista de instituições israelitas que os dirigentes islâmicos dividiriam entre si: hospitais, escolas, universidades, centrais elétricas, estádios de futebol…

O jornal progressista israelita Haaretz entrevistou um dirigente palestiniano de Gaza que esteve presente no encontro do hotel Commodore e que depois resolveu fugir para o Cairo. Na sua opinião, a intenção absurda do Hamas de ocupar o Estado de Israel ilustra o estado de loucura de alguns dos seus dirigentes. O mesmo dirigente palestiniano revelou que o Hamas preparou um documento, que pretendia entregar às Nações Unidas, no qual declarava de forma clara: «Agora que o Estado de Israel já não existe, chegou o momento de reconhecer o Estado Islâmico da Palestina.»

Em resposta à matança de 7 de Outubro de 2023, Israel lançou uma operação em Gaza, «Espadas de Ferro», que se tornaria a guerra mais longa da sua história, superando até os dez meses da Guerra da Independência de 1948. Segundo o Ministério da Saúde de Gaza, sob tutela do Hamas, até esta data perderam a vida cerca de 54 mil palestinianos, entre eles 20 mil milicianos do seu braço armado, e milhares de civis: mulheres, idosos, crianças e bebés. Muitos viram as suas casas serem transformadas em bases e arsenais islâmicos e por isso atacadas pelo exército israelita.

Historicamente, o Hamas instala-se no coração da população civil – infantários, escolas, hospitais – para aumentar a pressão internacional sobre o exército israelita, muitas vezes acusado de levar a cabo um genocídio. Governos de todo o mundo, que tinham justificado o direito de Israel à sua defesa após o 7 de Outubro, condenaram o elevado número de vítimas civis, exigindo
a Israel um cessar-fogo imediato.

Horas depois do massacre do Sul de Israel, a população civil do Norte do país sentia-se crescentemente angustiada com a concentração no lado libanês da fronteira, a dezenas de metros das suas casas, de homens da unidade Raduan – as forças de elite do Hezbollah – fortemente armados e empunhando as bandeiras amarelas da milícia pró-iraniana. A população temia que o 7 de Outubro continuasse na fronteira norte, o que levou a que mais de 70 mil pessoas fossem retiradas das suas casas e instaladas em hotéis, assim transformadas em refugiadas no seu próprio país.

Nem na Guerra da Independência de Israel foi necessário deslocar populações desta maneira. Ao longo dos meses seguintes, o Hezbollah destruiria com a sua artilharia uma parte importante das casas e das infraestruturas desprotegidas.

Israel respondeu com ataques dentro do território libanês, matando e ferindo milhares de homens do Hezbollah e causando o êxodo da população das zonas fronteiriças, onde viviam mais de 100 mil pessoas em povoações xiitas.

O objetivo declarado de Israel é devolver o mais depressa possível à população civil as suas casas e reconstruir o Norte.

Para isso, os mediadores norte-americanos e franceses conseguiram um cessar-fogo assente na substituição, no Sul do Líbano, das forças do Hezbollah pelo exército legítimo do país. Passados 60 dias, em finais de janeiro de 2025, e coincidindo com a chegada à Casa Branca de Donald Trump, o exército israelita começou a retirar-se do Líbano aos poucos, até à fronteira.

Um Hezbollah muito debilitado pela guerra foi pressionado a cumprir a resolução 1701 das Nações Unidas e a afastar-se 20 quilómetros da fronteira, a norte do rio Litani. O Hezbollah perdeu a cúpula política e militar da sua organização, incluindo o líder de mais de três décadas, o secretário-geral Hassan Nasrallah, morto numa operação especial israelita levada a cabo no bairro de Dahieh, em Beirute: enquanto Nasrallah e vários dirigentes do Hezbollah estavam reunidos num bunker, a grande profundidade, para verem na televisão o primeiro-ministro israelita Benjamin Netanyahu discursar na Assembleia Geral das Nações Unidas, oito caças F-15 israelitas lançaram pelo menos 16 bombas de quase uma tonelada de explosivos cada uma, com capacidade para penetrar o bunker, e assim provocaram a morte imediata da cúpula desta organização arqui-inimiga.

Ao longo dos anos, o Hamas e o Hezbollah receberam treino, ajuda e instruções do regime dos aiatolas. Centenas de islamitas de Gaza foram preparados no Irão para levar a cabo o massacre de 7 de outubro. Acresce que os iranianos, seguindo a doutrina de Qassem Soleimani, morto pelos Estados Unidos em 2020, erigiram um «círculo de fogo» em torno de Israel, que inclui milícias pró-iranianas sírias e iraquianas, e os seus aliados hutis, do Iémen, que, a cerca de 2000 quilómetros de distância, lançaram sobre o território israelita centenas de mísseis balísticos e drones suicidas, que alcançaram o coração de Telavive e provocaram uma retaliação sem precedentes da força aérea israelita.

Pela primeira vez na sua história, Israel enfrentava uma guerra em sete frentes, incluindo a da população palestiniana da Cisjordânia, que no início se manteve à parte. Entre 7 de outubro de 2023 e o princípio de 2025, Israel realizou 12 mil operações ofensivas na Cisjordânia, matando centenas de militantes do Hamas e da Jihad Islâmica. Em finais de 2024, quando se cumpria um ano do massacre, o líder do Hamas no estrangeiro, Khaled Mashal, a residir no Qatar, reconheceu que grande parte da infraestrutura do Hamas (23 das 24 brigadas) fora destruída por Israel, e por isso apelou a que se voltasse aos atentados terroristas nas cidades israelitas, tal como aconteceu na Segunda Intifada no ano de 2000.

Também pela primeira vez, a força aérea israelita levou a cabo várias operações de retaliação na cidade de Saná, no Iémen, e, no porto iemenita de al-Hudayda, na estação elétrica Heyzaz e Dhahban, a quase 2000 quilómetros de distância. Os hutis responderam lançando cerca de 350 mísseis balísticos e 220 drones sobre Israel, sendo os únicos rebeldes que, em finais de maio
de 2025, continuavam a atacar de forma contínua o território israelita.

Nos primeiros anos do Estado de Israel, o primeiro-ministro David Ben-Gurion erigiu o chamado «Muro», concebido há mais de um século pelo dirigente, autor e pensador Ze'ev Jabotinsky. Israel ganhou todas as guerras em que entrou no século XX e no princípio do século XXI, mas algo mudou nas ameaças ao Estado judeu e no caráter da sua população. O coletivismo pioneiro das primeiras décadas foi substituído por um individualismo crescente e por uma sociedade de consumo.

Perante a relativa tranquilidade que se viveu durante uma geração, o orçamento da defesa foi reduzido de forma drástica e as unidades de reserva substancialmente limitadas, e o armamento baseado em alta tecnologia substituiu o antigo poderio militar.

Os líderes convenceram-se de que deixara de haver o perigo de uma invasão de exércitos regulares, tal como ocorrera em 1949, 1967 ou 1973, e que agora era preciso um «exército pequeno e inteligente».

Os homens do Hamas que invadiram 30 povoações israelitas do Sul, situadas a poucos quilómetros de Gaza, destruíram os meios tecnológicos instalados na fronteira: sensores, câmaras, sistemas de reconhecimento facial, etc. Em Israel, diz-se que o problema foi a «premissa»: acreditar, erradamente, que a era das grandes guerras tinha terminado e que Israel era mais forte do que todos os seus inimigos. Israel tinha-se convertido num país viciado nos intervalos de paz entre guerras e, sobretudo, tinha perdido a iniciativa. O fracasso de 7 de outubro será dissecado durante muitos anos, mas provavelmente o principal problema de Israel é a falta de estratégia. Às vezes, dá a impressão de que Israel, com o governo mais nacionalista da sua história, é como um barco com o motor desligado que está à deriva, arrastado por correntes e ventos.

Os israelitas acreditam que a próxima década, do 7 de outubro para a frente, será decisiva e que será necessário reforçar o orçamento militar, porventura duplicando-o; aumentar significativamente o número de recrutas recorrendo, por exemplo, à mobilização de milhares de jovens ultraortodoxos, que na sua maioria evitam o serviço militar. Também os jovens da minoria árabe, cerca de 20% da população, poderiam pelo menos juntar-se aos serviços médicos e de emergência do país.

Os especialistas em segurança nacional criticam as forças armadas de Israel por terem passado décadas a desempenhar tarefas policiais na luta contra as diferentes intifadas. Agora, propõem que Israel crie um exército mais ofensivo para dissuadir os seus inimigos, especialmente os iranianos, considerados a cabeça do polvo que move os seus tentáculos, os chamados proxies, ou seja,
o Hamas, o Hezbollah, os hutis e as várias milícias pró-iranianas.

A Comissão Nagel, um organismo criado para avaliar as vulnerabilidades da segurança nacional de Israel e propor reformas estratégicas, determinou: «Depois da catástrofe de 7 de outubro, Israel deve passar de um conceito de “contenção” e defesa para
um conceito de “prevenção” e preparação, juntamente com o reforço de capacidades para uma resposta imediata e até eventualmente desproporcionada.»

Outra recomendação-chave é que Israel reduza a sua dependência da importação de armas e revitalize a sua indústria de
defesa, um sector fundamental que foi reduzido nos últimos anos para evitar a produção de armas e munições, consideradas comercialmente não competitivas no mercado mundial.

Israel chegou à conclusão de que a produção de armas é uma questão de máximo interesse nacional, relacionada com a existência do Estado, e que deve escapar à lógica económica.

Os órgãos de comunicação social afirmam que o governo israelita já adjudicou contratos a empresas locais para produzir bombas pesadas, com o objetivo de reduzir a dependência dos Estados Unidos. Embora a administração de Joe Biden tenha dado um apoio sem precedentes às Forças de Defesa de Israel na sua guerra em Gaza, por vezes limitou o envio de munições mais sofisticadas. Tudo por causa das críticas em certos sectores políticos norte-americanos pelo elevado número de vítimas palestinianas naquele território. Após a tomada de posse de Trump, a nova administração comprometeu-se a fornecer a Israel «tudo o que precisa» e pouco depois chegou ao porto de Ashdod o que a administração anterior retivera. No entanto, no Estado-Maior do exército israelita, com sede na zona de Kiriya, no centro de Telavive, afirma-se que Israel não pode correr mais riscos e que tem de ser o mais autossuficiente possível.

No Estado-Maior tem-se apontado nas últimas décadas para a república islâmica, com capital em Teerão, como a maior ameaça ao Estado judeu. A 14 de abril de 2024, o Irão retaliou diretamente contra Israel depois de uma operação seletiva em Damasco que visou o general da Guarda Revolucionária Mohammad Reza Zahedi. Pela primeira vez na história, o Irão lançou 330 mísseis balísticos, mísseis de cruzeiro e drones ofensivos. Israel foi avisado desse ataque com horas de antecedência por um país do golfo Pérsico com quem não tem relações diplomáticas. O resultado foi que, ao longo dessa noite, colaboraram para travar o ataque iraniano forças militares israelitas, norte-americanas, francesas, alemãs, jordanas e de vários países do Golfo, entre eles os Emirados Árabes Unidos, o Bahrein e a Arábia Saudita. O primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, afirmou na sua quarta intervenção numa sessão conjunta no Congresso norte-americano que os Acordos de Abraão, assinados entre Israel, os Emirados, o Bahrein, Marrocos e o Sudão, seriam alargados a outros países, mas já se estavam a tornar na chamada «Aliança de Abraão», uma espécie de NATO do Médio Oriente, que tem um inimigo comum – o regime iraniano e os seus aliados.

Os israelitas sentem-se frequentemente perseguidos pela comunidade internacional, que acusam de estar «obcecada» com Israel. Dão o exemplo das condenações sistemáticas de instituições como as Nações Unidas, que até hoje condenaram muito mais vezes Israel pela sua política em relação aos palestinianos do que a Rússia pela invasão da Ucrânia, ou a Síria quando matou civis com armas químicas, ou a Coreia do Norte, que reprime cruelmente os seus cidadãos.

De 2015 a 2022, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou 140 decisões condenatórias de Israel (devido principalmente ao seu tratamento dos palestinianos e às suas relações com países vizinhos) e 68 contra os restantes países. Em 2022, a Assembleia Geral aprovou mais resoluções críticas de Israel, num total de 15, do que as 13 contra o conjunto de todas as outras nações, segundo a organização não governamental israelita UN Watch. Israel recebeu 15 condenações, e a Rússia, que invadiu a
Ucrânia no mesmo ano de 2022, foi objeto de seis resoluções.

A Coreia do Norte, Afeganistão, Myanmar, Síria, Irão e Estados Unidos receberam uma resolução cada.

Desde que foi criado em 2006, o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas condenou Israel 99 vezes, a Síria 41, o Irão 13, a Rússia quatro, a Venezuela três e a China e Cuba nenhuma.

Esta circunstância gera uma reação de desapreço por parte dos israelitas do que consideram ser um reflexo pavloviano de reprovação das Nações Unidas, seja qual for a situação. O analista Ben Dror Yemini, que defende a criação de um Estado palestiniano, define esta atitude da ONU como obsessiva. O fundador de Israel, David Ben-Gurion, resumiu-a na célebre expressão «Um Shmum!», significando Um em língua hebraica ONU, e sendo Shmum um prefixo que indica ironia, sarcasmo, ceticismo.

Outros israelitas resumem esta problemática da maioria permanente contrária a Israel afirmando: «Se parte dos países da Assembleia Geral das Nações Unidas disser que o planeta é quadrado, obterá de imediato a maioria.»

Os israelitas têm pela frente uma década shakespeariana de «ser ou não ser.» A melhor atitude que podem adotar em relação ao conflito iniciado a 7 de outubro é a da resiliência, unirem-se contra as adversidades que lhes foram criadas: um número de mortes sem precedentes, reféns vivos ou mortos nos túneis do Hamas em Gaza, milhares de feridos cujas vidas mudaram para sempre, 150 mil pessoas desalojadas na consequência dos ataques e um custo económico sem precedentes: o reputado analista económico Sever Plotsker calcula que Israel despendeu na guerra Espadas de Ferro 150 mil milhões de shekels (cerca de 38 mil milhões de euros) até janeiro de 2025, e que cada dia de guerra custa em média 75 milhões de euros.

A isto tudo acrescem os danos provocados pela deslocação da população civil. Pela primeira vez na história de Israel, o território contraiu-se no Norte e no Sul, levando as populações dessas áreas a concentrarem-se na zona Centro do país. Em fevereiro de 2025, 83% dos habitantes retirados das zonas limítrofes de Gaza tinham regressado às suas casas, ainda que muitas delas destruídas, e que pelo menos 13 povoações não estivessem habitáveis.

A norte, na fronteira com o Líbano, quase metade da população retirada, cerca de 47%, regressou e começou a reconstruir as povoações fronteiriças.

Para poder reconstruir o país, Israel necessita nos próximos anos de legitimidade internacional e de manter a sua aliança histórica com os Estados Unidos.

Os desafios que Israel enfrenta têm uma dimensão bíblica.

Depois do 7 de outubro, o país luta por aquilo que alguns definem como sendo a sua segunda Guerra da Independência – a sua refundação, um novo princípio. Israel é a nação mais velha do mundo e simultaneamente uma das mais jovens.

Um jovem soldado israelita de 19 anos foi ferido nos combates em Gaza e percebeu que ia morrer. Mas, em menos de uma hora, foi transportado de helicóptero para o hospital Hadassah, em Jerusalém, e operado de imediato. Quando acordou da anestesia, perguntou ao médico a seu lado se estava vivo. «Sim», respondeu-lhe o cirurgião que o acabara de operar, «mas perdeste as tuas pernas e um braço.» O jovem soldado olhou para ele e disse-lhe: «Só isso? Se a cabeça está bem, tudo vai correr bem.»

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