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Depois de aprovada a lei em março, o PSD e o CDS-PP propuseram alterações contra a introdução do termo "violência obstétrica", argumentando que este não tem sustentação científica e não deve constar em textos legais. A norma foi aprovada em março, com iniciativas do Bloco de Esquerda e do PAN, mas enfrenta agora a oposição dos partidos da direita parlamentar, que encaminharam o Parlamento para a aprovação do debate da lei na especialidade.
Na opinião pública, a reação também gerou alguma discussão. A Associação dos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto foi uma das entidades que se pronunciou sobre a continuidade da utilização do termo, defendendo que se trata "de muito mais do que a palavra ou o termo violência obstétrica, mas do reconhecimento das histórias de mulheres", disse Sara do Vale ao 24notícias, em representação da associação.
Os deputados que propuseram a alteração, tal como os profissionais de medicina, lembram a importância de enquadrar os conceitos no contexto teórico já estudado, enquanto a esquerda reclama a perda de proteção da mulher em situações de negligência.
A Ordem dos Médicos sustenta-se na Organização Mundial da Saúde (OMS) para justificar não reconhecer o conceito, alegando que põe em causa a reputação dos profissionais de saúde, apesar de identificar situações de abuso, desrespeito e maus tratos.
No fundo, a Ordem dos Médicos defende a revogação da lei, pedindo que os médicos sejam ouvidos na sua redação. Declara, ainda, que o uso do conceito é desatualizado, e afastado da realidade europeia. Contudo, de acordo com o relatório Violência Obstétrica e Ginecológica na União Europeia – Prevalência, Quadros Legais e Orientações Educativas para a sua Prevenção e Erradicação, publicado em 2024 pelo Parlamento Europeu, o termo é utilizado.
A definição não é consensual
João Almeida, deputado do CDS-PP, explicou, em entrevista à agência Lusa, citada pelo Observador, que as situações de abuso durante o parto já estão definidas por outros termos técnicos mais precisos, o que não significa que não existam práticas inadequadas em contexto médico. O deputado admite a preservação das medidas de proteção da lei, mas incentiva a remoção do termo "violência obstétrica", sob pena de manter na legislação um erro científico que não tem em conta a opinião de "todas as entidades relevantes".
Os democratas cristãos garantem que consultaram diversas entidades antes de apresentar a proposta, mas não especificam quais. Ainda assim, João Almeida assegura que a preocupação do CDS não é recuar na defesa dos direitos das mulheres, mas evitar que se legisle com base em conceitos ambíguos ou ideologicamente carregados.
Segundo o líder parlamentar do CDS, Paulo Núncio, "a lei é desproporcional, é desajustada da realidade e pode ter efeitos sociais perversos", apesar de considerar “as preocupações com a gravidez relativas ao parto e à recuperação pós-parto perfeitamente legítimas". Acredita ainda que a sua alteração "pode pôr em risco a vida de crianças e de mães, ao sobrepor a validação emocional ao conhecimento médico e científico”, defendeu, em conferência de imprensa.
Já para Sara Vale, a questão não é científica: a posição dos deputados "denota uma falta de reconhecimento de que o problema existe, revelando uma certa falta de sensibilidade, quase como se estas coisas não fossem reconhecidas como graves".
O que é a violência obstétrica?
O relatório de Parlamento Europeu relaciona a violência obstétrica e ginecológica com o abuso psicológico, físico ou sexual durante consultas de ginecologia e obstetrícia, bem como a realização de atos médicos sem o consentimento das mulheres e a realização de procedimentos desnecessários ou sem base científica.
A OMS sugere a identificação com casos de abuso físico, humilhação, agressão verbal, ausência de confidencialidade, dor infligida desnecessariamente e complicações evitáveis como manifestações desse desrespeito.
Em primeira instância, a ativista refere os casos de "intervenções médicas não consentidas, estudantes a vigiar e a fazer o toque sem consentimento, insultos como 'quando estavas a fazer não gritaste' ou 'agora vou dar aqui um cortezinho'", como exemplos de tipos de violência.
No entanto, a Associação dos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto lembra que "a violência não pressupõe apenas dano e dor, às vezes pode haver falta de comunicação ou de facto o sistema não estar a funcionar como deveria". Sara vale explica que "a violência obstétrica também assume um caráter institucional: a maternidade de portas fechadas, as falhas da linha SNS Grávida, senhoras sem consultas, nem exames".
"Os relatos de violência obstétrica que recebemos provam a necessidade do conceito", defende.
O Observatório de Violência Obstetrícia (OVO) corrobora este argumento, em comunicado: "Sabemos que incomoda muitos profissionais de saúde, no entanto vários reconhecem que o que se passa neste preciso momento, é uma violência obstétrica coletiva, sistémica, estrutural e institucional que também os atinge. E que é necessário nomeá-la para a combater, e também porque as palavras importam".
Enquanto os deputados argumentam que o conceito "violência" é desajustado, o OVO reforça que revogar a lei significaria "ignorar evidência científica, recomendações internacionais e, acima de tudo, os testemunhos de quem viveu na pele a violência durante o momento mais vulnerável da sua vida".
Sara do Vale acredita que a diferença entre as duas posições nesta discussão é resultado do facto de "sempre que os grupos oprimidos manifestam uma opressão, a primeira reação das pessoas é dizer: 'Não, isso não acontece'". O problema é maior quando "tem a ver com a formação dos nossos profissionais, com a reciclagem do velho 'nós sempre fizemos assim', o que revela uma grande falta de tomada de consciência e compaixão".
"Talvez para um profissional seja apenas mais um turno, mas aquela mulher vai-se lembrar do parto a vida toda", sublinha.
O que diz a lei?
A lei implica a possibilidade de penalização em casos de violência, tanto para a instituição quanto para o profissional de saúde. Ou seja, quando se consegue provar cientificamente que foram realizadas cirurgias — como episiotomias — sem necessidade médica.
A episiotomia é um procedimento médico realizado durante o parto vaginal, que consiste num corte cirúrgico no períneo (a região entre a vagina e o ânus) para alargar o canal de parto e facilitar a saída do bebé. Não é recomendado pelos profissionais, que devem recorrer ao procedimento apenas em situações de urgência.
O documento sugere, ainda, a criação de uma comissão multidisciplinar para os direitos na gravidez e no parto, para redação de um relatório e realização de campanhas de sensibilização.
Sara do Vale lembra que "há muitos profissionais de saúde e instituições hospitalares que trabalham de forma diferente, com humanidade, humanização, evidência científica", considerando, por isso, que o problema não é uma questão de classe, ou de semântica, mas uma manifestação da vontade das mulheres alinhada com a defesa dos seus direitos.
No comunicado, a OVO defende que "qualquer alteração à atual legislação deve ser no sentido de melhorar, aprofundar e consolidar os direitos já conquistados, e não de os anular".
"A lei não está perfeita, pode ser melhorada", acrescenta Sara do Vale, "mas dá-nos um caminho para esse melhoramento e é preciso que as ordens profissionais possam estar na mesa deste debate precisamente para a melhorar". A associação defende a auscultação dos profissionais de saúde, em prol, em última instância, da precisão da redação da lei de acordo com as necessidades das pacientes.
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