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Se fizermos uma pesquisa no site da Câmara de Matosinhos ainda encontramos informação sobre candidaturas ao Fundo de Transição Justa de Matosinhos, parte do Programa Norte 2030. Este fundo tem como objetivo apoiar investimentos que ajudem a diversificar, modernizar ou reconverter a economia local e a criar novos serviços empresariais afetados pelo encerramento da refinaria de Matosinhos. As candidaturas estiveram abertas até 21 de junho de 2024 e ajudaram a mudar a vida de muitos dos trabalhadores que se viram sem trabalho.
Tudo começou em dezembro de 2020, altura em que a Galp anunciou a suspensão definitiva das operações de refinação em Matosinhos. A empresa justificou a decisão com a quebra estrutural no consumo de combustíveis, os efeitos prolongados da pandemia de covid-19 e as exigências regulatórias europeias no quadro da transição energética. Ao concentrar toda a atividade em Sines, a Galp estimava reduzir custos fixos em mais de 90 milhões de euros anuais e cortar 900 mil toneladas de emissões de CO₂.
Contudo, o anúncio caiu como uma bomba na região. Sindicatos alertaram de imediato para o impacto em cerca de 1.500 postos de trabalho diretos e indiretos, e a Câmara Municipal de Matosinhos, liderada por Luísa Salgueiro, exigiu alternativas concretas. O Governo prometeu acionar os mecanismos do Fundo para uma Transição Justa da União Europeia para apoiar trabalhadores e a reconversão económica, mas admitiu desde logo que seria um processo longo.
Ciente das consequências, a Câmara de Matosinhos explica ao 24notícias que logo após o encerramento, criou o Gabinete para uma Transição Justa (GTJ), ativo até à execução integral do Plano Territorial para uma Transição Justa, que prestou apoio social, psicológico e de requalificação a ex-trabalhadores, tendo recebido espontaneamente 106 inscrições. Posteriormente, em outubro de 2024, um inquérito a 68 ex-funcionários revelou que 78% já tinham assinado contratos de trabalho por conta de outrem. Entre os restantes, metade encontrava-se em situação de desemprego e a outra metade estava empregado por conta própria ou em vínculos precários. Ricardo Pinto, coordenador técnico na refinaria durante 18 anos, confirma o processo longo avisado por Luísa Salgueiro. A notícia do fecho chegou-lhe, como a tantos outros, pela comunicação social. “Soube que a refinaria ia fechar através de uma notícia que saiu, em dezembro de 2020”, recorda. “Soubemos logo ali que não ia ser um processo fácil. Não sabíamos ainda se íamos ser despedidos, nem quem iria ser, nem quais seriam os critérios.”
Hugo Santos, técnico de produção durante 23 anos, também não esquece o impacto desse momento. “Ser desempregado aos 46 anos é muito forte. Está-se no mercado de trabalho novamente, sem capacitação fora da petroquímica, e muito desadaptados, muito sinceramente. Em termos sociais, psicológicos e familiares é muito complicado. Houve colegas que tiveram de mudar de casa, reajustar o nível de vida, outros até se divorciaram.”
Um ano depois, em 2021, o encerramento tornou-se realidade. Durante meses, a Galp chamou os 401 trabalhadores da refinaria para reuniões individuais, tentando chegar a rescisões por mútuo acordo. Pouco depois, cerca de 100 trabalhadores foram alvo de um despedimento coletivo; outros conseguiram transferências internas para o complexo de Sines ou para áreas de logística. A maioria, no entanto, ficou sem solução. Segundo dados fornecidos pela autarquia ao 24notícias, o encerramento da refinaria teve consequências significativas no concelho e na região, embora remeta a informação sobre o número exato de trabalhadores desempregados dependa sobretudo da Galp, da Segurança Social e do IEFP. A Câmara explica que muitos dos trabalhadores não eram residentes em Matosinhos, o que limita a sua capacidade de recolher dados formais. Ainda assim, os valores públicos apontavam para cerca de 400 trabalhadores diretamente ligados à refinaria, dos quais 100 foram dispensados em maio de 2021, através de despedimento coletivo. Parte dos restantes chegou a acordo ou foi reintegrada noutras funções dentro do grupo.
Ricardo Pinto estava entre os dispensados. “Foi-nos comunicado, mais ou menos em abril, quem iria ser dispensado. E eu estava nessa lista.” A partir daí, começou o dilema: como recomeçar uma carreira do zero aos 40 anos, com responsabilidades familiares e financeiras?
Hugo também enfrentou essa incerteza. Partilha com o 24notícias que tentou tirar a carta de pesados e procurou alternativas, mas sem sucesso no acesso ao fundo: “Candidatei-me a maquinista ferroviário e fiquei inapto. Tirei carta de pesados, o meu irmão tirou um curso de turismo, mas como fomos rápidos e concluímos antes de o fundo arrancar, disseram-nos que não tínhamos direito ao apoio. A explicação foi clara: como tiveram iniciativa própria, o fundo entende que não precisam.”
As formações, inicialmente propostas pelo IEFP, não ofereciam garantias. “Percebemos logo que não havia nada preparado para nós. E seríamos pessoas com 40, 50 anos, com famílias e responsabilidades financeiras, a ter de começar uma carreira do zero. Não podia ser por ali”, lembra Ricardo. Em grupo, começaram a procurar alternativas mais sólidas. E o curso de maquinista, financiado pelo Fundo para uma Transição Justa, pareceu-lhes muito atrativo.
A Câmara esclarece que entre as oportunidades criadas por este fundo se contam formações de maquinista ferroviário, técnico de manutenção e operação ferroviária, cursos modulares em eletricidade, metalurgia e transportes, bem como percursos em energias renováveis e empreendedorismo. Acrescenta que ex-trabalhadores puderam ainda escolher formações à sua medida, até ao limite de 15 mil euros financiados. E é exatamente nessa vertente que surge o curso de maquinista ferroviário realizado pela Fernave, que permitiu a 15 antigos trabalhadores da refinaria requalificarem-se nesta área.
Transição Justa
Em dezembro de 2022 começam a chegar os primeiros sinais concretos da prometida transição justa. Com a Comissão Europeia a aprovar 223,8 milhões de euros para Portugal, destinados a compensar o impacto da descarbonização no Alentejo Litoral, no Médio Tejo e em Matosinhos. Para a região do Porto, o plano previa 60 milhões de euros, orientados para a criação de um polo de inovação em mobilidade sustentável, energia verde e economia do mar. As projeções incluíam 150 novos empregos e a requalificação de 170 desempregados de longa duração.
No caso de Ricardo, foi graças a este fundo que o curso de maquinista se concretizou. Hugo, no entanto, não teve a mesma sorte. Mesmo tendo estado envolvido diretamente nas negociações entre a Câmara e o IEFP, critica a ineficácia. “Encabeçámos quatro ou cinco opções para as pessoas: curso de maquinista ferroviário, empreendedorismo, formação à medida, uma bolsa de empresas e apoio ao rendimento perdido. Dessas cinco, só duas avançaram, e de forma muito limitada. Nunca houve bolsa de empresas, e a maioria ficou de fora.”
Com fado diferente, ao longo de nove meses, Ricardo pôde tirar um curso que custou milhares de euros e foi integralmente financiado por Bruxelas. Mas o diploma não bastava: “A carta de maquinista, só por si, não serve de nada" e, assim foi um dos quatro de 14 formandos que conseguiu logo um contrato com a CP. Ressalva ao 24notícias que o processo não foi simples, nem linear: “Para fazer o curso tive de me despedir. Quando acabei o curso, fiquei desempregado, sem direito a qualquer tipo de rendimento.” A aposta era arriscada, mas havia um dado que pesava: “Há muita falta de maquinistas. Não há maquinistas desempregados. Foi por isso que arriscámos.”
A mudança da vida de Ricardo segue em linha com as mudanças na refinaria. Em Matosinhos, em 2023, começaram as operações de desmantelamento da refinaria, um processo de demolição e descontaminação que se prolongará até 2026. Ao mesmo tempo, surgiram os primeiros programas locais de apoio, financiados pelo Fundo para uma Transição Justa, destinados a microempresas e PME. Mas nas sessões de esclarecimento organizadas em Matosinhos e, ao contrário de Ricardo que já se encontrava a fazer o curso de maquinista, alguns ex-trabalhadores iam relantado desilusão pela falta de aplicabilidade dos fundos.
Hugo reforça a crítica de então, “o IEFP tem regras feitas para empregos comuns. Nós trabalhávamos numa indústria altamente especializada. As formações à medida não servem cá fora para nada. Depois entrou a CCDR, já em 2022, mas também com muita burocracia. Tudo isto foi uma teia burocrática.”
Muitos dos que procuraram cursos de reconversão encontraram formações demoradas, mal adaptadas ao mercado e sem garantia de emprego no final. Ricardo conseguiu entrar na CP, mas confirma que o caminho foi exigente. “Grande parte deste ano foi a tirar formações, porque temos de aprender máquinas diferentes, disciplinas diferentes. Mas quem já entrou está contente e acredito que quem vai entrar também ficará.” Ainda assim, admite que a mudança teve custos: “Financeiramente não há comparação com aquilo que ganhava na refinaria. Mas o mais importante nem era essa parte. O que procurámos foi estabilidade profissional.” Aos 40 anos, conseguiu recomeçar, mas reconhece que colegas com mais de 50 anos continuam sem conseguir trabalho.
Hugo e Ricardo falaram com o 24notícias em momentos diferentes, mas o discurso toca os mesmos pontos ainda que com visões diferentes. E Hugo, agora com 50 anos, confirma a realidade descrita por Ricardo. “Na petroquímica ganhava dois mil euros por mês, tinha carreira, plano de evolução, um estatuto de profissional diferenciado. Agora tenho um trabalho que não me garante mil euros. Apesar de qualificado, não tenho respostas. Candidatei-me a muita coisa e as respostas são zero. Isto não é fundo de transição nenhuma.”
Em 2024, a Câmara Municipal lançou concursos para financiar até 65% de investimentos de pequenas empresas. O IEFP disponibilizou programas de requalificação, mas demorou a arrancar com turmas. Ricardo sublinha, exatamente, que, no essencial, apenas quatro medidas foram implementadas através do fundo: o curso de maquinista, apoios a empreendedores, algumas candidaturas em curso e o chamado “cheque-formação”. Este último acabou por gerar frustração, aquela que já ouvimos de Hugo e que Ricardo confirma. “Muitas pessoas já tinham investido do próprio bolso em formações antes de a medida existir, e não foram ressarcidas. Acho que devia ter havido retroatividade.”
Hugo mantém alguma esperança de uma compensação pela perda salarial, também prevista no fundo, embora resignado: “A esperança temos sempre, mas já passaram quatro anos e, sinceramente, não acredito. Mesmo que me possam dar alguma compensação, não era isto. 70% ou 80% das pessoas ficaram entregues à sua sorte.”
Para o ex-funcionário da refinaria de Matosinhos, a grande falha foi não ter havido mais percursos com garantias reais de estabilidade: “Acreditávamos que o fundo devia servir para cursos que dessem alguma segurança no futuro, como o dos maquinistas. Não foi isso que aconteceu. Para quem não entrou nessa solução, não houve alternativa parecida.”
Hugo tentou alertar as autoridades para a situação, mas sem sucesso: “Mandei cartas a António Costa, a Augusto Santos Silva, ao Presidente da República. Responderam com aquelas respostas diplomáticas, de que a situação estava em análise. Fizemos de tudo para salientar a questão, mas não tivemos visibilidade. A comunicação social também não nos deu espaço. No fim, o fundo foi bom para os poucos que se tornaram maquinistas ou empreendedores. Para os outros, foi nada.”
Exemplo europeu
O caso de Matosinhos é paradigmático e ilustra as conclusões do projeto BOLSTER, coordenado pela Tilburg University, que em 2025 avaliou o impacto da transição energética em várias regiões. O estudo concluiu que os Planos de Transição Justa falham em incluir comunidades vulneráveis e que, em muitos territórios, a população não compreende o que significa “transição justa”. Em Matosinhos, junto dos ex-trabalhadores que falaram com o 24notícias essa perceção é crua.
O BOLSTER, financiado pela União Europeia, também desenvolveu projetos comunitários em sete regiões – Bélgica, Bulgária, Croácia, Alemanha, Espanha, Polónia e Roménia – que envolveram diretamente comunidades locais em atividades como jardins comunitários, festivais, oficinas ambientais, microprojetos sociais e programas de eficiência energética. Estes exemplos mostraram como a co-criação com cidadãos, especialmente grupos vulneráveis, pode gerar soluções sustentáveis e inclusivas. Jardins, mercados solidários e projetos educativos deixaram legados concretos e reforçaram a coesão social, funcionando como referência para o que poderia ter sido feito em Matosinhos de forma mais alargada.
Relativamente ao Fundo para uma Transição Justa, Portugal recebeu 223,8 milhões de euros, dos quais 60 milhões foram destinados a Matosinhos. Desse valor, 6,5 milhões foram reservados a medidas de apoio à adaptação dos trabalhadores, empresas e empresários, e 20 milhões ao projeto de transporte público BRT (Bus Rapid Transit). O fundo prevê ainda incentivos à colocação no mercado de trabalho, apoio extraordinário ao empreendedorismo e financiamento a fundo perdido para remunerações e investimento em novos negócios.
O ex ministro do Ambiente, Duarte Cordeiro, foi também um dos críticos da aplicabilidade dos fundos e chegou defender que o processo poderia ter sido mais equilibrado, a Câmara sublinha que o encerramento foi uma decisão unilateral da Galp. Ainda assim, reconhece que teria sido possível e justo integrar mais trabalhadores noutras unidades da empresa, aproveitando a sua elevada especialização. Ao 24notícias, sublinha também que, desde o primeiro momento, defendeu medidas concretas para mitigar os impactos sociais e económicos, mobilizando todos os meios disponíveis para proteger os trabalhadores, as suas famílias e a economia local.
Ricardo Pinto partilha da visão optimista e prefere olhar para o lado positivo. “Não me arrependo. Fico muito contente que tenha dado frutos e dado a oportunidade desta reconversão, que embora tenha sido forçada, não deixa de ser importante.” Reconhece visões diferentes entre colegas, alguns mais críticos, outros mais conformados. Independentemente do resultado reforça a ideia que “um despedimento é brutal em termos anímicos, de saúde, de dinâmicas familiares. A única coisa que posso dizer é: não baixar os braços. Participar ativamente na construção do nosso futuro. Não deixar para os outros aquilo que é o nosso futuro.”
A autarquia recorda que as estimativas iniciais apontavam para cerca de mil postos de trabalho afetados, diretos e indiretos. E refere um estudo encomendado à Faculdade de Economia da Universidade do Porto que concluiu que o encerramento representou perdas anuais de 222 milhões de euros na riqueza produzida em Matosinhos e que o impacto no emprego poderia alcançar 1.600 postos de trabalho. Apesar disso, a evolução recente demonstra alguma resiliência do tecido económico: entre 2021 e 2023, o volume de negócios das empresas do concelho cresceu de 12,8 mil milhões para 15,8 mil milhões de euros, o Valor Acrescentado Bruto subiu de 3,3 mil milhões para 3,7 mil milhões e o número de pessoas ao serviço aumentou de 114 mil para 119 mil.
O Fundo para a transição justa teve a capacidade de tornar o encerramento da refinaria de Matosinhos um ponto de viragem para muitos. O luto pelos empregos perdidos transformou-se na esperança de uma economia mais diversificada e sustentável, mostrando que, com apoio estratégico e investimento certo, crises profundas podem ser transformadas em oportunidades duradouras. Contudo, é também um exemplo prático das recomendações do projeto BOLSTER e da necessidade de maior envolvimento local, maior eficácia no financiamento e apoio a comunidades.
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