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O caminho até ao Bairro do Talude, em Loures, é de terra batida e vegetação. Até chegar à zona residencial, não há nenhum vestígio de vida humana. Um lugar aparentemente desabitado, nos arredores de Lisboa, parece já não pertencer a Portugal.

Angelina, de 62 anos, veio para Portugal sem os filhos. Construiu a sua própria casa na Estrada Militar, dentro do bairro, por não poder pagar a renda de um quarto na capital. Aqui, as pessoas vivem em casas de lata, sem saneamento e luz. E agora, sem teto.

Na segunda-feira, a barraca de Angelina foi demolida. Hoje de manhã foi trabalhar, depois de dormir em casa de uma vizinha, e voltou para o bairro, sem saber o que ia encontrar. "Disseram-me para tirar as coisas e mandaram tudo abaixo", disse ao 24notícias.

Outra moradora do bairro, que não se quis identificar, também perdeu a casa na segunda-feira. A jovem, sem filhos, conseguiu guardar o que lhe pertencia, mas reconheceu que nem sabe o que fazer às coisas, pois não tem para onde ir. Sentada numa cadeira, à sombra, confessou ao 24notícias: "Não sei onde vou dormir, talvez aqui mesmo, na rua. Têm dormido todos aqui".

48 horas depois passaram a viver na rua

Entidades públicas e associações que prestam apoio direto a moradores em risco de despejo ou com dificuldades de acesso à habitação:

Porta a Porta – Apoio Comunitário e Legal

  • Email: portaportalisboa@gmail.com
  • Instagram: @portaaportalisboa

Vida Justa – Justiça Habitacional e Ambiental

  • Email: vidajustapt@gmail.com
  • Instagram: @vida.justapt

Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU)

  • Telefone: 808 100 065 (chamada local)
  • Email: atendimento@ihru.pt
  • Site: www.ihru.pt

Linha Nacional de Emergência Social (LNES)

  • Telefone (24h): 144 (gratuito)

Provedoria de Justiça

Ordem dos Advogados – Apoio Jurídico Gratuito

  • Telefone: 213 246 470
  • Site: www.oa.pt → Secção “Apoio Judiciário”

Stop Despejos

Associação Solidariedade Imigrante

  • Telefone: 21 887 62 70
  • Email: solidariedadeimigrante@gmail.com
  • Site: solimigrante.org

Associação CASA (Centro de Apoio ao Sem Abrigo)

Just a Change – Combate à Pobreza Habitacional

De forma a pôr fim às construções ilegais que vão crescendo neste terreno, a Câmara Municipal de Loures iniciou uma operação de demolição de habitações, 56 das quais ocupadas por 103 adultos e 58 menores. Em nove casos, não foi possível recolher a identificação das famílias, algumas por estarem fora do país, referem, num comunicado enviado à comunicação social.

Para notificar os moradores, foi lançando "um edital com as 48 horas que a lei obriga" para as pessoas abandonarem as suas casas, explicou a vereadora Paula Magalhães, em entrevista à TSF.

De facto, o aviso chegou na sexta feira, dia 11, durante a tarde, contaram os moradores ao 24notícias. O que a Câmara não refere é que as pessoas tiveram apenas o fim-de-semana para encontrar uma solução, sem conseguir contactar os serviços judiciais.

Segundo a vereadora, o tempo dado pela autarquia foi suficiente para os moradores poderem retirar os seus pertences das barracas, "que era o objetivo da notificação". Segunda de manhã, as escavadoras entraram no bairro "para deitar tudo abaixo", contou Angelina ao 24notícias.

Esta terça, o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa decretou que a Câmara Municipal de Loures fica “impedida de executar o ato de demolição” de habitações no Bairro do Talude Militar, exigência a que a autarquia assentiu, segundo confirma em comunicado.

As máquinas de demolição "vieram na manhã [de terça]", mas não voltaram de tarde, declarou Angelina.

Os moradores têm grupos de mensagens que utilizam para partilhar informação. Foi através de um desses grupos que Angelina soube que o tribunal teria dado a ordem de parar as demolições, mas confessou não saber se era verdade.

"Da Câmara não apareceu ninguém, eles só vêm cá para destruir".

Se não forem a bem, vão à força

No local, as pessoas estão visivelmente cansadas e desmotivadas. Algumas emocionam-se quando lhes dizem para ter força e não perder a esperança. A observar o lugar destruído, a sensação de desespero e desamparo corrói o silêncio. Muitos não querem falar com jornalistas, dizem estar "fartos" da situação.

No primeiro dia de demolições, a polícia obrigou toda a gente a abandonar as casas e o local. Alguns moradores sentaram-se em cima das pedras e recusaram sair. Segundo a Lusa, citada pelo Observador, agentes da Equipa de Intervenção Rápida da PSP intervieram com bastões para afastar os residentes e uma pessoa foi arrastada pelo chão.

A vereadora da Câmara de Loures responsável pela Polícia Municipal, Paula Magalhães, considerou que "é mais do que óbvio" ter polícias armados no local, de forma a garantir a segurança "dos operacionais que estão a trabalhar" e "dos bens do município".

Além de se deitarem no chão, homens, mulheres e crianças gritavam por "outra solução" e exigiam uma reunião com a Câmara, descreveu a Lusa. Em relação ao facto de nunca ter havido uma reunião com os moradores, mesmo antes do início da operação, Paula Magalhães disse "não ter havido necessidade".

Aos jornalistas, o candidato da CDU à Câmara de Loures, Gonçalo Caroço, incomodado com o cenário que o rodeia, declarou que "o executivo do Partido Socialista perdeu a humanidade".

"Não há resposta", e agora?

Angelina confirmou ao 24notícias o que já teria sido dito por outros moradores: "Não temos uma resposta. Nunca ninguém vem cá".

Com o preço das rendas em Lisboa a inflacionar cada vez mais, as pessoas admitem ter muita dificuldade em arranjar uma alternativa. Durante a demolição, a Lusa disse haver pessoas a guardar tábuas de madeira e metal para mais tarde reconstruir as casas noutro sítio.

"Sem uma resolução, vamos assistir à proliferação disto por todo o lado. As pessoas vão fazer o mesmo para outro sítio", referiu o candidato da CDU. E acrescentou: "isto é um problema social e habitacional, como aconteceu noutros sítios, é obrigatório acionarem respostas".

Em comunicado, a Câmara de Loures defendeu que, "apesar de reconhecer os desafios que o país enfrenta em matéria de habitação, a Câmara Municipal de Loures não pode, nem aceitará, que se consolide a perceção de que a construção de habitações precárias é uma resposta legítima a esse problema". E avança que não vai permitir que "a edificação ilegal de barracas represente uma via automática para a atribuição de habitação pública".

Para o antigo vereador comunista da Câmara de Loures com a pasta da Ação Social, o problema reside no facto de terem sido retiradas as casas sem uma alternativa, deixando as pessoas a dormir na rua. Lembrou outro caso de um bairro auto-construído nas Marinhas do Tejo, em Santa Iria de Azoira: "Não tirámos pessoas sem as avisar primeiro e ter uma solução. Ainda não foi possível arranjar casa para todos e, por isso, continuam com as barracas".

Foi acionado o programa do governo "Porta de Entrada" neste bairro, aplicado em situações de necessidade de alojamento urgente, ainda em resolução. "O mesmo deveria ter sido feito aqui", defendeu, "sem antes destruir as casas das pessoas".

André Escoval, do movimento Porta a Porta, notou que, uma vez que não é viável manter as barracas, é urgente retirar as pessoas das condições de "insalubridade, insegurança e injustiça social em que vivem". A associação responsabiliza o Estado e a Câmara Municipal, exigindo que "intervenham já, para encontrar soluções dignas para estas pessoas".

"É necessário acionar programas de habitação para encontrar alojamento com qualidade. Não podemos permitir que famílias inteiras, trabalhadores que põem o nosso país a funcionar, crianças que deixam de ir à escola, pessoas idosas com graves problemas de saúde, fiquem mais uma noite neste espaço sem o mínimo de condições para o fazer", termina, sublinhando a dimensão nunca antes vista desta demolição.

Segundo Paula Magalhães, as pessoas devem-se deslocar aos serviços de Ação Social da Câmara e aguardar ajuda.

A autarquia, em comunicado, avançou que 24 moradores se deslocaram aos serviços sociais - uma foi encaminhada para um centro de acolhimento e duas foram para uma unidade hoteleira. "Foi também prestado apoio alimentar e apresentada a possibilidade de a Câmara assegurar o pagamento de um mês de caução e outro de renda, como apoio ao arrendamento no mercado habitacional", lê-se.

Já Angelina diz ao 24notícias não ter conhecimento de nenhuma opção, nem ter sido abordada durante o processo.

A Câmara de Loures está em incumprimento da Lei

As demolições aconteceram sem que a autarquia assegurasse um espaço para albergar os moradores despejados. A vereadora, justificando-se com a lei, argumentou, em entrevista à TSF, que não é responsabilidade da Câmara fazê-lo, inclusive uma vez que "43% dos agregados" que ali vivem "não são do concelho de Loures", algumas chegaram ao bairro autoconstruído vindas "diretamente do aeroporto".

O Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação (RJUE) e a legislação sobre habitação e direitos fundamentais diz que, mesmo que o edifício seja ilegal, os ocupantes têm direito à contestação e justificação, especialmente se não têm alternativa habitacional. Além disso, o princípio da proporcionalidade e da dignidade refere que a atuação das autoridades tem de ser proporcional e respeitar a dignidade humana (art. 1.º da Constituição).

O simples facto de a construção ser ilegal não justifica automaticamente o despejo forçado, sem considerar as condições sociais dos ocupantes. Por isso, despejos em massa sem alternativa de habitação podem ser considerados ilegais ou inconstitucionais.

O movimento Vida Justa acrescenta, ainda, num comunicado publicado nas redes sociais, que muitas das pessoas afetadas dependem da estabilidade da sua habitação para manter a sua atividade profissional.

A somar à "falta de humanidade" da operação, André Escoval, da associação Porta a Porta, lembra, em entrevista ao 24notícias, que o direito à habitação consagrado na constituição obriga o Estado a encontrar soluções dignas sempre que estejam em causa habitações principais de famílias vulneráveis. Lamenta, ainda, a falta de apoio público à condição de urgência dos moradores do Bairro do Talude.

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A autarquia negou todas as acusações em comunicado, garantindo que o executivo tem conhecimento e está a agir de acordo com a lei.

As associações lembram ainda que a Câmara terá abandonado a Estratégia Local de Habitação, que previa a construção de 850 moradias. Está prevista a aquisição de 250 casa, ao abrigo do PRR, mas ainda não foi concretizada.

Depois de falar com os moradores e deixar uma mensagem de apoio, Gonçalo Caroço comentou que a decisão é um reflexo da vontade de Ricardo Leão, atual presidente da Câmara de Loures, de "mostrar um pulso forte, de ferro, para com os fracos".