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POSSUÍDAS E POLUIDORAS

Em Paris, em 1405, Christine de Pizan, a única mulher profissional das letras de França, decidiu que estava farta das «coisas horríveis e condenatórias» que os homens escreviam sobre as mulheres e os seus corpos. De Pizan era respeitada e bem-sucedida. Era escritora na corte do rei Carlos VI e tinha composto baladas e poemas para os membros da família real francesa. Era ainda uma historiadora respeitada, pensadora política inteligente e visionária feminista. Tendo passado a sua vida a estudar os contributos das mulheres para todos os ramos da atividade humana, sentia-se verdadeiramente infeliz com as formas como a «natureza feminina» surgia representada como defeituosa e disfuncional por filósofos, poetas e oradores do sexo masculino. Assim, escreveu A Cidade das Mulheres, um fórum imaginário em que santas e profetisas, escribas, poetisas, inventoras, artistas e guerreiras eram resgatadas do refugo da História e celebradas e defendidas nos seus próprios termos.

No início de A Cidade das Mulheres, Christine de Pizan explica que o sexo feminino foi deixado desprotegido durante demasiado tempo, «como um pomar sem muro». É mais do que tempo de a natureza das mulheres ser protegida e defendida, sobretudo de certos autores do sexo masculino que condenam os seus corpos como depravados e corruptos. Um desses ofensores era Francesco degli Stabili, conhecido como Cecco d’Ascoli, famigerado físico misógino, poeta e astrólogo italiano do século XIII. Cecco d’Ascoli escreveu poemas enciclopédicos sobre os céus e a terra com versos memoráveis como «Os corpos das mulheres são inferiores aos dos homens/ Menstruam todos os meses porque/ São por natureza seres imperfeitos» e «Uma mulher tem menos fé do que um animal selvagem/ Orgulhosa, gananciosa, estúpida, louca e alheada/ Um veneno que infeta o coração do corpo». Quando Christine de Pizan escreveu o seu livro, Cecco d’Ascoli tinha sido queimado vivo como herege por ler o horóscopo de Jesus Cristo. De Pizan opinou que «teve o que merecia».

Ângelo Fernandes junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 25 de setembro, uma quinta-feirapelas 21h00. Consigo traz "Neblina", o seu mais recente livro, publicado pela Oficina do Livro.

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Neste que é o seu primeiro romance, Ângelo Fernandes, vencedor em 2004 do Prémio Nacional de Escrita Para Teatro e fundador da associação Quebrar o Silêncio, traz uma história crua e perturbadora sobre as sombras que nos habitam e o preço atroz de enterrar uma verdade que, após três décadas, finalmente se recusa a ficar calada.

As crenças de Cecco d’Ascoli sobre os corpos das mulheres não eram invulgares nem novas. Os físicos e filósofos naturais medievais defendiam a «sabedoria» de que a biologia feminina era universalmente fraca e inferior, em virtude da sua diferença em relação ao ideal masculino. Na época em que de Pizan escrevia, contudo, em finais da Idade Média, os homens da medicina começavam a dar um novo ângulo aos ensinamentos antigos. Todas as mulheres humanas eram filhas de Eva, que tinham de suportar o castigo de Deus submetendo-se aos seus maridos e sofrendo as dores do parto. De Pizan era uma cristã devota. No início de A Cidade das Mulheres, perguntava como podia o Deus em quem confiava ter cometido um erro tão hediondo ao permitir a criação das mulheres. Porém, o problema, sabia, não estava em Deus, mas nos homens mortais que manipulavam os mitos seminais do cristianismo para justificar a subjugação das mulheres pela sociedade.

Para Christine de Pizan, um dos exemplos mais ofensivos de misoginia pseudo-médica era um «livrinho em latim» chamado De Secretis Mulierum (Dos Segredos das Mulheres), que «afirma que o corpo feminino é intrinsecamente imperfeito e defeituoso em muitas das suas funções». Dos Segredos das Mulheres era um tratado popular escrito por um seguidor desconhecido do bispo e frade católico alemão Alberto Magno – também conhecido como Santo Alberto, o Grande – algures entre finais do século XIII e inícios do século XIV. Este autor, referido como «pseudo-Alberto», escreveu o seu tratado ao estilo e na tradição de um «livro de segredos», uma espécie de guia prático, popular durante a Idade Média, que explicava os mistérios da vida a muitos públicos diferentes, de proprietários a estudiosos, de sacerdotes a físicos. E, no século XIII, o mistério mais desconcertante e essencial da vida – como eram feitos os bebés – estava escondido num lugar envolto em vergonha e superstição: o corpo feminino. Supostamente, Dos Segredos das Mulheres destinava-se a instruir o clero em questões de fertilidade, conceção e gravidez sem medo de sujar as mãos. Mas era também uma forma de consagrar crenças pejorativas sobre as mulheres e os seus corpos, estabelecidas quase 2000 anos antes, num novo regime de conhecimento médico profissional – e religioso.

O autor de Dos Segredos das Mulheres regozijava-se com a ideia de que a menstruação significava que todas as mulheres eram frágeis, infiéis e imperfeitas. Julgava estar a prestar um grande serviço ao revelar a verdade sórdida e sensacional sobre o que se passava nos mais escuros recessos do corpo feminino. E tinha um público muito específico em mente: monges e sacerdotes celibatários. «Meu querido companheiro e amigo em Cristo», começa ele. «Visto que me pediste para trazer à luz certos segredos ocultos sobre a natureza das mulheres, decidi empreender a tarefa de compor este breve e resumido tratado. Fi-lo apesar da fragilidade juvenil da minha mente, que tende a sentir-se atraída pelas coisas frívolas.»

Após esta humilde gabarolice introdutória, o autor vai diretamente ao cerne da questão. As mulheres são monstruosas. As suas «enfermidades» levam-nas a fazer coisas pecaminosas. Pois a menstruação é a raiz de todos os males femininos. Quando uma mulher está menstruada, pode envenenar animais com um olhar; infetar crianças no berço; sujar o mais limpo dos espelhos com o seu vil reflexo; e transmitir a lepra e cancros aos homens. É muito importante que os sacerdotes entendam estas coisas, pois «o mal não pode ser evitado a não ser que seja conhecido». Se uma mulher «enferma» confessasse algum pecado carnal, o seu padre tinha de saber exatamente que processo físico a levara a cometê-lo para lhe poder dar a devida penitência. Dos Segredos das Mulheres não se destinava a ajudar as mulheres a compreenderem os seus corpos; era um guia acerca de como as castigar.

Dos Segredos das Mulheres cobria todas as bases: como os embriões são gerados, ajudas e entraves à conceção, como é formado o esperma, como saber se ela é realmente virgem, úteros errantes, sufocação uterina, a formação do feto através de influências celestes, incluindo a posição dos planetas, conceção divina e porque nascem os monstros. Não se tratava seguramente de um manual de obstetrícia. Mas, sob a absurdidade das revelações do autor – baseadas inteiramente em mitos punitivos, não na ciência médica –, são feitas inúmeras acusações sinistras sobre os depravados órgãos femininos e a sua influência diabólica no carácter e temperamento das mulheres. São as mulheres as culpadas de todas as infertilidades, abortos espontâneos e malformações congénitas. E a execrabilidade dos seus corpos leva-as também a cometer atos imorais do tipo mais grave. Quando menstruadas, as mulheres tornam-se tão vingativas para com os homens que procuram as formas mais criativas de lhes causar dano. Consumida pela luxúria e pela astúcia, uma mulher a sangrar aliciará um homem a fazer sexo; mas, sem que ele saiba, terá introduzido pedaços de ferro na sua vagina para lhe ferir mortalmente o pénis. E a imaginação impressionável das mulheres significa que não são suficientemente fortes para resistir às imagens malignas que lhes acorrem à mente durante o sexo. Se uma mulher imaginar um monstro, causará hediondas e monstruosas deformidades no seu filho por nascer. Durante a gravidez, os apetites de algumas mulheres tornam-se tão peculiares que exigem certos alimentos e, se lhes forem recusados, entram em greve de fome e abortam o bebé. Nesta história em particular, acontece o alimento em causa ser uma maçã – o petisco de eleição de Eva.

Nada em Dos Segredos das Mulheres, exceto o ocasional rumor ou patranha em segunda mão, vem da experiência do autor com as mulheres ou os seus corpos. Nem tem qualquer relação com o testemunho das próprias mulheres. Todos os seus «segredos» foram extraídos dos escritos dos pais da medicina da era clássica, sobretudo Aristóteles e Hipócrates, e extrapolados através da teologia católica e de ideias astronómicas. Dos Segredos das Mulheres foi escrito por um homem para um público de homens: homens que tinham jurado nunca ter contacto íntimo com o corpo de uma mulher, quanto mais aprender como era realmente viver dentro de um.

Christine de Pizan chamou a atenção para uma passagem em particular onde o autor alega que «um dos papas excomungava qualquer homem encontrado a ler o livro em voz alta a uma mulher ou a dar-lho para ler por si mesma». Era por esta razão que de Pizan desprezava tanto Dos Segredos das Mulheres. Era um texto que não só criava mistificações sobre as mulheres e os seus corpos como espalhava ficções cruéis e mentiras excitantes que as mulheres não tinham meios nem forma de contestar. «Não devíeis precisar de mais provas do que as do vosso próprio corpo para entender que este livro é uma completa invenção», escreveu de Pizan. «Qualquer mulher que o leia pode ver isso, visto que certas coisas que diz são completamente o oposto da sua própria experiência.» Se uma mulher o lesse, «verteria opróbrio sobre ele e reconhecê-lo-ia como o absoluto lixo que é».

Por mais fervorosamente que de Pizan tenha defendido o seu sexo, pouco pôde fazer para interromper a promoção pela medicina deste tipo de dogmas religiosos pseudo-médicos. Dos Segredos das Mulheres era efetivamente lixo absoluto. Mas as bases das suas ideias não eram de todo invulgares. O conhecimento médico na Idade Média, como desde há séculos, era uma forma de confinar as mulheres ao casamento e à infinda criação dos filhos. E os escritores do sexo masculino que defendiam este disparate entendiam demasiado bem que, se queriam manter o seu domínio, as mulheres tinham de ser excluídas dos sagrados salões da medicina. Em inícios do século XIV, muitas universidades de medicina da Europa que até então aceitavam mulheres, como a Schola Medica Salernitana, começaram a proibi-las de estudar e exercer a profissão de físicas. À medida que a medicina se ia profissionalizando, e as mulheres eram proibidas de obter o estatuto profissional de médicas, qualquer mulher que exercesse a medicina podia ser julgada em tribunal.

Uma dessas físicas foi Jacqueline Félicie de Almania, conhecida como Jacoba Felice, que tinha estudado na Universidade de Paris. Em 1322, Jacoba foi julgada por exercer a medicina sem licença. Jacoba era uma curandeira respeitada, que tinha curado com sucesso muitos homens e mulheres. Em sua defesa, argumentou que as virtudes da castidade e da modéstia da época significavam que as mulheres não estavam a receber os cuidados e o tratamento de que tão desesperadamente precisavam. «É melhor e mais correto e adequado que uma mulher sábia e experiente na arte visite as mulheres doentes», escreveu, «e que as examine e indague sobre os segredos da natureza e as suas coisas ocultas... costumava acontecer que uma mulher morresse em vez de revelar a sua doença secreta a um homem.» A defesa de Jacoba caiu em ouvidos moucos. Foi declarada culpada, multada, excomungada e proibida de alguma vez voltar a praticar a medicina.

Ao silenciar as mulheres e perseguir as que poderiam cuidar delas, os vendedores religiosos de ideias médicas podiam declamá-las e propagá-las sem serem atrapalhados por factos incómodos. Monges, sacerdotes e clérigos ensinavam e transmitiam material como Dos Segredos das Mulheres por toda a Europa, em universidades que instruíam os estudiosos na ciência e na filosofia. Homens como o autor de Dos Segredos das Mulheres não estavam a reinventar a roda; estavam simplesmente a dar-lhe uma nova apresentação. Mas se as mulheres estavam tão cheias de substâncias venenosas que podiam causar doenças e danos, destruição e morte, como era possível que não se envenenassem a si mesmas? Afinal, não estavam aptas para aprender nada porque a sua toxicidade interna emitia vapores que lhes confundiam o cérebro. E choravam tanto porque, de algum modo, tinham de libertar todos aqueles malditos humores. Segundo Dos Segredos das Mulheres, porém, as mulheres são imunes aos seus próprios venenos, como as cobras. E «o veneno não atua sobre si mesmo, mas sobre o objeto». Os antigos autores médicos tinham já determinado que os humores das mulheres eram mais poluidores para o mundo que as rodeava do que para elas. Hipócrates, e mais tarde Plínio, o Velho, pensavam que o sangue menstrual podia fazer adoecer os homens, arruinar colheitas, matar abelhas e deixar os cães loucos. Mas, à luz dos ensinamentos dos evangelhos cristãos de que os corpos das mulheres tinham violado o mundo, a roda da medicina começava a ficar perigosamente descontrolada. As atitudes sobre a natureza ruinosa da biologia feminina começavam a exacerbar-se em crenças de que as mulheres eram não só perniciosas, mas também demoníacas.

Em 1346, a peste bubónica varreu a Europa, devastando a população. Estima-se que, em quatro anos, a Peste Negra tenha matado 20 milhões de pessoas. Os sintomas e a evolução da doença eram aterradores. Gânglios inchados causavam hemorragias subcutâneas, a que se sucediam febres altas e delírios antes de os doentes morrerem, na maioria das vezes, de choque séptico. Na Idade Média, havia muito pouco conhecimento sobre como eram transmitidas as doenças, e nenhum sobre as bactérias e o processo de infeção. A escala e a força da epidemia eram algo sem precedentes. Muitos acreditavam que era um castigo de Deus, uma peste de proporções bíblicas. Outros, seguidores de Galeno, julgavam que era causada por humores impuros acumulados no ar, ou por uma violenta colisão de planetas. Houve quem culpasse membros da fé judaica, acreditando que estavam deliberadamente a tentar envenenar os cristãos. A peste intensificou o medo da doença em toda a Europa, inflamando as superstições médicas e religiosas sobre a natureza ímpia da biologia humana corrompida.

Livro: "A Mulher e a Medicina"

Autor: Elinor Cleghorn

Editora: Alma dos Livros

Data de lançamento: 18 de setembro de 2025

Preço: € 24,95

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No espaço de sete anos, a peste erradicou entre 30 e 50% de toda a população da Europa. No seu rasto, a pobreza era generalizada, a infertilidade era alta e as taxas de natalidade estavam em mínimos históricos. Neste contexto de intenso medo e superstição sobre as causas desta dizimação catastrófica, a Igreja, e a sociedade em geral, procuraram bodes expiatórios. Para que a população fosse reposta, as mulheres – que eram os recetáculos da conceção, do nascimento e da nova vida – tinham de ser escrutinadas, reguladas, vigiadas e controladas. No século XV, as atitudes para com os corpos das mulheres defendidas em material como Dos Segredos das Mulheres estavam enraizadas nas mentes dos homens com autoridade da Europa, homens que tinham o poder de determinar como as mulheres deviam viver e agir. Como autores como pseudo-Alberto tinham deixado bem claro, as mulheres, enquanto seres reprodutivos e sexuais, eram corruptoras e corrompíveis. As crenças aceites sobre a dependência das mulheres dos homens, a sua fraqueza física e mental inata e os seus órgãos e processos biológicos rebeldes e incontroláveis faziam com que fosse demasiado fácil enquadrar as mulheres como arquitetas do pecado, como instrumentos de destruição. A desconfiança em torno do potencial perverso e demoníaco das mulheres cresceu sorrateiramente por toda a Europa, sobretudo através dos ensinamentos de clérigos católicos que defendiam a santidade religiosa e social do casamento.

Um desses homens era Heinrich Kramer. Desde tenra idade que tinha sido educado na Alsácia, na ordem católica dos Pregadores Dominicanos. Os dominicanos eram prezados pela sua tradição intelectual e célebres pelo ensino da filosofia e da teologia. Dedicavam-se também a pregar o Evangelho e a condenar, identificar e punir quais- quer atos e comportamentos que o infringissem. Em 1474, aos trinta e quatro anos, Kramer foi autorizado pelo papa Inocêncio VIII a agir como inquisidor e levar à justiça qualquer pessoa que cometesse um ato de heresia. A sua jurisdição cobria o Tirol e Salzburgo, bem como a Boémia e a Morávia (atualmente parte da República Checa). Desde o século XII, os hereges eram maioritariamente dissidentes católicos, protestantes e espiritualistas cristãos. Em 1484, porém, o papa incluiu outro grupo de hereges no seu decreto, conhecido como bula papal: as bruxas. Era agora permitido tentar castigar pessoas em tribunal por atos de bruxaria. A Igreja Católica tinha-o confirmado: as bruxas vagueavam pela Terra, conluiando com o diabo para causar doenças, morte e destruição. Kramer tinha encontrado a sua vocação. Durante anos, tinha enfeitiçado multidões com os seus sermões de fogo e enxofre, condenando ao inferno todas as almas perversas que ousassem pecar contra a sua fé. Agora, já não estava confinado ao seu púlpito; era livre de perseguir hereges e livrar a Europa de influências demoníacas. E que pessoas em particular eram suficientemente fracas, depravadas e traiçoeiras para abandonar a sua fé e cumprir as ordens do diabo? As mulheres, claro.

Kramer iniciou a sua caça em 1485. Chefiando um bando de inquisidores, viajou para Innsbruck para investigar quem pudesse andar a praticar as artes negras. Entre os muitos que levou a julgamento, estava Helena Scheuberin, uma mulher de boca insolente e moral relaxada. Havia rumores de que tinha feito uma mulher adoecer para lhe poder roubar o marido, e de ter provocado a doença e a morte de um cavaleiro que tinha rejeitado os seus avanços. Kramer decidiu que tinha de ter usado feitiçaria – «magia de amor», para sermos mais precisos. Não havia qualquer evidência disso, a não ser o facto de Scheuberin ser adúltera. Mas o adultério, na sua opinião, era bruxaria.

Scheuberin era também amiga de um grupo de mulheres que Kramer acreditava serem bruxas. Ainda assim, os únicos «factos» que tinha eram que uma mulher tinha adoecido, um homem tinha morrido e Scheuberin estava, de algum modo, ligada a ambos. Em tribunal, Kramer fixou-se no comportamento sexual de Scheuberin, fazendo perguntas para «provar» que ela estava possuída por ímpetos animalescos. «É uma regra geral», declarou, «que todas as bruxas são, desde tenra idade, escravas da luxúria carnal e de vários adultérios, como ensina a experiência.» Acreditava que ela tinha feito sexo com o diabo. O bispo local ficou tão ofendido com a natureza das acusações de Kramer – e com a linha minuciosa do seu interrogatório – que temeu que a reputação da cidade fosse maculada. Assim, mandou chamar um advogado, que acontecia ser também físico, para agir em defesa de Scheuberin. Com base na óbvia obsessão sexual de Kramer por Scheuberin, que indignou o advogado, o julgamento foi anulado e ela saiu em liberdade.

Kramer voltou para casa, em Colónia. A sua reputação como inquisidor estava manchada, mas o seu fervor por erradicar a bruxaria manteve-se irredutível. Decidiu escrever um livro a explicar como identificar, julgar e castigar as suspeitas de bruxaria. Publicado na Alemanha em 1486, o Malleus Maleficarum (Martelo das Bruxas) declarava que as mulheres que praticavam a bruxaria deviam sofrer o mesmo destino que todos os hereges – execução, sendo queimadas vivas. Página após página, Kramer expôs os seus argumentos sobre a existência das bruxas e a realidade da bruxaria. Não deixou pedra sobre pedra, ao explicar exatamente porque devia a Igreja Católica tomar medidas. O diabo, alegou, precisava de agentes na Terra, de instrumentos para atormentar as pessoas com males em seu nome. E o pacto que o diabo tinha de fazer era com o corpo humano. Para «infetar», como Kramer dizia, uma mulher com bruxaria, esta tinha de ter um de três vícios específicos: infidelidade, ambição ou luxúria. Quanto mais insaciável fosse a mulher, mais provável era o diabo assumir a forma de um íncubo e deitar-se com ela. Segundo Kramer, a bula papal identificava os principais atos de bruxaria das mulheres como incitar a paixão nos homens, impedir o «ato gerador», remover-lhes os pénis, transformar homens em monstros, impedir outras mulheres de conceber, providenciar abortos e matar bebés como oferendas aos demónios. Qualquer pessoa que levasse a tese de Kramer a sério teria dificuldade em não apontar o dedo a curandeiras e parteiras, mulheres solteiras, mulheres casadas com homens inférteis, mulheres que traíssem os maridos, mulheres que quisessem aprender a ler ou a falar por si mesmas – a qualquer mulher, na verdade, cujos estilo de vida, comportamento e personalidade não se cingissem às mais altas virtudes da castidade e da fé.

O Malleus estava repleto das histórias mais escandalosas e exageradas que Kramer podia engendrar a partir do seu tempo como inquisidor. Reservava um ódio especial às bruxas que, como escreveu, com notável solenidade, «fazem coisas prodigiosas relativamente aos órgãos masculinos». Numa história, um jovem de Ratisbona deixava uma mulher com quem andava a ter um caso, só para descobrir, para seu horror, que ela tinha «lançado um encantamento» sobre o seu pénis que o impedia de o ver ou de lhe tocar. Kramer alegava ainda que algumas bruxas colecionavam pénis, os punham em gaiolas e os alimentavam com aveia e milho. Mas muito mais sério, e arrepiante, foi o seu ataque às parteiras.

As curandeiras tinham já sido empurradas para as margens da medicina. E, visto que a maioria das mulheres não podia muitas vezes pagar para ser vista por um físico profissional, as parteiras e curiosas davam um apoio essencial durante a gravidez e o parto. Uma vez que estas mulheres estavam já a violar a lei e tinham de operar clandestinamente, Kramer urdiu uma narrativa de secretismo e perversão em torno das suas práticas. Nessa época, o parto era arriscado e cheio de perigos. As mulheres, e os seus bebés, morriam frequentemente durante o processo. Kramer atestava que a morte de bebés e os abortos espontâneos não eram acontecimentos naturais, mas sim o diabo a agir através de parteiras possuídas para massacrar inocentes. Entre as suas histórias mais chocantes – de bruxas a roubar recém-nascidos, a beber o seu sangue, a devorá-los e a oferecê-los em sacrifício ao diabo – sugeria vivamente que, em qualquer caso de gravidez falhada numa mulher acompanhada por uma parteira, devia haver suspeitas de bruxaria. Providenciar um aborto era, afinal, um dos sete métodos de bruxaria que Kramer definia. «Ninguém faz mais dano à fé católica do que as parteiras», escreveu. Perto do final do Malleus, Kramer declarava que as bruxas-parteiras «ultrapassam todas as outras bruxas nos seus crimes», e que esse é um mal tão disseminado que «quase não há um pequeno vilarejo onde não se tenha encontrado uma».

Os líderes dominicanos da Inquisição Católica consideravam Kramer um fanático eticamente duvidoso que manipulava deliberadamente a teologia católica para os seus próprios fins. Mas Kramer era tenaz no que tocava a garantir que a sua obra era lida e utilizada. A acessibilidade da recém-inventada imprensa de Gutenberg a partir de 1500 permitiu que o Malleus circulasse amplamente por toda a Europa. À medida que o medo da bruxaria se começava a apoderar do continente, o Malleus revelou-se um guia essencial. Pois Kramer descrevia, escrupulosamente e ao pormenor, como exatamente as sus- peitas de bruxaria deviam ser interrogadas, julgadas e sentenciadas, tanto nos tribunais religiosos como nos seculares. Ainda que os atos de heresia tivessem de ser julgados por inquisidores nomeados, qualquer pessoa suspeita de bruxaria que não constituísse um crime contra a Igreja podia ser levada à justiça por quaisquer meios necessários.

Kramer alargou o alcance do que a bruxaria realmente implicava, e de quem era provável que a praticasse. Qualquer pessoa normal, e especialmente as mulheres que violassem os rígidos limites sociais e morais, podia ser acusada de bruxaria por membros da sua comunidade, se estivesse, de algum modo, ligada a um acontecimento inexplicável. As gentes comuns, que viviam lado a lado em aldeias rurais e vilas agrícolas, eram já intrinsecamente supersticiosas sobre como as forças das trevas podiam estar por detrás de todo o tipo de acontecimentos, naturais e sociais, que ameaçavam a sua precária subsistência. Danos em propriedades, mistérios meteorológicos, disputas e discussões, que a vaca de alguém desse mais leite do que a dos vizinhos e baldes que se moviam sozinhos foram todos pontos mencionados nos processos judiciais de Kramer, juntamente com atos de feitiçaria como doenças, ferimentos e fornicação. Os receios em torno das incógnitas do quotidiano significavam que rapidamente se apontavam dedos a qualquer pessoa que fosse vista como andando a tramar alguma – particularmente se já tivesse sido vilipendiada por ser rebelde, colérica, perversa, solitária ou estranha. Quando qualquer pessoa suspeita, geralmente uma mulher mais velha, era levada a julgamento, o tribunal ouvia as testemunhas de acusação, revistava-lhe a casa, em busca de qualquer instrumento minimamente relacionado com bruxaria, e então interrogava-a, com perguntas como: «E porque tocaste na criança antes de adoecer?»

Enquanto o tribunal avaliava as provas, a acusada devia ser encarcerada, despida e rapada. Kramer acreditava que era frequente as bruxas coserem artigos da sua arte nas vestes, e até na própria pele. «Artigos» incluía marcas ou cicatrizes que se julgava terem sido infligidas pela língua ou por uma garra do diabo. Qualquer sinal, marca de nascença, verruga ou mácula podia ser diagnosticada como a «marca das bruxas». Se nada fosse encontrado, às vezes, os inquisidores ordenavam a físicos ou parteiras respeitadas que procurassem outros traços invulgares, como mamilos salientes ou clítoris aumentados. Uma vez encontrada a característica ilícita (como inevitavelmente acontecia), o tribunal podia extrair uma confissão. Se a mulher acusada alegasse inocência ou se mantivesse em silêncio – ambos sinais da influência do diabo – Kramer recomendava a tortura. As mulheres deviam ser amarradas, perfuradas com agulhas, mergulhadas em água, privadas de comida, bebida e sono, obrigadas a segurar ferros em brasa ou untadas com gordura quente na vagina. Estes procedimentos sádicos destinavam-se a forçar as mulheres a confessar, mas era frequente induzirem alucinações e dissociação, que eram interpretadas como provas de possessão. Se fosse considerada culpada de uma «suspeita leve», a acusada podia ser obrigada a cumprir penitência. Se culpada de uma ofensa mais séria, seria mantida na prisão e torturada diariamente até lhe ser extraída uma confissão. Mas, se o seu crime fosse grave ou herético, o juiz devia «condená-la às chamas».

Kramer e o seu Malleus não foram, de todo, os únicos responsáveis por instigar o medo crescente da bruxaria, que adquiriu o seu domínio mais devastador sobre a Europa durante o século XVI. Mas o Malleus, e os muitos outros tratados sobre bruxaria que surgiram em finais do século XV, inflamaram certamente a cultura de horripilante perseguição que, desde o início, estava viciada contra as mulheres. Durante os séculos XVI e XVII, foram executadas aproximadamente 45 000 pessoas pelo crime de bruxaria; 80% delas eram mulheres, muitas com mais de quarenta anos. As motivações por detrás desta guerra sem tréguas contra as mulheres foram um complexo conluio de forças religiosas, sociais, políticas e económicas. As ansiedades sobre a influência da magia negra, da feitiçaria e da demonologia eram generalizadas num continente que tinha sido tão horrivelmente dizimado pela doença, pelo tumulto e pela instabilidade. Nas caças às bruxas e nos julgamentos que ocorreram sobretudo na Alemanha, em França, em Inglaterra e na Escócia, as mulheres – sobretudo as solteiras, as mais velhas, as pobres e as dedicadas à cura ou à prática da obstetrícia – foram maliciosamente apontadas como os vetores da morte e da destruição. E as ideologias por detrás desta inimaginável campanha de extermínio não surgiram do nada.

Ao longo dos séculos, a doutrina religiosa e o discurso médico tinham afirmado que os corpos e mentes das mulheres eram defeituosos e perigosos. Os antigos físicos tinham decretado que as mulheres estavam à mercê dos seus rebeldes e incontroláveis órgãos reprodutores. A teologia cristã tinha entretecido estas ideias seminais num novo dogma de inferioridade feminina, em que a fraqueza física e mental das mulheres era prova da sua suscetibilidade a canalizar forças demoníacas e cometer atos malignos. Enquanto escritos como o Corpus Hipocrático defendiam que as mulheres deviam casar cedo e procriar com frequência para evitar doenças do corpo e da mente, a Igreja insistia no casamento e no sexo reprodutivo como uma espécie de proteção estatal contra a libertação pelas mulheres do seu pecado original. Acusar mulheres de bruxaria era uma poderosa forma de as autoridades sociais e religiosas manterem o domínio e a supremacia masculinos nas suas aldeias e vilas. E julgar e executar mulheres era uma medida para purificar as comunidades das que não estavam a cumprir os deveres conjugais e reprodutivos que lhes tinham sido atribuídos sob o patriarcado. Mulheres independentes, mulheres solitárias, mulheres para lá da idade fértil – todas as mulheres, na verdade, que não estivessem subordinadas pelo casamento e pela maternidade – eram uma ameaça, um perigo, um flagelo.

Em 1542, no reinado do rei Henrique VIII, foi aprovada em Inglaterra a Lei da Bruxaria, o que significava que as mulheres acusadas podiam agora ser punidas com a pena de morte. Implementada após a Reforma inglesa, que arrancou o controlo da Igreja de Inglaterra à autoridade do papa e da Igreja Católica e instituiu o monarca como chefe religioso supremo, a lei permitia aos tribunais eclesiásticos exercer a responsabilidade por tão ímpios crimes. No ano seguinte a Jaime I – que tinha reinado sobre a Escócia como Jaime VI desde 1567 – ter ascendido ao trono como rei de Inglaterra e da Escócia, em 1603, foi aprovada a «Lei Contra a Feitiçaria, a Bruxaria e o Trato com o Diabo e os Espíritos Malignos». A lei de Jaime I significava que qualquer pessoa acusada de «Bruxaria, Invocação, Sortilégio ou Feitiçaria» podia ser julgada nos tribunais comuns, em vez de nos religiosos.

A obsessão e a aguda ansiedade de Jaime I em torno da influência da bruxaria fizeram com que entre 4000 e 6000 pessoas fossem acusadas de bruxaria na Escócia entre finais do século XVI e meados a finais do século XVII; 75% delas eram mulheres. Em Inglaterra, cerca de 500 pessoas – mais uma vez, quase todas mulheres – foram executadas por bruxaria entre 1560 e 1700. Ainda que se continuasse a crer que as capacidades de bruxaria tinham origem na cópula sobrenatural com o diabo, os tipos de crime que as bruxas podiam aparentemente cometer não tardaram a tornar-se aterradoramente banais, agora que as comunidades tinham o poder de julgar qualquer mulher suspeita num tribunal local.

Em 1682, numa vila agrícola coesa chamada Beckenton, em Somerset, uma mulher de quarenta e quatro anos foi acusada de enfeitiçar um rapaz e uma rapariga, ambos com cerca de dezoito. Ao passar por um asilo, uma residência para os mais pobres e «revoltados», o jovem viu a mulher e chamou-lhe bruxa. Compreensivelmente, atendendo ao clima de superstição, ela ficou furiosa. Pediu imediatamente ao juiz de paz que repreendesse o homem, e este prometeu nunca mais a voltar a insultar. Nessa noite, porém, segundo as suas declarações, teve um ataque de convulsões e passou duas semanas doente. Atormentado pela febre, alucinou que a mulher estava no seu quarto, a rir-se dele, a sacudir os punhos e a sorrir com os dentes todos.

Entretanto, a mulher alegadamente pediu a uma jovem chamada Mary que a ajudasse a ir buscar a sua fiação a uma vila vizinha, mas Mary recusou, porque a «velhota» metia-lhe medo. Teve então também convulsões, mais fortes e violentas do que as sofridas pelo rapaz. Delirante de febre, alegou também ter visto a velha aparecer-lhe no quarto para zombar dela. Mary era conhecida do rapaz afetado, mas ninguém gritou conspiração.

No momento em que as suas convulsões acalmavam, Mary disse ter sentido uma picada no estômago. Disse ao tribunal que vomitou um alfinete torto. Durante oito dias, declarou ter vomitado uma coleção alarmante de objetos. Mais alfinetes, alguns em molhos atados com fio; pregos; vários cabos de colher; pedaços de ferro, latão, bronze e peltre; o chumbo de uma janela; e uma quantidade desmesurada de sangue. A população alarmada obrigou a velhota a visitar Mary. Ao vê-la, esta teve, ao que parece, a sua convulsão mais forte até então. No julgamento, a mulher foi despida por um júri de mulheres e examinada em busca da marca das bruxas. Encontraram o seu corpo crivado de nódoas negras. Foi amarrada com cordas, conduzida ao rio e mergulhada. O júri atestou que flutuava como uma rolha. Só as boas mulheres cristãs se afundavam; pois a água era tão sagrada que repelia imediatamente uma bruxa. A velhota foi torturada desta forma outras três vezes e, segundo o tribunal, de todas elas flutuou. A sua culpa era indiscutível. Foi enforcada. Mary continuou a vomitar alfinetes durante mais dez semanas.

Não existe forma de saber se a doença inexplicável de Mary era ou não real; nenhum físico a viu realmente vomitar todo aquele metal. Talvez tenha alucinado; talvez tenha inventado, para exercer algum tipo de vingança mesquinha. Seja qual for a verdade, a velha de Beckenton foi incriminada devido à sua idade, ao seu aspeto físico, à sua baixa classe social e ao seu temperamento. Há muito pouca informação sobre como era, tirando o comportamento errático e supostamente vingativo. Como tantas mulheres acusadas de bruxaria, estava provavelmente a passar pela menopausa. O fim da fertilidade não sinalizava apenas o fim do principal uso social do corpo feminino; nos seus primórdios, a medicina moderna interpretava a menopausa como um depauperamento dos humores, que deixava o corpo impuro e cheio de veneno. A menopausa era uma patologia física e psicológica; as mulheres a passar pela mudança eram vistas como instáveis, rabugentas, irascíveis e decididas a causar dano. Os «sintomas» da menopausa, tão incompreendidos, eram muitas vezes interpretados como diagnósticos de bruxaria.

Em Inglaterra, no início do século XVII, um físico e químico chamado Edward Jorden foi chamado como testemunha médica ao julgamento de Elizabeth Jackson, uma mulher mais velha acusada de enfeitiçar a filha de catorze anos de um comerciante, de seu nome Mary Glover. Jorden era um médico respeitado e bem-sucedido. Tinha tratado a rainha Isabel I e era membro do Colégio dos Físicos de Londres. Foi chamado a agir em defesa de Jackson, uma mulher alegadamente conhecida pelo seu feitio desagradável e pela sua língua afiada. Enquanto fazia um recado para a mãe, Mary Glover cruzou-se com Elizabeth Jackson, que acusou a rapariga de fazer comentários desagradáveis sobre as roupas da sua filha. O tribunal ouviu que, depois disso, Jackson «a invetivou, com muitas ameaças e pragas, desejando que uma morte maligna descesse sobre ela».

Nessa noite, a garganta e o pescoço de Mary começaram a inchar, e teve um «ataque irracional». Foi chamado um físico. Suspeitava que ela tivesse amigdalite, mas não conseguiu encontrar nenhuma prova física. Os ataques eram tão estranhos que decidiu que devia estar possuída. Durante um dos seus ataques, ouviram Mary sussurrar «enforquem-na». No julgamento, Jorden sugeriu, de início, que a jovem podia estar a fingir uma possessão. Mais tarde, argumentou que Elizabeth Jackson não possuía de todo poderes sobrenaturais, pois Mary Glover sofria de uma doença natural chamada Passio Hysterica, uma condição muito similar à «sufocação uterina». Infelizmente, não conseguiu convencer os tribunais do seu diagnóstico. Elizabeth Jackson foi condenada a um ano de prisão, mas a controvérsia em torno da sua condenação fez com que conquistasse o apoio do público, não tardando a ser perdoada e libertada. Mary Glover, entretanto, continuou a sofrer dos seus misteriosos ataques, até que acabou por ser exorcizada por um grupo de clérigos puritanos que ainda acreditavam – como ela – que tinha sido possuída pelo demónio.

Os esforços de Jorden para negar a intervenção demoníaca como explicação para a doença de Mary Glover não foram em vão. No ano seguinte, inspirado pelas suas descobertas durante o julgamento de Elizabeth Jackson, escreveu Breve Discurso sobre a Doença Chamada Sufocação da Madre, um tratado sobre a doença «natural» da «sufocação uterina» e as formas como podia afetar os corpos e mentes das mulheres, jovens e velhas. «Madre» era um termo dos primórdios da medicina moderna para útero, e, segundo Jorden, podia causar sintomas tão extremos que as «pessoas simples e iletradas» partiriam do princípio de que as mulheres afetadas estavam possuídas pelo demónio.

Breve Discurso é também considerada a primeira obra em inglês sobre os sintomas associados aos distúrbios do útero que, nos séculos seguintes, iriam ser diagnosticados de acordo com o abrangente modelo médico da histeria. Enquanto forma de patologizar a relação entre os corpos e as mentes das mulheres, o conceito de histeria já existia há séculos. O nome vinha de hystera, o termo em grego antigo para útero. Hipócrates, Platão e Areteu tinham já preparado há muito o enquadramento histérico ao dramatizar os efeitos de diferentes doenças de hystera na saúde física e mental das mulheres. Numa era em que a superstição religiosa dominava as perceções dos sintomas «histéricos», como as convulsões e contorções sofridas por Mary Glover, as teorias ginecológicas foram marcos importantes na abordagem mais racional e humana da medicina aos corpos, mentes e doenças das mulheres. Mas estas novas ideias sobre o útero e a sua miríade de distúrbios «naturais» foram escritas no contexto das premissas sociais e culturais reinantes de que as mulheres eram inferiores, fracas e impressionáveis, em virtude dos seus corpos «naturalmente» defeituosos. «A condição passiva da mulher», escreveu Jorden, «está sujeita a mais doenças, e de outros tipos, do que os homens; e sobre- tudo no que respeita a essa parte de onde surge a doença de que falamos.» No século XVII, as mulheres podiam não ser demoníacas, mas os seus úteros doentes portavam-se certamente como se fossem.

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