Acompanhe toda a atualidade informativa em 24noticias.sapo.pt

A primeira vez que viera ao Andorinha fora aos 11 anos, e aquele acampamento tinha‐o deixado tão entusiasmado que os seus pais passaram a inscrevê‐lo nos verões seguintes. Iurka adorava aquele sítio quando criança, mas, sempre que voltava, sentia a alegria diminuir um pouco. Nada mudava: ano após ano, os mesmos atalhos já percorridos de trás para frente e de frente para trás, os mesmos monitores com as mesmas tarefas, os mesmos pioneiros com a rotina de sempre. Tudo igual. Os grupos de atividades — ou «clubes», como lhes chamavam — eram os mesmos: aeromodelismo, corte e costura, artes, educação física e informática. O rio com a temperatura nunca abaixo dos 22 graus. A sopa de trigo‐sarraceno da cozinheira Svetlana Víktorovna ao almoço de sexta‐feira. Até os hits na pista de dança eram repetidos ano após ano. E foi assim que começou a sua última temporada no acampamento: como sempre, numa fila.

AS TROPAS CONCENTRAVAM-SE NA PRAÇA E TOMAVAM OS SEUS LUGARES. Grãos de pó rodopiavam por entre os raios de sol, era possível sentir o entusiasmo no ar. Os pioneiros estavam contentes com os novos encontros e os velhos amigos. Já os monitores davam‐lhes ordens, varrendo a praça com olhares severos, como se dissessem «Não é não», porém, ainda assim, a alegria cintilava. O diretor estava com o seu ar vaidoso: durante a primavera, tinham conseguido remodelar os quatro dormitórios e praticamente terminar de construir um novo. E, mais uma vez, apenas Iurka não estava a divertir‐se como todos, apenas ele estava farto daquele acampamento após cinco anos, apenas ele não tinha vontade de se divertir. Chegava a sentir‐se até um pouco ofendido e não tinha com o que se distrair.

Lourenço Seruya junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 25 de junho, desta vez uma quarta-feirapelas 21h00. Consigo traz "Morte nas Caves", o seu mais recente livro, publicado pela Porto Editora.

Para se inscrever basta preencher o formulário que se encontra neste link. No dia do encontro vai receber, através do WhatsApp — no nosso canal —, todas as instruções para se juntar à conversa. Se ainda não aderiu, pode fazê-lo aqui. Quando entrar no canal, deve carregar em "seguir", no canto superior direito, e ativar as notificações (no ícone do sino).

Neste que é o seu quinto livro, o escritor oferece-nos um policial cheio de surpresas e reviravoltas, que nos deixa a adivinhar até ao fim quem terá cometido o crime.

Ou melhor, acabou por encontrar, sim, algo com que se distrair. À direita da haste da bandeira, rodeado pela Tropa Cinco, estava o novo monitor. De calções azuis‐escuros, camisa branca, lenço vermelho e óculos. Já devia estar na faculdade, provavelmente no primeiro ano, e era o monitor mais jovem e mais tenso. O vento aromático acariciava‐lhe o cabelo, que escapava de debaixo do boné vermelho, as pernas brancas tinham marcas avermelhadas (e recentemente coçadas) de picadas de mosquito, e o seu olhar concentrado passeava pelas cabeças das crianças, os lábios murmuravam inconscientemente:

— Onze, doze, tre... treze.

Iura achava que ele se chamava Volódia — tinha ouvido algo do género, perto dos autocarros.

O sinal tocou, as mãos dos pioneiros ergueram‐se, acenando, e a direção do acampamento entrou em cena. O ar estremeceu com saudações, e começaram os discursos pomposos sobre pioneiros, patriotismo e ideais comunistas, já repetidos milhares de vezes, e que Iurka já sabia de cor e salteado. Tentou não ficar carrancudo, porém não teve sucesso. Não acreditava no sorriso da velha coordenadora, nem nos seus olhos cintilantes e nos seus discursos fervorosos. Iurka tinha a impressão de que não havia nada de verdadeiro naquilo, nem mesmo em Olga Leonídovna, e, se não havia verdade, porque viviam a repetir sempre a mesma coisa? A sinceridade encontra sempre palavras novas, era o que diziam. Para ele, era como se todos no seu país vivessem na inércia, repetindo slogans devido a um antigo costume e fazendo juramentos, sem, no fundo, sentirem nada. Era tudo fachada, tudo vazio. Apenas ele, Iurka, era verdadeiro, enquanto os outros — e principalmente aquele Volódia — não passavam de robôs.

Aliás, como é que uma criatura daquelas podia ser humana? Ele era um membro da Komsomol (1) da cabeça aos pés, isto é, um «bom pioneiro», um rapaz inteligente, um exemplo, como se o tivessem criado numa estufa, com todos os cuidados. Era como se Volódia tivesse saído de um cartaz de propaganda: alto, asseado, sempre a postos, covinhas nas bochechas, a pele a brilhar sob o sol. Só a cor do cabelo é que não é a certa, porque ele não é loiro, pensou Iurka, com maldade. Bem, até podia não ser loiro, mas estava bem penteado em comparação à aparência desgrenhada de Iurka. Mas um robô é um robô, disse para consigo, numa tentativa de se justificar, endireitando, envergonhado, os remoinhos do cabelo. Uma pessoa normal fica com o cabelo despenteado ao vento, mas ele, olha lá, continua todo perfeitinho. Será que me devia inscrever no clube de informática?

A sua newsletter de sempre, agora ainda mais útil

Com o lançamento da nova marca de informação 24notícias, estamos a mudar a plataforma de newsletters, aproveitando para reforçar a informação que os leitores mais valorizam: a que lhes é útil, ajuda a tomar decisões e a entender o mundo.

Assine a nova newsletter do 24notícias aqui

Iurka estava tão perdido nos próprios pensamentos e olhava tanto para Volódia que por pouco não perdeu o evento mais importante: o hasteamento da bandeira. No entanto, a vizinha de fila chamou a sua atenção. Também ele olhou para a bandeira e cantou o hino dos pioneiros — «Noites azuis iluminadas pe‐ las nossas fogueiras! Somos os pioneiros, filhos dos trabalhadores!» — tal como deveria. Só depois do «sempre pronto!» é que voltou a olhar para Volódia. Aguardou, parado feito um poste, até a Tropa Cinco começar a dispersar. O monitor, endireitando os óculos, tornou a murmurar:

— Doze... Ops! Treze... tre... E saiu atrás da criançada.

IURA ABANOU A CABEÇA, SOMBRIO, PASSANDO OS OLHOS MAIS UMA vez pela praça. O tempo não poupa nada nem ninguém: nem aquele sítio, do qual tanto gostava, por ter sido onde vira o seu V pela primeira vez, agora coberto de mato. Mais uns dez anos e seria impossível passar através dos ramos e das folhas das árvores, e alguém que se aventurasse por ali ao acaso apanharia um belo susto com as partes dos corpos de gesso dos pioneiros. Ou pior: os canteiros de construção chegariam até ali, o acampamento desapareceria e condomínios seriam construídos mesmo em cima daqueles sítios que Iura tanto adorava.

Foi abrindo caminho em direção a oeste da praça, rumo à trilha pela qual os monitores levavam os pioneiros mais novos. O caminho seguia adiante, em direção ao rio, mas Iura parou onde estava e tentou encontrar o atalho que se perdera no meio do matagal. Orientando‐se mais pela memória do que pela visão, reconheceu a bifurcação: à direita, era possível distinguir‐se os contornos dos campos e de ténis e da pista de atletismo, enquanto à esquerda, um pouco mais adiante, viam‐se os dormitórios das crianças. No entanto, Iura voltou atrás, para a praça, e caminhou na direção contrária, rumo à pista de dança e à sala de cinema. Avançava com dificuldade e ia olhando para as copas das árvores; tinha a impressão de que tudo em seu redor vinha de algum sonho estranho. Mal reconhecia aqueles sítios: mesmo ali, num pequeno monte, via‐se a casinha da luz, e, se avançasse mais um pouco, estaria perto das despensas. Ao reavivar aquelas memórias, sentiu novamente algo pungente, quente e familiar. Em simultâneo, porém, misturava‐se uma certa amargura: tudo ali se tornara estranho e desconhecido.

Depressa chegou à pista de dança — ao local onde começara a sua história, a história deles. Não era uma história muito longa, mas era tão brilhante que, com a sua luz, aquecera uma grande parte da vida de Iura.

Livro: "Um Verão de Lenço Vermelho"

Autores: Elena Malíssova e Katerina Silvánova

Editora: Secret Society

Data de Lançamento: 23 de junho de 2025

Preço: € 21,95

Subscreva a Newsletter do É Desta que Leio Isto aqui e receba diretamente no seu e-mail, todas as semanas, sugestões de leitura, notícias e acesso a pré-publicações.

Ladeado por uma cerca baixa e já caída, estava um palco de concha acústica, que certa vez, estivera enfeitado com bandeiras e cartazes com frases do género VIVA O PARTIDO COMUNISTA DA UNIÃO SOVIÉTICA e NÓS SOMOS OS JOVENS LENINISTAS, que já eram antigos mesmo no tempo de Iura. No chão, havia uma faixa amachucada e desbotada, num tom laranja‐sujo. De pé e em cima daqueles trapos rasgados, Iura olhou para baixo. Conseguiu decifrar: ATA BEM O TEU LENÇO E CUIDA...; e desviou o olhar. À direita do palco, tradicionalmente, ficava uma cópia das atividades do dia. Agora, a única linha que restava comunicava que o trabalho comunitário seria às 16h30. À esquerda, na ponta da pista de dança, ainda se erguia o posto de observação de Iura: uma majestosa macieira. Antes coberta por pesados frutos e luzinhas, estava agora seca e retorcida. Já não havia forma de subir pelos ramos, porque a árvore desmoronaria. Aliás, mesmo naquele tempo, Iurka já tinha caído lá de cima, há 20 anos, quando, a mando de um dos monitores, foi pendurar luzinhas coloridas nos ramos.

Aquela tinha sido justamente a primeira tarefa que lhe atribuíram, no início da temporada. Quando se apercebeu, Iurka estava no chão.

DEPOIS DAS SOLENIDADES DA ASSEMBLEIA, ELE INSTALOU-SE NO DORMITÓRIO, de seguida, foi participar, embora sem prestar muita atenção, na reunião de planeamento das tropas. Após o almoço, dirigiu‐se à pista de atletismo conhecer o pessoal novo e procurar pelos camaradas das temporadas anteriores. Pelos altifalantes, davam as boas‐vindas a todos os novatos. Transmitiam que a previsão meteorológica não indicava altos índices de chuva na próxima semana, desejavam que usufruíssem de lazeres úteis e de forma ativa, e aproveitassem o sol. Iurka reconheceu, nesse mesmo instante, a voz de Mitka, que tocava guitarra clássica e cantava bem, logo era ele quem dava as notícias pela estação de rádio do acampamento desde o ano anterior.

(1) Organização política juvenil da União Soviética, criada em 1918, que recebia jovens com idades compreendidas entre os 14 e os 28 anos. O seu objetivo era preparar os jovens enquanto futuros membros do Partido Comunista. [N.E.]