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O Jaime era um homem de 60 anos, carpinteiro, reformado depois de um acidente que lhe valera um coxear evidente, com uma cicatriz na face por um incêndio na carrinha de trabalho que deflagrara após um embate violento contra um muro. «Estou vivo por milagre», repetia em jeito de lengalenga, inúmeras vezes, no seu característico gaguejar.
Primeiro surgiu como meu doente, difícil de contacto pela sua gaguez e discurso repetitivo, com queixas relativas à próstata e à azia que não o largava apesar dos meus esforços terapêuticos.
Vivia no Casal Ventoso, com uma família numerosa. Fazia uns biscates aos vizinhos – «uma reforma miserável», repetia também neste desabafo. Pequeno, coxo, marcado na face, gago, mesmo assim tinha um perfil de líder, falando da família e dos seus vizinhos como se fosse quem guiava aquela gente toda. Na consulta, ocupava sempre o espaço da conversa, deixando‑me uns escassos intervalos, num espaço entre gaguezes mais prolongado, e aí eu conseguia dizer qualquer coisa rápida.
Pedira‑me abertamente uma redução no preço das consultas, ao que acedi. Algum tempo depois veio a mãe, uma velhota seca que nem um carapau, carrancuda, de poucas falas, e quando abria a boca era quase sempre para dizer «O meu Jaime é quem sabe!», o que veio a confirmar as minhas suspeitas sobre a liderança deste no seu círculo.
A senhora tinha sido submetida a uma cirurgia importante à mama, por cancro, em que retirara toda a glândula mamária, o músculo grande peitoral e os gânglios axilares, numa chamada mastectomia radical. Isto ocorrera há cerca de cinco anos e ela estava bem, sem recidivas, mas achava que tinha sido maltratada, revelando ao falar (pouco) a falta de muitas peças dentárias e o azedume da sua conversa.
Mais tarde, meses depois, veio uma sobrinha, uma rapariguinha de 15 anos, esperta que nem um coelho, com resposta para tudo, unhas pintadas ora de amarelo, ora de roxo, madeixas azuis no cabelo, indiciando uma adolescência made in Barbie e turbulenta. Tinha acne evidente e usava saltos altos demais para a sua idade.
Aquela família, toda ela gozando de desconto comunitário, aos poucos foi conquistando a minha amizade e até um certo sentido de alguma proteção, confesso. Tinham todos algo em comum, apesar de tudo, que talvez se devesse ao local onde viviam. Ele, o patriarca, desenrascara‑se ao longo da vida, quase ceifada precocemente por aquele acidente violento; a mãe, de poucos afetos, ganhara uma carapaça protetora que a defendia do ambiente circundante; a miúda, uma espertalhaça, queria dar nas vistas e sair para o mundo da fama.
Mas a família não ficava por ali; havia ainda uma irmã da mãe do Jaime, acamada por ter sofrido um AVC, e que o nosso carpinteiro reformado me pedira várias vezes que fosse observar a casa.
«Doutor, fazemos assim: leva o seu carro, eu vou consigo e ficam pessoas a tomar conta do carro, esteja descansado», garantia‑me, ante o meu receio evidente de me adentrar naquele bairro duro e problemático.
Um dia, aceitei o pedido do homem. Era verão, dia de calor. Desci a Rua Maria Pia, com o Jaime a meu lado no carro, empertigado, gaguejando do princípio até ao fim. Passei a Meia‑Laranja, virámos à direita e entrámos no submundo. Na calçada mal empedrada, estreita e sinuosa, havia restos de lixo, cães a deambularem de um lado para o outro. Ouvia‑se choro de crianças, misturado com ordens gritadas aqui e acolá, e alguns magricelas vagueavam desnorteados, lançando‑nos olhares curiosos e pouco amistosos.
«Sempre em frente, doutor», dizia‑me o Jaime, qual comandante daquele território tão estranho e desafiante. À medida que íamos descendo, a minha sensação era de estar a chegar aos infernos, onde no fim da caminhada estaria Lúcifer, com um tridente de fogo na mão direita e uma cabeça humana na outra mão. Como era possível sobreviver naquele ambiente, ali em Lisboa, onde cem metros acima as pessoas e os automóveis circulavam numa ignorância total deste submundo tão próximo e tão longínquo em simultâneo?
«Che‑chegá‑m‑m‑mo‑o‑s!», gaguejou o Jaime a certa altura. Parei o carro, ele saiu e gritou: «Zeca! Ó Zeca!» À segunda, surgiu um rapaz, peitudo, tronco nu, andar bamboleante, que nos lançou um olhar desconfiado e estacou, como que aguardando instruções. «Toma conta do carro do doutor», ordenou‑lhe o Jaime. E a seguir virou‑se para mim: «Esteja descansado, está tudo controlado.»
Entrei na casa. Cheirava a limpo, uma cortina de croché com passarinhos desenhados tinha de ser afastada para entrarmos num pequeno hall com tijoleira no chão. Seguia‑se um pequeno corredor que terminava numa cozinha diminuta, mas arrumada. Um cão rafeiro veio ao meu encontro, reconhecendo pelo cheiro que eu não pertencia ao clã. Ladrou‑me, mas logo o Jaime interveio.
«Biscoito, ‘tá calado!» Virou‑se para mim com expressão dorida. «Ele é cego, doutor.»
Entrei então num quarto pequeno. Numa cama articulada, uma velhota adormecida roncava a plenos pulmões. Tentei acordá‑la sem êxito. «Ela está sempre assim», adiantou o Jaime, enquanto abanava a cama sem convicção.
Auscultei‑a, medi a pressão arterial e, ao ver um saco da algália no chão, pedi que o pendurassem, o que me permitiu ver que a urina estava completamente turva, sinal de uma clara infeção urinária.
Perguntei pela medicação que a velhota estava a fazer, fiz as correções que entendi pertinentes, prescrevi um antibiótico para a infeção urinária, tudo isto sentado num banco da exígua cozinha. O som do arfar respiratório ouvia‑se em toda a pequena habitação. Embora atento à medicação, percebi que deixara de ouvir esse intenso arfar. Por isso, antes de sair, passei pelo quarto e percebi naquela quietude o inevitável: a velhota acabara de morrer.
Fiquei ainda algum tempo junto dos familiares, para lhes dar um certo conforto. Quando saí para a rua, o Zeca, junto ao meu carro, levantou o polegar em sinal de que tudo estava bem. Voltei à vida e ao consultório com um pensamento amargo. A velhota tinha de se apagar justamente quando eu lá estava, pensei enquanto vestia a bata para chamar o próximo doente.
CONSIDERAÇÕES SOBRE ESTE CAPÍTULO
Esta prática do domicílio médico tem caído em algum desuso. Os tempos são outros, a distância para o médico que calcorreava as casas dos doentes, de aldeia em aldeia, de lugarejo em lugarejo, por vezes montado num cavalo ou até num burro, já é longa.
São histórias do passado, olhadas como que fazendo parte do museu da Medicina, e tidas por ultrapassadas no tempo, em especial se considerarmos a lógica da vida frenética que cada vez mais nos assola o quotidiano.
No entanto, esse atendimento domiciliário hoje em dia negligenciado e substituído pela ida ao hospital apresenta ainda assim vantagens. É claro que em ambiente hospitalar é possível fazerem‑se os exames necessários para o diagnóstico, mas a verdade é que ao ser atendido no seu habitat natural, o doente está mais resguardado dos contágios hospitalares e também do stresse físico e emocional que uma ida à Urgência pressupõe sempre.
Evidentemente, há casos em que a ida ao hospital é mandatória e imediata, como por exemplo perante a suspeita de enfarte ou de AVC, quando há falta de ar ou hemorragia, mas (lá vem o tal mas) existem de facto muitas situações que, podendo ser resolvidas em ambiente domiciliário, não o são, levando assim ao entupimento das nossas Urgências, a que se alia o facto de os centros de saúde não serem capazes de escoar o caudal de doentes aí dirigido, seja por falta de meios de diagnóstico, seja por horários inadequados.
Como tal, os doentes acabam por recorrer à Urgência hospitalar de forma torrencial, com prejuízo dos serviços e, naturalmente, de quem aí acorre com a vida em perigo.
Logicamente, as consultas ao domicílio não são de todo a panaceia para todos os males assistenciais, mas são uma componente da solução. A prova disso mesmo é o facto de a medicina privada começar agora a encarar com outros olhos esta janela de oportunidade através de medidas como a implementação da hospitalização domiciliária e das videoconsultas, algo que, no meu entender, deveria ser largamente executado pelo SNS, o nosso Serviço Nacional de Saúde.
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