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Prefácio
Gosto da palavra parêntesis e não da palavra parênteses . Não por esta ser invariável e me facilitar o bom uso da língua portuguesa, mas sim porque parêntesis me dá um eco de ammore à semântica .
Abro parêntesis e nem sempre os fecho. Perco-me . E, às vezes, faço um ponto para fechar parêntesis: um crime menor, julgo . Talvez por pensar ao contrário.
Outras vezes minto para poder dizer depois a verdade . É propositado, mas acreditam que o faço sem querer? Culpa, quem sabe, do antigo ofício.
Oh!, e gosto de palavras compostas por justaposição; quem sabe porque tenha saudades da confusão, do suor, do estarmos colados.
Descobri isto tudo, AQUI.
A vossa,
Regina
1
Penitência
Fomos amantes ao longo de quatro anos sem que ninguém sentisse o mais leve cheiro a sexo num pequeno-almoço de hotel barato.
Era sempre nesses quartos encardidos que ficávamos, talvez porque o luxo seja para quem não tenha a sorte de sentir desejo. A arquitetura necessária era a dos nossos corpos nus, expostos em quartos minguantes, perfeitos para a nossa fase crescente. E que pena tenho eu de não nos ter gravado por uma só vez, de não ter cometido esse ato estúpido que era ter a prova da cor da nossa devassidão. Ele dizia que éramos prateados. Mentira. Ele dizia que eu era prateada, que ficava prateada com aquela luz vinda da noite fosse qual fosse o tamanho da claraboia a rasgar a prisão por nós escolhida. Mas prateado nunca me pareceu a nossa cor. Prateado é frio, é adorno de mesa e fio de pescoço. Eu achava que nós éramos cor-de-crepúsculo-que-foge, sim, uma cor tingida, camaleónica e suja de cheiro a corpo.
Mas gostava de ter visto. Sempre duvidei ser prateada.
Não o amava. Julgo que é preciso isto estar escrito para clarificar as coisas que aqui se vão dizer. Também, para começarmos esta história com um dado que considero justo revelar agora, não estou viva: sou um defunto.
2
Nascimento
Nunca gostei do meu nome. Só agora, morta, sei apreciar esta conjugação de consoantes com vogais paranormal: há qualquer coisa de indevido em Regina. Dizê-lo é crocante e mordente, é até carnal e incendiário. Devia ter estimado melhor estas três sílabas tão pequenas e tão capazes de carregarem o eco estrondoso de tantas sensações instigantes. Mas eu achava o meu nome acre, uma baforada desagradável saída da minha boca cada vez que tinha de o dizer. Ou então uma baforada de cheiro a fêmea: Re-gi-na. Cadela. Cio. Boceta. Vagina. E nas prateleiras dos supermercados outros cheiros: chocolates vestidos de mim a fazer farra, como se eu fosse de engolir de gula. Chocolates Regina: desde 1927 a fazer o mundo doce. A deliciosa marca portuguesa de chocolates mais querida de várias gerações. Os avós dos rapazes da minha escola comiam-me todos os Natais — poesia de quem espremia borbulhas.
Nada a fazer. Regina.
Julguei que os meus pais mo deram por despeito, por ter vindo para trucidar a liberdade que lhes enchia os bolsos remediados, pronta a ser sacada nas ventas dos amigos bem-de-vida como trunfo mal se queixassem de não ter vida, Porque os filhos, os filhos..., e os meus futuros pais completavam, Os filhos fodem-vos a liberdade e até as fodas. Era assim que era até se dar a metamorfose não programada: eu. Acidente ou distração ou tédio ou a perversidade do medo da solidão. Então, Os filhos fodem-nos a liberdade e as fodas, Regina. Bastaram três sílabas para destruir uma frase e duas vidas inteiras Primeiro a da minha mãe. Depois a do meu pai. Sei disto porque mo diziam. Mentira . Ouvia-o por todos os lugares da casa, será mais verdade assim. Vinha das discussões que faziam bater portas, vinha do vento das portas que depois fechavam como guilhotinas a cortar o ar. Ainda por cima tem um nome filho da puta, dizia o meu pai. Como a tua mãe, respondia a minha. E eu sem conhecer a mãe do meu pai passei a gostar dela em segredo por ter um nome tão filho da puta como o meu.
Dava-se isto era eu já uma menina capaz de fazer contas de dividir com resultados de casas decimais.
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