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Os Raphaëls partem a meio da noite, deixando tudo para trás.
Sofás, cadeiras, camas, candeeiros, os pesados tapetes e a mesa de jantar. Os filmes que fizemos estão numa caixa, juntamente com o projetor, um conjunto de pinturas a óleo e uma tela em branco. Nela, há uma nota onde se lê: «Para a Charlotte». Respiro com dificuldade, o ar, cortante, chega-me a custo. Se não fosse aquela nota, talvez pensasse que estava a sonhar. Ao vê-la, sei que os Raphaëls partiram realmente.
Consequentemente, os rumores circulam pelo edifício. Os Raphaëls não deixaram tudo. Levaram as pratas. E os quadros? Os quadros simplesmente desapareceram.
Bruxelas, Bélgica Agosto de 1939
Antes
CHARLOTTE SAUVIN, 3.º ESQ.
Na manhã de sábado, ainda cedo, acordo com as pancadas na porta do nosso apartamento. Atiro os cobertores para trás, salto da cama e corro pelo comprido corredor de mosaicos terrazzo. Mas sei quem bate. Consigo ouvi-los.
Ouvimos todos os sons deste edifício.
Através dos vidros finos e ondulados das janelas, dos espaços entre os caixilhos e as portas, dos buracos toscos em volta dos canos e dos fios, das subidas e descidas que ecoam pela ampla escadaria de pedra e pelo estreito poço do elevador, todos os sons passam. Os rangidos, os gemidos e os suspiros, o som da água a subir pelas torneiras e do jato a sair, o zumbido dos radiadores, as fífias do saxofone do Dirk, os passos de pés calçados com meias, o bater dos tacões dos sapatos de couro sobre o chão de madeira macia, o rodar das chaves nas fechaduras, o bater das portas, o estalido agudo dos trincos e as vozes. A Sra. Hobert a gritar com a tia surda pelo auscultador do telefone, o coronel a dar ordens ao Zipper, o seu obstinado bouvier, e a Annick, no rés do chão, a repreender o marido, o Sr. Everard, o notário que administra o prédio.
O meu pai já se levantou e está a fazer café na nossa cafeteira italiana simples, e eu vislumbro as suas costas delgadas e direitas e o brilho do seu sorriso quando passo pela porta da cozinha e viro na esquina, sentindo a pedra fria sob os pés descalços, enquanto atravesso três conjuntos de portas duplas envidraçadas – para o escritório do meu pai, de um lado, e para as nossas salas de estar e de jantar, do outro –, chegando, por fim, à porta do apartamento, de painéis maciços, e abrindo-a para encontrar o Julian com uma expressão divertida no rosto pálido, de máquina fotográfica na mão, encostado à pesada balaustrada de carvalho. A Esther está a seu lado. Através da janela do patamar, o sol transforma a massa de caracóis do cabelo dela numa sarça ardente, enquanto do cesto que segura sobe um cheiro a fermento doce. A Sra. Raphaël mandou trazer pão para o nosso pequeno-almoço.
A porta dos Raphaëls está entreaberta e, do outro lado do amplo patamar, apanho um vislumbre do vestíbulo deles. Os nossos dois apartamentos são imagens arquitetónicas espelhadas. Mas é aqui que termina qualquer semelhança. O nosso apartamento é sóbrio e discreto, com mobiliário simples e linhas elegantes, enquanto o dos Raphaëls é uma mistura de padrões, complexidade e tesouros. Um museu. O seu grande vestíbulo está repleto de quadros, que são também meus bons amigos. Já passei tempo com eles, já os estudei, absorvi cada pincelada, forma e mudança de tom. A energia deles inebriou-me. Seria capaz de descrever pormenorizada- mente cada um, de forma quase perfeita.
Ouço um ruído e uma pancada quando a Incarna, a mulher da limpeza que tem um corpo em forma de polegar, aparece. Resmungando em espanhol, olha para nós três conforme se dirige para a porta e a fecha com estrondo.
– Despacha-te – O Julian atravessa a nossa porta, com a Esther logo atrás. – A luz.
*
Vesti-me à pressa, passei um pente pelo meu cabelo fino e emaranhado e juntei-me ao meu pai, à Esther e ao Julian à mesa, onde bebemos café e comemos pão à luz clara da manhã. O meu pai faz perguntas sobre a máquina de filmar, às quais o Julian, a pessoa mais inteligente e séria que já conheci, responde com grande seriedade. Como é possível que ele tenha apenas dezoito anos e seja um ano mais velho do que eu? Olho para ele. Tem olhos profundos e conhecedores. Meu querido, compreendo-te quando falas. Leio os teus silêncios. Conheço-te, tal como conheço os quadros. És o mais próximo de um irmão que alguma vez terei.
– A usar uma câmara de filmar no sabat? – pergunta o meu pai, com uma piscadela de olho para a Esther, que tem a minha idade. Ele sabe que os Raphaëls não são religiosos, não a esse ponto, nem, aliás, o meu pai o é, que acredita apenas na divindade da natureza e na crueldade caprichosa de Deus e do homem. Mas, como sempre, está a tentar arrancar um sorriso ao Julian ou a provocá-lo. Raramente consegue.
– Vou deixar o descanso para os mortos. – O Julian não está a sorrir, mas está divertido.
– E quem melhor do que eles? – O meu pai ri-se.
– A luz – diz o Julian, virando-se para mim.
O Julian, a Esther e eu saímos para a praça, como fazíamos quase todos os sábados de manhã quando éramos mais novos. A máquina de filmar fez de nós novamente crianças e, por um breve período, libertou-nos do peso do mundo em queda.
*
O Sr. Raphaël trouxera a máquina de filmar dos Estados Unidos, num desses raros e perfeitos dias de verão belga, um dia de tal intensidade e contraste que até eu conseguia ver as nuvens a flutuar pelo céu. A máquina é um protótipo fabricado por uma empresa norte-americana. O Sr. Raphaël contou-nos que tinha sido um presente do proprietário da empresa, um homem chamado Bellow, natural de Chicago, e que, ao experimentá-la na travessia de regresso à Europa, quase a deixara cair no oceano, quando uma enorme onda sacudira o navio.
– Na verdade, o Bellow nem sequer ruge (1) – começou o Sr. Raphaël, com o seu rosto radiante, um rosto como o do Julian.
Ou melhor, o Julian é que tem o rosto parecido com o do pai, só que mais magro e com os ossos elegantes da mãe. A Sra. Raphaël continua a ser muito bonita. – Tem uma voz suave e o verdadeiro nome dele é Belov. Além disso, não é de Chicago. É da Rússia e, quando chegou à América, também de barco, só falava russo. E um pouco de iídiche.
O Sr. Raphaël ficara a saber tudo isso frente a uma cerveja e umas salsichas no restaurante Berghoff, em Chicago.
– As pequenas ironias – continuou, com aquela voz expansiva que usa quando sabe que tem público – tornam a vida deliciosa e terrível. Sabem, foi a melhor salsicha alemã que alguma vez comi e será, sem dúvida, a última.
Pouco depois, a Sra. Raphaël baniu firmemente todos os produtos alemães, quer se tratasse de música, comida ou língua. Dizia simplesmente que não os permitiria. «Seja como for, as salsichas fazem-me gorda», acrescentara.
Então o que terá o Sr. Raphaël feito com a sua coleção de discos de Wagner após esta declaração? Nunca saberei.
*
Desde que o Sr. Raphaël trouxe a câmara para casa, temos filmado quase todos os dias, e esta manhã apetece-me que a vida fique igual por mais algum tempo. O Julian partirá para Inglaterra daqui a uma semana, para Cambridge, onde está a estudar Matemática.
– E nem sequer foi uma palestra – diz ele, com admiração. – Foi um debate.
Vejo a tão familiar expressão concentrada do seu rosto, enquanto as mãos mergulham nas dobras escuras da tenda improvisada onde carregamos o filme.
– Wittgenstein estava ali sentado, mesmo no meio de nós. Como se fosse um de nós.
Wittgenstein é um filósofo e matemático que o meu pai também admira muito.
– Estiveste a debater com o Wittgenstein? – pergunto.
Ouço o zumbido do filme a enrolar. A pele do Julian parece ainda mais pálida sob a luz sombria da igreja.
– Nunca. Mas outro tipo, sim. Turing. Um indivíduo brilhante. Estranho, mas, na verdade, todos eles o são. Todos nós. Eu tomei notas desenfreadamente. Discutiram sobre o paradoxo do mentiroso. Conheces?
– Não tenho a certeza.
– Se eu sou um mentiroso e digo que sou, não posso ser um mentiroso, porque, se digo que estou a mentir, devo estar a dizer a verdade, logo, não sou um mentiroso.
– Ou és um mentiroso que desta vez está a dizer a verdade – replico.
Aproximo-me, o cheiro dele a misturar-se com o do ácido do filme. Mesmo que quisesse, não conseguiria descrever o cheiro do Julian, e também não valeria a pena, bastando dizer que também isso eu conheço.
– Nesse caso, não sou realmente um mentiroso, não é? Mas se eu disser que estou a dizer a verdade, devo estar a mentir, a não ser que diga que sou mentiroso e, nesse caso, mais uma vez, estou a dizer a verdade – declara, obstinadamente.
– Isso é tudo um disparate. A verdade é que não se pode prestar atenção ao que as pessoas dizem. O que importa é o que elas fazem. E, neste caso, ninguém fez nada. Disseram coisas. Não me parece que seja esclarecedor.
– Tu e Wittgenstein concordam nesse aspeto.
O mecanismo para, o filme deixa de rodar. O Julian ajusta a mão na tenda e ouço um zumbido quando recomeça a bobinar.
– Já acabaste? – pergunta a Esther, do outro lado da praça, onde está a acariciar um gato vadio numa varanda, tentando mantê-lo ali até o Julian poder filmá-lo.
– Quase – responde o Julian.
Eu podia lamber a orelha do Julian, mordê-la, como fazem os gatinhos quando estão a brincar. Uma madeixa de cabelo cai-lhe sobre o olho, e eu afasto-lha. Gostava de pensar que sou a única pessoa em quem ele confia, mas tenho a certeza de que isso seria arrogância da minha parte e que sou tão suscetível como qualquer outra pessoa de me pôr no centro de uma história que pouco tem a ver comigo.
– Já está. Podes soltar.
Solto a alça, o Julian tira a máquina de filmar já carregada com um filme, e guardo na minha mala o rolo que ele acabou de bobinar.
O Julian encosta um olho à lente da câmara, fecha o outro e começa a filmar.
As filmagens têm sido uma ótima distração. Afastaram o Philippe da minha mente.
*
Em junho, o Philippe despediu-se de mim na estação de comboios. O semestre tinha acabado na academia de Antuérpia, onde ambos estudávamos, e eu pensava que ele viria a Bruxelas para conhecer o meu pai e os Raphaëls, mas ele disse-me que não tinha tempo para isso. Ia regressar a casa, em Paris, e depois ajudaria os pais a atravessar os Pirenéus e a ir para Espanha. Estava preocupado, fora brusco e não parecia ter pensado em mim, o que, admito, me magoou. Não que o tenha demonstrado. Limitei-me a dizer que me parecia uma viagem muito cansativa para umas férias.
– E é. Por favor, não fales disto a ninguém. Nem mesmo ao teu pai.
Como poderia não me sentir ofendida com as suas palavras?
No entanto, não fiz mais perguntas nem deixei transparecer que me sentia magoada. Não é do meu feitio. Não mostro as emoções dessa maneira. Não posso. Fui educada para ser forte e não posso ser, simultaneamente, forte e emocional. Talvez uma pessoa melhor do que eu pudesse, mas eu não sou essa pessoa e não posso fingir ser o que não sou. Mesmo que pudesse, não o faria.
O Philippe insistiu em sentar-se comigo na sala de espera da estação, uma catedral de espaço ressoante. No meio do alvoroço e das vozes que ecoavam nas paredes à nossa volta, as nossas eram silenciosas. Quando o meu comboio foi anunciado, ele pegou na minha mala, avançámos por baixo da cúpula de ferro e vidro do terminal central e caminhámos ao longo da plataforma.
– É uma indignidade – explodiu.
Pensei que se referia ao facto de estar a levar a minha mala, por isso tentei tirar-lha.
– Mas que raio estás tu a fazer?
– Se achas que é uma indignidade, eu levo a porcaria da mala. – Não estou a falar da mala. Falo desta salgalhada. – Acenou com o braço livre, apontando para a estação. – É uma amálgama arquitetónica.
– Achas que é uma anedota?
– Para mim, é.
Percebi que o Philippe contestava o conjunto de estilos arquitetónicos da estação, uma junção elogiada por muitos. Mas o Philippe é um purista, um minimalista. E estava de mau-humor.
– Quem diz o contrário é um impostor que deseja ser visto como um intelectual. Não me digas que não concordas – acrescentou.
– Antuérpia é um lugar sombrio.
– E o que é que isso tem a ver?
– Olha aqui. A luz. Tanta luz.
Ele parou de andar e voltou-se para mim.
– Achas bonito?
– Se a luz é beleza, sim. Acho.
– Já não sei nada.
Procurava a luz nos olhos do Philippe, mas só vi a sua testa franzida, a linha tensa do seu maxilar. Pousou a minha mala, puxou-me para si e beijou-me. Consegui sentir-lhe a energia e a fúria no corpo, enquanto os seus braços me rodeavam. Correspondi ao beijo, sentindo no meu corpo a mesma fúria e energia.
Era contagiante. Eu desejava-o. Naquele momento, acho que ambos compreendemos que tínhamos de nos ter um ao outro.
Não dissemos mais nenhuma palavra depois disso. Ele pegou na minha mala e carregou-a durante o resto do caminho ao longo da plataforma, ajudou-me a chegar ao meu lugar, beijou-me novamente e saiu do comboio. Conforme se afastava, pude vê-lo ali à espera, com as mãos nos bolsos das calças de linho, a olhar para o teto, como se visse a própria morte através de todo aquele vidro. Observei-o até desaparecer de vista e só então percebi que todo o meu corpo tremia.
*
De regresso dos Estados Unidos, o Sr. Raphaël parou em Londres, onde encontrou um projetor. Disse-nos que os quadros nas paredes eram poucos e dispersos e, portanto, uma tarde, quando a Sra. Raphaël saiu, ele ajudou o Julian a retirar o quadro maior da sala de estar, deixando à vista um retângulo nu, um pouco mais pálido do que o resto da sala, e um círculo irregular no ponto em que a parede tinha sido rebocada. Quando regressou, a Sra. Raphaël insistiu em deixar ficar o gancho, para que o quadro voltasse a ser pendurado entre as sessões e, por isso, em todos os filmes que vimos, lá estava o gancho de latão, a meio da parte superior da imagem.
A Sra. Raphaël mostrara-se tão inflexível que me fez pensar se não haveria ali algo mais do que aquele círculo de gesso.
Víamos os filmes vezes sem conta, e depois víamo-los de trás para a frente. O Julian gosta particularmente de os ver desta maneira. Filmámos o coronel que vive por baixo do nosso apartamento, no segundo andar, com o Zipper, o cão que comprou depois da morte da mulher. O Julian filmou o Zipper a engolir comida e depois a vomitar grandes pedaços por mastigar no chão salpicado do terrazzo. No nosso ecrã de gesso, a boca do Zipper converteu-se num aspirador que sugava a comida vomitada.
Filmámos uma chuvada intensa de verão, uma monção, e vimos Deus a erguer a chuva do solo, como uma cortina de palco.
*
O gato vadio ainda está a descansar ao sol quando o Julian começa a filmá-lo. Boceja. Acho que um bocejo de trás para a frente não é lá muito interessante.
Estou de caras para o nosso edifício e suficientemente afastada, do outro lado da praça, para conseguir vê-lo por completo. Adoro este prédio. Acho-o modesto e confiante, nobre mas ainda assim indiferente às opiniões dos outros. Atraente. Sei que a sua simetria atraiu o meu pai – os dois apartamentos idênticos em cada um dos três andares superiores, um apartamento no rés do chão virado para um átrio grande, de teto alto, e um quarto de empregada no centro do último andar, no telhado. A fachada de tijolo, as varandas de pedra e as espessas paredes exteriores dão a impressão de uma fortaleza, impermeável a tudo à sua volta e, de certa forma, é mesmo assim. O número 33 é um mundo em si mesmo.
Não sei se é o zumbido da câmara ou a nossa intrusão na sua sesta, mas o gato levanta-se e atravessa a rua a correr no preciso momento em que um carro dobra a esquina. O condutor desvia-se demasiado tarde e o carro bate no animal com uma pancada seca. O carro não para. Afasta-se a guinchar. E o Julian não para de filmar.
A Esther corre para o gato e agacha-se a seu lado, tentando estancar o sangue, mas já não há nada a fazer. As lágrimas escorrem-lhe pelo rosto, enquanto o Julian filma o gato a sangrar no chão.
Assisto a tudo. A maré de sangue que escorre sobre o crânio esmagado e o pelo macio do gato. Água sobre areia.
Olho para as enormes portas da igreja atrás de mim e vejo que o sangue também está a escorrer por baixo delas, inundando a praça. Há sangue por todo o lado. Os transeuntes avançam, sem reparar, por entre o sangue, que lhes salpica as calças e as saias. Agarro o corrimão de ferro que emoldura os degraus de cimento agora ensanguentados, sentindo as arestas lascadas da tinta velha, o metal frio contra a palma da minha mão. Olho por um momento para o céu brilhante, para o Sol, e a seguir para a praça onde o Julian está a consolar a Esther sobre as pedras secas do passeio.
*
Quando regressamos ao prédio e entramos no átrio que cheira a sabão de pinho e às primeiras chuvas, estamos todos com um estado de espírito sombrio. O Julian corre à frente, escorregando, quase caindo, no chão acabado de lavar.
– Cuidado! – avisa, voltando-se para trás.
– Quero ser enfermeira – declara a Esther suavemente, quando começamos a subir as escadas atrás dele.
– E devias.
– Se tivesse mais conhecimentos, podia tê-lo salvado.
– Não podias. Ninguém podia.
Observo o Julian enquanto vai subindo as escadas.
– De qualquer maneira, é o que eu quero. Tu já sabes o que queres e é o que estás a fazer.
– E tu deves fazer o mesmo.
– A mamã é contra. Acha que eu não percebo aquilo em que me estou a meter.
– Lembra-a de que foste a única pessoa que conseguiu mudar o penso do Julian depois da operação ao apêndice – digo.
– Ela diz que isso não conta, porque o Julian é meu irmão e uma das pessoas de quem mais gosto, e que o verdadeiro teste será quando se tratar de um desconhecido. Ou de uma pessoa de quem não gosto.
– Ela é capaz de ter razão.
De cima, ouço a porta da casa dos Raphaëls abrir-se. O Julian já entrou. Subo mais depressa.
– E eu achava que eras minha amiga – diz a Esther, puxando-me a saia.
– Só se tratares de mim quando eu for velha e doente.
– Eu também serei velha...
– Um mês mais velha.
– E provavelmente doente, portanto não vai dar.
Chegamos ao patamar do segundo andar e a Esther abraça-me.
É um gesto impulsivo. Compreendo-o e tento não mostrar a minha impaciência. Concentro-me antes na vista do pátio, sem alegria mesmo no verão, através da janela octogonal do patamar. Lembro-me de como o Julian e os seus amigos costumavam brincar nesse pátio. De como certa vez tinham feito um desafio e um deles, um rapaz chamado Guy, saíra pela janela do Julian em cuecas e caminhara ao longo do estreito parapeito de pedra. Todos pensámos que o Guy ia cair e morrer, mas ele trepou à minha janela de pernas nuas e a sorrir. Mais tarde, lembro-me de o Dirk me ter dito que o Guy nunca poderia ter morrido porque era um vigarista e os vigaristas não morrem. Apenas mudam de forma.
– Queres dizer que ele é judeu – disse eu, estreitando os olhos. O Dirk não respondeu. Virou-se e foi-se embora.
A Esther está a tremer. Sinto a vibração no seu corpo macio e esguio. O cabelo dela cheira a rosas e olho para baixo, para a parte fina e cerosa dos seus caracóis. Sou quase uma cabeça mais alta do que ela. Foi o Julian quem herdou a altura do pai, o que é um grande alívio para o Sr. Raphaël, que tem um primo com uma filha gigante e um filho baixinho.
– Faz-me uma promessa – pede a Esther.
– O quê?
– Aconteça o que acontecer, não vamos chorar. A não ser que seja um final.
– Está bem. – Afasto-me e corro atrás do Julian.
*
Faço deslizar o comprido cortinado de veludo escuro e bato na porta da despensa.
– Um momento.
Deixo cair o cortinado e fico na escuridão, à espera que o Julian abra a porta para eu entrar.
A sala minúscula é quente e húmida. O Julian já tem a película mergulhada em água, para que a gelatina inche e permita a entrada e saída dos químicos.
– Luvas! – ordena, enquanto tira o filme da água e o mergulha num balde de revelador.
A lâmpada da câmara escura é como um sol a derramar a sua luz e, no brilho ténue, consigo ver as minhas luvas penduradas na borda do lavatório. Calço-as, enquanto o Julian agita o líquido no balde, certificando-se de que todos os fotogramas do celuloide estão cobertos.
– Pronto.
Enxaguo o filme no lavatório, enquanto o Julian prepara o banho de lixívia. Estamos tão próximos que consigo sentir a respiração dele na minha orelha.
A película de inversão requer mais passos, maior precisão. Chegámos a este processo depois de duas bobines arruinadas e de outra em que todas as pessoas da imagem pareciam fantasmas de celofane. Mas o trabalho compensa. Assim, não temos de enviar o filme para ser revelado e podemos projetá-lo de imediato.
Trabalhamos no nosso habitual silêncio. Ao contrário do resto da sua família, o Julian nunca foi muito falador e eu aprecio esse silêncio. Mas hoje ele quebra o hábito.
– Se houver uma guerra, eu vou lutar – diz.
– Pelos belgas?
– Por quem quer que lute contra os nazis. Luz!
Acendo a luz brilhante do teto. O Julian abre a porta e segura o cortinado para iluminar o pequeno quarto. Reparo que no seu rosto há uma intensidade selvagem que eu nunca tinha visto.
– Quero que penses em mim – diz ele. – Pensar em ti?
– Como numa oração – sugere.
Os olhos do Julian parecem ofuscantes. Desvio o olhar.
– Achei que não acreditavas nisso de rezar – digo.
– Eu nunca disse isso. Os pensamentos são energia. A energia transforma a matéria. A luz é energia. Tu, mais do que ninguém, compreendes como a luz pode mudar tudo, até o nosso filme. Luz! Deixa cair o cortinado e eu puxo a corrente para voltar a apagar a luz. Completamos as duas últimas etapas numa escuridão tensa. Sinto que está a tentar dizer-me mais alguma coisa que eu não compreendo, e sinto o peso da minha incompreensão. O sabor daquele ácido amargo chega-me à língua. E desta vez sou eu a quebrar o silêncio.
– Vou pensar em ti. Como havia de não pensar? Mas aqui não vamos ter guerra.
– Charlotte. Não és estúpida, por isso, por favor, não digas coisas estúpidas.
*
Quando atravesso o patamar em direção ao meu apartamento, sinto o impulso de correr escada acima para ir contar à Masha sobre o gato e o sangue na praça, pois foi ela que me disse que o místico anda de mãos dadas com o comum. Desde pequena que passo um tempo infinito com ela. É a guardiã dos meus segredos. Porém, quando dou a volta ao balaústre, lembro-me de que a Masha partiu.
Vi-a quando estive em casa nas férias da Páscoa, vinda direta da faculdade. Fui ao seu estúdio, o meu local de mistério e conforto. Recebeu-me com uma chávena de chá e uma caixa, acabada de abrir, de delícias turcas. Depois, limpámos o açúcar em pó caído em cima da mesa e ela pegou num belo pedaço de tecido e sacudiu-o. Ficámos a ver como caía em ondas.
– É azul – disse ela –, um azul muito claro. – Um céu de inverno – exclamei.
– Sim.
Enquanto ponderávamos sobre o ponto em que faríamos o primeiro corte, falei-lhe do Philippe.
A Masha ouviu, mas sem se pronunciar. Não sei bem de que estava eu à espera, mas acho que queria que ela me dissesse o que fazer. Tínhamos começado a prender um padrão de papel de seda ao tecido e, na minha frustração, piquei o dedo e o sangue sujou a lã. A Masha limpou-a rapidamente e a seguir dobrou o tecido e entregou-mo.
– Porquê?
– Tem de ser teu. Marcaste-o.
– Mas a mancha sai.
– Foi um sinal. O sangue é sempre um sinal.
(1) Brincadeira com o nome Bellow, que também significa rugido. (N. da T.)
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