
Podemos começar por escutar algumas vozes. Por exemplo, a de Eugénia Quaresma. Na entrevista ao 7MARGENS, publicada nesta quarta-feira, a responsável da Obra Católica Portuguesa das Migrações levanta dúvidas sobre a constitucionalidade das mudanças que o Governo pretende introduzir na lei da nacionalidade, nomeadamente no capítulo das restrições que se querem colocar ao reagrupamento familiar, um direito fundamental, garante “de uma integração estável” e de uma política humanista digna desse nome. Eugénia Quaresma alertava ainda: “Se o diploma permanecer como está, vai introduzir desigualdades e assimetrias dentro das próprias famílias. A capacidade de escuta e diálogo são cruciais, a bem da justiça e paz social.”
Escuta e diálogo, pelos vistos, foi o que não aceitaram os partidos que sustentam o Governo, apoiados ainda pela Iniciativa Liberal e pelo partido de extrema-direita: a votação do diploma foi adiada para Setembro, mas todos eles recusaram a possibilidade de ouvirem as associações que representam os imigrantes. Aliás, seria interessante que, além de um bispo católico, os responsáveis parlamentares de PSD e CDS-PP tivessem convidado também o xeque David Munir, imã da Mesquita Central de Lisboa, vaiado nas comemorações do 10 de Junho. Com certeza ele teria muito a dizer sobre o que podem um Parlamento e um Governo fazer em favor da inclusão – incluindo de muitas pessoas que são portuguesas, mas cujo nome ou tom de pele as cataloga como estrangeiras, como se isso fosse sequer um problema…
Na terça-feira, as comissões católicas Justiça e Paz existentes no país tinham publicado uma curta nota a defender que o combate à pobreza deve ser “um desígnio nacional prioritário” e que “o Estado como um todo, a sociedade civil e as Igrejas e comunidades religiosas” se devem mobilizar em torno desse objectivo. Tendo em conta que a pobreza é um fenómeno estrutural persistente há décadas no país, numa taxa em redor dos 20 por cento, a declaração conjunta da Comissão Nacional Justiça e Paz, Comissão Justiça, Paz e Ecologia dos Institutos Religiosos, e comissões diocesanas Justiça e Paz de Algarve, Aveiro, Braga, Évora Lamego, Santarém, Setúbal, Viana do Castelo, Vila Real e Viseu, é relevante, no momento “em que um novo governo inicia funções”. [ver 7MARGENS]
Círculos viciosos
Em Março, o Observatório da Cáritas Portuguesa publicou o estudo “Pobreza e Exclusão Social em Portugal”, no qual se assinalava precisamente que “embora nos últimos anos tenha havido alguma melhoria nos indicadores da privação material e social da população portuguesa, o ritmo do progresso é manifestamente insuficiente para atingir as metas estabelecidas na Estratégia Nacional de Combate à Pobreza”. Os progressos no combate a esse fenómeno foram “mais modestos” nos últimos anos que os observados “no período anterior à pandemia”, e “em várias dimensões, tem havido mesmo um retrocesso, nomeadamente no aumento do número de pessoas sem capacidade para ter uma alimentação adequada ou no número de pessoas em situação de sem abrigo”. [ver 7MARGENS]
Até hoje, no entanto, nunca o combate à pobreza foi uma verdadeira prioridade nacional, apesar dos planos já aprovados e de sucessivas declarações retóricas – e com a excepção de algumas medidas estruturais como as do primeiro Governo liderado por António Guterres – o alargamento da educação pré-escolar e a criação do então Rendimento Mínimo Garantido, hoje Rendimento Social de Inserção.
Sobre outros temas, a nota já referida das comissões Justiça e Paz recordava ainda que “particularmente preocupante é a deterioração do acesso à habitação e da garantia de condições mínimas de vida dignas, com o aumento das pessoas sem-abrigo e de famílias a viver em condições claramente desadequadas”. Hoje mesmo, ficou também a saber-se pelos dados do Instituto Nacional de Estatística que, entre 2023 e 2024, aumentou o número de pessoas que gastam quase metade dos seus rendimentos com a habitação (ligação só para assinantes).
Poderia juntar-se ainda, neste aspecto, o bloqueio que muitos jovens sentem na hora de pensar em fazer família – não têm casa, os empregos são precários, o horizonte de vida é escasso. No caso da Igreja Católica e de outras comunidades cristãs, que tanto insistem na importância da família, não se pode esquecer que todas essas condições – e desde logo, uma casa decente – são relevantes para que qualquer família possa viver de forma digna, saudável e justa. Círculos viciosos: se não há casas e se os mais novos dificilmente vêem futuro, como podem eles constituir família e aprender a pensar nos outros e não apenas em si mesmos? E como podem as sociedades renovar-se, se se recusam possibilidades de futuro aos de “cá” e se expulsam ou não se deixam vir as crianças dos de “fora” (sendo que os de cá e os de fora são conceitos absurdos numa humanidade que há muito passou a ser nómada e se movimenta por todo o globo)?
Recusas e retrocessos
Há uma semana, a maioria de direita no Parlamento recusou também a petição assinada por mais de sete mil subscritores e dinamizada pela Obra Vicentina de Apoio aos Reclusos (grupo católico do Norte) e pela Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, que solicitava uma amnistia para penas de prisão mais leves, como forma de resolver ou atenuar “muitos dos problemas do sistema prisional” como a sobrelotação, a falta de condições de higiene e outros. [ver 7MARGENS]
Aliás, honra lhe seja, o cardeal Américo Aguiar foi quase a única voz, entre os bispos católicos (houve também referências dos de Évora e Guarda) a falar do tema da amnistia, nesse caso a pretexto do Jubileu, chegando mesmo ao ponto de entregar uma carta no Parlamento falando do tema.
Poderíamos acrescentar a esta lista o anunciado retrocesso no direito ao fim da violência obstétrica ou os gravíssimos problemas no acesso ao Serviço Nacional de Saúde. Ao invés, a homilia do bispo de Viseu de domingo passado, na bênção dos finalistas do curso de enfermagem, ficou-se pelas enésimas referências ao “não ao aborto, à eutanásia e a outras formas de extermínio da pessoa humana”, não lembrando que esse “extermínio” se dá em todas as condições que tantas vezes não existem, para tanta gente, ao longo de toda a vida.
Também se poderia referir a ausência de políticas que combatam com eficácia a violência doméstica ou a emergência climática, entre outros temas, e nos quais a Igreja Católica e todos os crentes deveriam ter um papel activo. Ou também registar que Gaza e a Ucrânia continuam a ser questões geridas, incluindo a nível europeu, em função de interesses armamentistas e não da busca da paz – nunca houve, da parte do episcopado, nenhuma reacção às ideias que Nuno Caiado publicou no 7MARGENS como propostas para sensibilizar os católicos e a sociedade portuguesa para a urgência da paz e da não-violência.
Imigração, nacionalidade, família e reagrupamento familiar, combate à pobreza, habitação, humanização das prisões, violência doméstica e obstétrica, clima, guerra e paz. Aí está um bom guião para, a partir das intervenções dos papas, do pensamento social católico e do Evangelho, o cardeal Américo dizer aos deputados do PSD e CDS algumas coisas importantes.
Comentários