A Primeira República portuguesa nasceu com uma energia difícil de ignorar. Trazia consigo a retórica do progresso, a missão pedagógica de civilizar o país e a promessa de uma nova era, livre de superstição, atraso e privilégio dinástico. Foi um tempo de reformas entusiásticas, de expansão do ensino, de combate ao analfabetismo, de secularização militante e de racionalismo importado das Luzes francesas. Para muitos, foi um despertar.
O problema foi o resto.
A República alfabetizava, mas não democratizava verdadeiramente. Proclamava a liberdade, mas com asteriscos. As mulheres, por exemplo, continuaram arredadas da vida política. A cidadania plena era coisa de homens. Beatriz Ângelo, médica e contribuinte, conseguiu — por brecha legal e firmeza pessoal — votar em 1911. Foi a primeira mulher portuguesa a fazê-lo. E a última durante décadas. A lei foi logo “corrigida”. O gesto de Beatriz ficou como excepção incómoda: uma mulher que ousou reivindicar a liberdade que a República ensinava, mas não concedia.
É esta contradição que define o regime republicano nos seus dezasseis anos de vida. Quarenta e seis governos em dezasseis anos — uma média de quase três por ano. Golpes de Estado, levantamentos armados, revoltas nos quartéis, assassinatos políticos. O Parlamento era uma caixa de ressonância de fações em conflito, mais preocupado em derrubar do que em governar. A estabilidade foi um luxo que o regime nunca chegou a conhecer.
E, ainda assim, acreditou-se que Portugal podia impor-se no mundo. A participação na Primeira Guerra Mundial foi apresentada como gesto de maturidade política. Um país pequeno, em bancarrota, com fome nas ruas, decidiu enviar milhares de homens para as trincheiras da Flandres e para as campanhas em África. O objetivo era dar legitimidade internacional à jovem República. O preço foi altíssimo. Famílias destroçadas, soldados mortos, mutilados esquecidos. Internamente, a guerra agravou a crise. Mas no exterior, alguns republicanos foram promovidos. Afonso Costa, figura central do regime, viria a representar Portugal na Sociedade das Nações — como se o fracasso doméstico pudesse ser compensado com prestígio diplomático.
Entretanto, reescrevia-se a história à força da toponímia. Mudaram-se os nomes das ruas, das praças, das escolas. Onde havia reis, colocaram-se heróis republicanos. Onde havia santos, datas. A Avenida D. Carlos tornou-se Avenida Almirante Reis. A tradição foi apagada a lápis grosso, como se Portugal tivesse começado em 1910. Parecia inconveniente recordar que tínhamos oito séculos de história antes da República. Como se D. Afonso Henriques, os Descobrimentos, a Restauração ou o Marquês de Pombal fossem meras notas de rodapé.
O resultado foi um país dividido entre a exaltação simbólica e a desordem prática. A Primeira República queria ser escola, mas não conseguiu ser regime. Queria ensinar cidadania, mas não soube garantir direitos básicos. Queria progresso, mas viveu em sobressalto. Não lhe faltaram ideais. Faltou-lhe o essencial: estabilidade, inclusão e humildade histórica. A memória oficial ainda hoje a glorifica, como se tivesse sido o grande ponto de viragem da nossa modernidade. Mas a verdade é que durou pouco, caiu com estrondo e deixou muito por cumprir.
Portugal é mais do que a sua República. E a liberdade que se ensina deve ser também a liberdade que se pratica. Mesmo — ou sobretudo — quando quem a reivindica se chama Beatriz, e não Manuel.
Comentários