Nas ruas de Kowloon City anda-se sem sobressaltos, não é preciso dominar a arte de contornar pessoas no passeio, nem é preciso inclinar a cabeça para trás para ver o céu: aqui, muitos edifícios não vão além dos seis andares, verdadeiros pigmeus quando comparados com as torres de Central ou Causeway Bay.

Também não se avistam facilmente as joalharias e lojas de cosméticos que ocupam, porta sim, porta não, as ruas do centro de Hong Kong.

A zona em torno do parque -- que veio substituir a cidade murada de Kowloon -- está repleta de pequenos negócios, como mercearias, frutarias, talhos e lojas de produtos de medicina chinesa. O peixe seca ao sol em frente às lojas, ao som de ópera chinesa que emana de rádios a pilhas.

Tsang Chi Wai tem 73 anos e há 30 que vive em Kowloon City. Apesar de dizer que desde a transferência de Hong Kong para a China, em 1997, "tudo mudou", diz também que a sua vida é igual: todos os dias de manhã abre a pequena frutaria de esquina -- que não é mais que uma banca em L com os típicos candeeiros vermelhos -- e ali fica até o anoitecer.

O "tudo" que mudou foi, em primeiro lugar, em termos financeiros, diz à Lusa. Antes, cerca de meio quilo de bananas custava um dólar de Hong Kong, hoje custa seis, garante. A vida é mais cara, mas "melhor" porque "antes as pessoas eram muito pobres".

Outra mudança óbvia apontada por Tsang é que "há não muito tempo existia o aeroporto" e é por isso que "as casas são muito [mais] baixas", diz, numa referência ao aeroporto de Kai Tak, que fechou em 1998 e que obrigava a limites de altura na construção.

Os funcionários das lojas olham quem passa na rua, sorriem, mas quase todos dizem "No english". Henry Chong, de 25 anos, trabalha numa loja que vende produtos de peixe seco e de medicina chinesa. "Acho que é mais tradicional aqui, não tem muita gente. Gosto porque tem um ritmo mais lento", comenta.

A mercearia da senhora Lee fica mesmo em frente ao parque onde, até 1994, se erguia uma densa favela vertical -- em 1987, quando foi anunciada a sua demolição, 33 mil pessoas viviam nos 0,3 quilómetros quadrados da antiga fortaleza militar chinesa.

É sobre a cidade murada que Lee fala quando lhe perguntam pelo tempo antes da transferência: "Os negócios faziam-se 24 horas por dia, havia muita gente".

Apesar do crime, droga, tríades, prostituição, insalubridade e sobrelotação, a cidade murada -- que ganhou o seu estatuto de quase auto governabilidade por ter permanecido durante um período como parte do território chinês --, gera até hoje curiosidade e alguma nostalgia.

No entanto, para Lee tratava-se de uma questão de negócios e os "'bad guys' não perturbavam os residentes", garante. Atualmente, toda a área da favela é ocupada por um frondoso parque onde consta uma maquete do antigo bairro, algumas relíquias e fotografias.

Lee, de 61 anos, só gere a mercearia há oito, mas o negócio há muito que está na família. O avô abriu a loja em 1962 e Lee garante que está praticamente na mesma, "os mesmos produtos, a mesma organização", bolachas, batatas fritas, bebidas, frutos secos a peso.

"Gosto muito daqui, todos os meus familiares vivem aqui e gostam. Não consigo estar em Mong Kok ou Central, é muita gente, sinto-me desconfortável. Aqui é muito limpo, as pessoas são simpáticas, conheço-as, são velhos vizinhos e amigos", descreve.

Mas se Lee rejeita alguma nostalgia em relação à cidade murada, admite saudades do período colonial.

"Adorava o tempo antes da transferência, as pessoas eram mais livres. No Conselho Legislativo (parlamento) há muitos conflitos", diz, sem saber concretizar essa liberdade que as pessoas não têm "como antes".

"Na verdade, não há qualquer diferença na minha vida aqui, antes e depois da transferência", conclui.

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