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Apesar de não cumprir as metas de investimento em defesa, Portugal tem ativos que dão ao país vantagens no atual contexto geopolítico. A sua localização, com ligação direta ao espaço euro-atlântico e proximidade do Norte de África, pode ser um ponto estratégico para operações logísticas e de vigilância militar, quer no âmbito da NATO, quer no da União Europeia. A Base das Lajes, o porto de Sines e o espaço aéreo podem ser trunfos nacionais num cenário de conflito prolongado.
"Portugal beneficia de uma situação geográfica privilegiada e pode transformar o investimento na defesa num grande negócio", acredita o major-general Isidro de Morais Pereira. "A taxa de probabilidade de as suas empresas funcionarem de forma mais segura é mais alta na região da Península Ibérica, que pode funcionar como zona de interior e onde as empresas do complexo industrial europeu podem investir", afirma.
"No armamento, podíamos ser bons em tudo, é uma questão de escolhermos. Para acelerar o processo, o ideal é trazer know-how e fazer joint-ventures, atrair empresas de referência para trabalhar em conjunto com as empresas de ponta que temos cá. E já tivemos siderurgia, mas ainda temos uma metalomecânica muito boa, uma indústria de moldes forte, que podemos converter", diz o militar.
Portugal não tem hoje uma única fábrica de explosivos para aplicação militar, mas já teve uma Fábrica Nacional de Munições de Armas-Ligeiras, encerrada pelo governo em 2001, ou a Fábrica de Braço de Prata ou a Fundição de Oeiras. O país chegou a produzir os melhores canhões do mundo, de médio alcance.
"Hoje, o que se exige é elevadíssima tecnologia e vultuosos investimentos. Produzir um avião 6G, se esse fosse o objetivo, é um projeto que exige o recurso a diversas empresas. Por outro lado, parte do investimento em defesa pode ser pago com os lucros gerados pela produção militar industrial. Mas é preciso meter mãos à obra", lembra Isidro de Morais Pereira.
"Com custos de produção mais baixos do que países como a Alemanha, França ou os Países Baixos e um ecossistema crescente de startups ligadas à cibersegurança ou à inteligência artificial, Portugal tem condições para se tornar uma espécie de incubadora europeia de tecnologias de defesa de dupla utilização, civil e militar", diz.
Apesar das limitações orçamentais — e o ministro das Finanças, Joaquim Miranda Sarmento, já disse que não vai sacrificar o rigor orçamental para rearmar Portugal —, e de a defesa ser o último de dez eixos definidos no Programa do Governo, o país tem feito alguns investimentos em tecnologia de defesa, sobretudo através da Estratégia de Investigação e Inovação em Defesa, concebida no âmbito da participação no Fundo Europeu de Defesa (7,953 mil milhões de euros 2021-2027), onde já estão representadas mais de 40 empresas portuguesas, como a OGMA, a EID ou a Tekever.
Os setores prioritários estão identificados: sistemas não tripulados (drones e veículos autónomos), cibersegurança e guerra eletrónica, sensores e comunicações avançadas e sistemas espaciais com aplicação dual, falta captar investimento e reter mão-de-obra qualificada. "O que Portugal tem de fazer, para já, é não enterrar a cabeça na areia e deixar de andar a arrastar os pés ou protelar determinado tipo de decisões. O dinheiro, já sabemos, é sempre curto".
A ameaça que impende sobre a Europa é a guerra na Ucrânia, mas analistas acreditam que a Rússia poderá ter uma ambição maior, "a começar pelos países bálticos em geral e a seguir para aqueles que fizeram parte do Pacto de Varsóvia. Os avisos já foram feitos por Dmitri Medvedev, vice-presidente do Conselho de Segurança da Rússia desde 2020, e por outras figuras do Kremlin.
Para Isidro de Morais Pereira, "aquilo que os países europeus têm de fazer é apoiar a Ucrânia e garantir que a guerra não alastra". "A Rússia está-se a armar, 50% das despesas do Estado russo vão para o esforço de guerra e para o complexo militar industrial. Isto tem de ser lido com apreensão", considera. Atualmente, o perigo não é apenas a guerra convencional, seja na Ucrânia ou no Médio Oriente, mas a guerra híbrida, as redes de espiões, os ataques cibernéticos, a hostilidade no geral.
Como é que se convencem os portugueses e que o investimento em defesa é tão importante como o investimento na habitação? "Os portugueses não são diferentes dos outros, o que é diferente em Portugal são os políticos. A classe dirigente é que é fraca, não tem coragem para tomar decisões e para falar com verdade aos portugueses. Se for feita uma pedagogia, as pessoas acabam por compreender, não são estúpidas", reage Isidro de Morais Pereira.
De facto, as opiniões dividem-se e a sociedade civil defende coisas tão diferentes ou parecidas quanto refletem as resposta dadas pelo Bloco de Esquerda e pela Iniciativa Liberal à mesma pergunta: Portugal tem ou não de reforçar a sua capacidade militar e investir na indústria de Defesa? Onde, como e com que dinheiro?
"Portugal pode e deve repensar o seu investimento em defesa", na opinião do Bloco de Esquerda. "A revisão de prioridades é fundamental, para responder aos desafios deste tempo. Mas os aumentos previstos a nível europeu na indústria da defesa são inúteis e perigosos. Vamos gastar em defesa o que nos falta na saúde? A Europa já gasta o triplo da Rússia e tem mais militares do que os Estados Unidos. O que nos está a faltar não são mais armas. O que nos falta é segurança digital, soberania energética, garantir cadeias de abastecimento essenciais e novas formas de cooperação que garantam autonomia tanto de Trump como de Putin".
Para a Iniciativa Liberal, "Portugal deve reforçar a sua capacidade militar. A IL defende um investimento sério e estratégico na Defesa, não baseado em gastos automáticos, mas em critérios de eficácia e modernização. O contexto internacional exige que Portugal esteja preparado, alinhado com os compromissos assumidos na NATO e UE e com capacidade para proteger os seus interesses, nomeadamente no Atlântico".
Esse reforço, diz a IL, "deve passar por áreas como a ciberdefesa, a vigilância marítima, a interoperabilidade com forças aliadas e o desenvolvimento tecnológico. A IL defende também o aproveitamento do potencial da indústria de defesa nacional, com foco em inovação, competitividade e exportação".
Quanto ao financiamento, "acreditamos que, além de colocar o Estado com foco em áreas de soberania, há margem para melhorar a gestão do orçamento da Defesa, credibilizando a contratação, combatendo o desperdício e racionalizando estruturas. É possível fazer mais com os recursos disponíveis, desde que haja vontade de reformar e priorizar aquilo que realmente aumenta a nossa segurança".
"Vai haver sempre manifestações na rua. Sempre. Há no país pessoas tão inconscientes que continuam a dizer que são contra os investimentos na defesa, quando neste momento toda a gente devia ser a favor. Quando são eleitos, não é só para coisas boas, os políticos são eleitos para resolver problemas complexos e para aguentar ações de insatisfação da sociedade, que é livre", conclui o militar.
Trump faz barulho, mas é a Europa que não cumpre
O problema não é só português. A União Europeia continua sem uma estratégia de defesa clara, comum e operacional. Mais de duas décadas depois de declarar que quer "autonomia estratégica", os exércitos europeus continuam fragmentados, os sistemas de armamento são incompatíveis entre si, as cadeias de produção estão sobrecarregadas e há uma incapacidade crónica de agir em bloco.
A guerra na Ucrânia veio agravar este quadro. Se por um lado funcionou como incentivo para aumentar o investimento em defesa, por outro mostrou que a Europa depende quase totalmente dos EUA, quer em termos de armamento pesado, quer em termos de inteligência e coordenação operacional. Mesmo os países que mais investem — como a Polónia ou a Alemanha — têm dificuldade em manter um ritmo constante de produção e entrega de armamento à Ucrânia, o que levanta dúvidas sobre a capacidade de sustentar um esforço de guerra prolongado.
Além disso, a guerra Israel-Palestina ameaça arrastar outros países, o que terá consequências directas para a Europa, não só em termos de segurança energética, mas também de fluxos migratórios, instabilidade social e riscos terroristas. A entrada dos EUA no conflito obriga a NATO a redistribuir forças e recursos, expondo ainda mais a fragilidade da posição europeia.
A cimeira da NATO em Haia, nos Países Baixos, embora informal, acontece num momento de viragem. Com Donald Trump de novo na presidência dos EUA, o compromisso americano com a NATO poderá sofrer alterações significativas. A União Europeia vai ter de fazer muito mais do que apenas pagar a sua parte da factura, como atuar com visão, coesão e capacidade militar real.
Para já, os aliados da NATO acordaram aumentar os gastos em defesa para 5% do PIB até 2035 - 3,5% para despesas com armas e tropas, 1,5% para iniciativas ligadas à cibersegurança ou à mobilidade militar. Mas há muito que os EUA exigem mais participação dos outros países nas despesas da NATO.
Em 2014, depois da anexação da Crimeia pela Rússia, na cimeira da NATO no Reino Unido, em Gales, os aliados comprometeram-se a investir 2 % do PIB em defesa até 2024. Nessa altura, Barack Obama, então presidente dos EUA alertou: "Se temos uma defesa coletiva, isso significa que todos têm de contribuir. E tenho tido algumas preocupações sobre a redução das despesas com a defesa entre alguns dos nossos parceiros na NATO [...] A nossa liberdade não é gratuita, precisamos de estar dispostos a pagar pelos ativos, pelo pessoal, pela formação para a garantir".
Mas a discussão é ainda mais antiga. Já no final de 2002, antes da Cimeira da NATO em Praga, George W. Bush tinha dito que cada nação deve desenvolver capacidades militares e cada membro deve contribuir militarmente para a aliança. "Para alguns aliados, isto exigirá maiores gastos em defesa".
Passaram anos e, em 2016, na sua primeira presidência, Donald Trump foi ainda mais vocal: "Se não pagarem, não os defenderemos", disse aos aliados. E transformou o debate sobre financiamento da NATO numa questão de campanha interna em 2024, com o discurso "America First", e acusou países como a Alemanha, o Canadá ou a Espanha de "incumprimento".
Os Estados Unidos gastam cerca de 3,4 % do PIB em defesa (dados de 2024) — montante de todo o orçamento militar norte-americano, não apenas o associado à NATO. São o segundo país com maior percentagem de despesa em defesa em relação ao PIB (a Polónia é o primeiro, com cerca de 4,1 %). Os americanos contribuem ainda para 16% dos fundos comuns da NATO, que cobrem despesas administrativas, operações conjuntas, infraestruturas e investimento em segurança, e Washington chegou a pagar 70 % da fatura global da NATO.
O atual secretário-geral da NATO, Mark Rutte, tem encorajado o debate sobre o reforço dos objetivos de investimento, mas há resistências.
Portugal está entre os seis países da União Europeia que não atingiram a meta dos 2% do PIB em defesa, a par de Itália, Eslovénia, Luxemburgo, Bélgica e Espanha. No ano passado, o valor ficou em 1,58% do PIB, mais de quatro mil milhões de euros, e em 2023 em 1,34%, cerca de 3,5 mil milhões de euros.
O 24notícias perguntou, mas o ministro da Defesa Nacional, Nuno Melo, não respondeu como serão pagos os 5%, se sem a meta dos 2% Portugal consegue cumprir.
Em abril deste ano, o primeiro-ministro, Luís Montenegro, pediu a Bruxelas para acionar a cláusula de salvaguarda, excetuando das regras orçamentais europeias, nomeadamente da contabilização para efeitos de défice, investimentos a realizar em Defesa. Isso faria com que "nos próximos anos fosse possível investir mais na área da Defesa, mas sem prejudicar o caminho da sustentabilidade das contas públicas", disse então.
Espanha já considerou o novo objetivo de 5% pouco razoável e garante que fica fora, enquanto os Países Baixos calculam que para atingir a meta vão ter de gastar mais entre 16 mil a 19 mil milhões de euros. Mark Rutte propõe um plano faseado até 2032, mas há contra-propostas que variam entre 2030 e 2035.
Em 2024, as despesas militares na União Europeia (UE) totalizaram perto de 326 mil milhões de euros, o equivalente a aproximadamente 1,9% do PIB da UE.
Enquanto uns fingem que vão gastar 5% da produção económica em defesa, Donald Trump finge que está comprometido com o artigo 5.º do tratado da NATO, aquele que diz que o ataque a um dos seus membros é um ataque a todos. Resta saber até quando vai durar o jogo.
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