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Prólogo

— Ela matou-os. Matou-os a todos.

Outra vez. Ranger os dentes é tudo o que impede Elijah Cromwell, tesoureiro do nobre reino de Sollace e conselheiro do império mais vasto e forte de toda a História, de o dizer em voz alta. Conselheiro — ou, como o desgraçado do monarca gosta de lhe chamar, amigo — mais antigo da coroa ou não, o tom com que o faria não é tom com que alguém se dirija a um rei e continue a manter a língua colada à boca.

E Elijah Cromwell gosta bastante do som da sua própria voz.

Antes que o idiota esparramado no divã ao seu lado perceba o seu evidente desagrado, o tesoureiro levanta-se do conforto aveludado do seu cadeirão e caminha até à varanda: meio na esperança de libertar alguma da energia a fervilhar dentro de si, meio no desespero de se afastar do hálito nauseante do monarca, que bebe vinho como se fosse água.

Quem quer que tenha dito que os deuses têm os seus favoritos lá sabia o que estava a ladrar. Não há outra explicação para a forma como o bruto do homem bebe, bebe e bebe e não engorda, senão por ter a proteção de Runa.

Não que ter a proteção de uma estrela-cadente seja algo do qual alguém se possa gabar deste lado do Equador.

Lourenço Seruya junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 25 de junho, desta vez uma quarta-feirapelas 21h00. Consigo traz "Morte nas Caves", o seu mais recente livro, publicado pela Porto Editora.

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Neste que é o seu quinto livro, o escritor oferece-nos um policial cheio de surpresas e reviravoltas, que nos deixa a adivinhar até ao fim quem terá cometido o crime.

Alcançando o corrimão em meia dúzia de passos, Elijah para. A vista do camarote real é a melhor em todo o coliseu, mas é o som o que o alcança primeiro. Um poderoso rugido formado por muitos, inúmeros sussurros. Um maremoto composto por demasiadas gotas de água para se poderem contar.

A multidão está especialmente agitada hoje. O combate também foi particularmente sangrento. Pelos aplausos, parece até que acabaram de ver a companhia de dança real a dançar balé e não uma adolescente a esventrar sete homens com o dobro da sua idade e tamanho.

Homens que ainda jazem mortos, com as entranhas derramadas, aos pés dela. Homens que entraram na arena armados até à ponta dos cabe- los e mesmo assim alcançaram a proeza de perder contra uma... uma... uma criança que não trazia consigo nada mais, nada menos do que as suas unhas e dentes. Os dedos de Elijah apertam o corrimão ante a visão da jovem, sorridente mulher no meio da arena.

Impiedoso, o Sol torna o céu demasiado brilhante para se poder olhar diretamente; e como se a luz a jorrar pelo teto aberto do coliseu não estivesse já a cozê-los vivos, milhares de corpos a suar amontoam-se nas bancadas, milhares de vozes acotovelam-se no ar poeirento num único nome. Clamor. Prece.

Os urros são suficientemente altos para despertarem até a curiosidade do rei. Um feito, de facto.

— Que estão a chamar-lhe, Crom? — questiona o energúmeno, com a coroa quase, quase a cair do seu sedoso molho de caracóis grisalhos. Ou, pelo menos, é isso que Elijah percebe — a pergunta sai um tanto abafada. Ele supõe que isso tenda a acontecer quando se tem três quartos da cara enfiados num copo.

O tesoureiro sente uma veia pulsar na sua testa. Filho bastardo de Orus, este cabrão. Dono da maior biblioteca do mundo e não se dá ao trabalho de aprender a ler, quanto mais de aprender a falar línguas mortas. Oh, não. Nem pensar. Elijah aposta que o asno nunca folheou um livro de ilustrações até ao fim. O único certificado que tem em seu nome é a sua certidão de nascimento, e o maior feito que alcançou na sua vida medíocre foi casar. Sabe rabiscar a sua assinatura e já vai com sorte.

Não que o tesoureiro tenha alguma coisa contra isso. Muito pelo contrário, só torna o rei mais dependente de si. Hoje em dia, «um documento para o rei» é sinónimo de «um documento para o Lorde Cromwell». A maior parte dos escrivães já não se rala sequer em passar pela sala do trono para pedir a opinião do rei, vai diretamente ter consigo ao seu escritório.

— Crom?

O problema é que até pode ser um rei tolo, mas não deixa de ser o rei.

Amorsilia — responde o tesoureiro e, como uma nota do seu desprezo se escapa no seu bruto tom, aclara a voz e acrescenta: — Significa «Amante da Morte» na língua-mãe, Majestade.

Ele dá particular ênfase à última palavra. Embora o rei insista há anos em que entre dois velhos amigos o tratamento formal é dispensável, a verdade é que ajuda a suavizar as queimaduras frequentemente deixadas pelo atrevimento de Elijah.

O conselheiro é cínico, não suicida. Esforça-se por esconder os seus insultos em construções frásicas demasiado intelectualmente exigentes para o estulto asinino as processar. Contudo, se por algum infeliz acaso ele as apanha — normalmente, quando se apercebe de que toda a gente à sua volta não está a rir consigo e sim de si —, melhora-lhe o humor num instantinho ser relembrado de que está no topo da cadeia alimentar.

Sinceramente, quem sabe? Imbecil como é, talvez se esqueça mesmo.

— Porquê? — insiste o monarca em saber.

— Porque a morte a segue aonde quer que ela vá — explica-lhe Elijah, também ele seguindo a pequena, escanzelada figura dezenas de metros abaixo, vestida com um sorriso, suor, sangue — não seu, nunca seu — e aquilo que não passa de um lençol esfarrapado que o tempo, o uso e a areia escaldante da arena encardiram. Seguindo-a enquanto ela acena teatralmente à plateia extasiada. Enquanto lhes sopra beijos e tece profundas vénias na direção do camarote real.

Livro: “Gladiadora”

Autor: Catarina Silva

Editora: Manuscrito

Data de Lançamento: 18 de junho de 2025

Preço: € 18,90

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— Quem o ouvir falar até pensa que a morte o segue a si, meu caro! — As gargalhadas do rei soam no preciso instante em que a fedelha começa, de forma dramática, a limpar lágrimas invisíveis das bochechas, queimadas pelo sol. — Que mal lhe fez a miúda?

Elijah vira-se de novo para o companheiro, esquecendo-se da sua resposta mal o apanha a tirar uma migalha de pão do umbigo e a comê- -la, por pensar que ninguém o estava a ver.

— Não me diga... — Um longo, barulhento arroto interrompe o rei. — Não me diga que tinha entes queridos entre as vítimas dela!

Não desejo esse mal nem ao meu pior inimigo, ao meu melhor amigo muito menos.

Melhor amigo, pff. Se ele é o melhor amigo dele, Elijah não quer conhecer o seu pior inimigo.

— Não, Sua Alteza. Nada disso — responde, então. — Felizmente, a fonte da minha antipatia para com a rapariga é outra.

— E qual é, se é que posso saber?

— Ela nunca perde.

— Eu sei, foi por isso que a comprei.

— Penso que não me expliquei da melhor forma. Peço desculpa, Sua Majestade. O que estou a tentar dizer é que ela está a viciar o sistema de apostas — explica o tesoureiro. — O dinheiro que sai dos cofres após as lutas dela é aproximadamente quatro vezes mais do que aquele que entra.

Desta vez, Elijah não condena — completamente — a ignorância do rei. No início, não era assim. No início, era engraçado assistir a uma miudita de dezasseis anos a esbracejar com um objeto pontiagudo para aqui e para ali, a acertar no seu oponente por pura sorte, a sobreviver por pura pena de Niko. Só que agora, quase dois anos depois, já não tem graça, absolutamente nenhuma. As pessoas deixaram de apostar nela pela piada e passaram a apostar nela pela certeza de que vai ganhar.

Afinal, ganha sempre.

— Então, o que é que sugere, Crom? Que mande matar a minha melhor gladiadora? — ronca o rei, como se fosse a primeira vez que fariam tal coisa. Como se fosse ser a última.

Apesar de Elijah não falar, o seu silêncio fala por si.

— Ela é a favorita do povo. Eles amam-na tanto quanto a temem — continua o monarca enquanto ele se mantém calado. — Quem é que acha que eles vêm ver todos os dias? As bestas, humanas ou não, que a defrontam? Caríssimo, podia metê-la a lutar contra o ar, e as bancadas encher-se-iam na mesma! Se ao pôr do sol enviasse a ordem de morte dela, ao nascer teria um motim à porta do palácio.

Elijah suspira — internamente, é claro.

— Não, claro que não estou a sugerir matá-la, Majestade. — Porque, quer dizer, onde é que já se viu um rei mandar matar uma criminosa condenada à morte? — Penso apenas que está na altura de fazer uma ligeira alteração nos termos da sentença da... menina.

O conselheiro não se desmancha a rir a meio da frase por um triz. Elijah tem mais de «menina» do que a «menina» que cometeu um crime tão desumano e cruel que, ainda hoje, até os mais descrentes entre o povo se recusam a pronunciar em voz alta o verdadeiro nome dela.

Ante a sugestão implícita, todo o sangue que abandonou o rosto do monarca volta e se concentra nas suas bochechas.

— Espero que não esteja a pedir o meu consentimento para incriminar a pobre rapariga de magia negra e a mandar para a pira, Elijah! Isso... Isso... Isso é vil, mesmo para si! Certamente, não descerei assim tão baixo. Existe lei por alguma razão, e você conhece-a. — Claro que conheço, fui eu que a escrevi, seu infeliz, abstém-se o tesoureiro de comentar. — Sabe muito bem que não posso fazer isso!

O que ele sabe muito bem é que o rei é um fraco. Tem estômago para muita coisa, sobretudo vinho, só não para o que realmente importa.

Atreve-se a invocar a «lei»? A «lei» é uma farsa! A «lei» é um truque para dar a ilusão de que toda a gente, inclusive os piores dos piores, tem um julgamento justo. Sim, a «lei» deixa claro que o nobre reino de Sol- lace é civilizado, respeita todos os seres vivos e não tem algo tão bárbaro como a pena de morte.

Tem, em vez disso, a penaliticias maximarium — a chamada «pena máxima», que dá a todos os seus condenados, cujos crimes foram tão horrendos que até uma vida na cadeia não é castigo suficiente, o direito de lutarem na arena até a coroa os julgar merecedores de perdão. É uma última oportunidade de defenderem a sua honra.

Mas a maldita da miúda já está na sua quingentésima vigésima quarta última oportunidade.

Não é incomum um gladiador sobreviver dez, ou vinte ou até trinta vezes. Mas quinhentas e vinte e quatro vezes? Um dia destes, a novidade acaba. Daqui a pouco tempo, as pessoas deixarão de a ver por aquilo que ela é — uma criminosa, uma assassina — e passarão a vê-la como uma favorita dos deuses, uma eleita!

O sistema de apostas viciado é apenas o princípio, o primeiro aviso de que, mais cedo ou mais tarde, os plebeus vão começar a fazer perguntas sobre o como e o porquê de ela sobreviver há tanto tempo, e a resposta mais simples e óbvia que as suas pequenas, incultas mentes irão arranjar é que ela tem ajuda divina. A pirralha vai de ralé a realeza num piscar de olhos.

Por cima, é claro, do frio e duro cadáver de Elijah.

— Mande-a para Whitecliff — sugere, como se tivesse acabado de pensar nisso.

Previsível. O rei abre imediatamente a boca — por certo, para apontar uma falha na ideia ou simplesmente para tentar mostrar que é mais inteligente do que Elijah, e ficar-se pelo tentar. Só que vários segundos passam, e não sai nada. O espanto queda-o mudo.

Se o tesoureiro soubesse que era só isto que precisava de fazer para o calar, já o teria dito mais cedo. Anda a meditar nesta solução há meses, a inspecionar cada asterisco à lupa, a pesar todos os prós e contras.

Por muito que lhe tire anos de vida admiti-lo, o rei tem razão ao apontar que as pessoas se revoltariam se a sua lutadora preferida aparecesse morta. O tempo tudo cura, porém. Seria uma questão de semanas, dias, com jeitinho, até as marés acalmarem. Nada que uma nova caça às bruxas — pelo bem e segurança do povo, claro — e umas quantas dúzias de esposas, filhas e netas queimadas na fogueira não resolvessem.

Os pobres acabam sempre por ir comer à mão que lhes bate, afinal de contas.

Além de que não é como que escandaloso ouvir dizer que um prisioneiro morreu. Não é segredo nenhum que as condições das masmorras são degradantes, e não são poucos os que lá morrem de frio ou fome. Porque é que a nossa querida, idolatrada Genevieve haveria de ser diferente?

Oh, se Elijah mandasse... Mas comer a rainha às escondidas ainda não chega para o nomear rei. Normalmente, ele trataria do assunto diretamente com ela, pena é que o mês de Orus tenha chegado nesta precisa manhã, e, nem o sol tinha nascido, já ela tinha atravessado metade do continente. A mulher tem fobia ao inverno, foge para o Sul todos os anos nesta época. E ele devia ter tido isso em consideração e não ter adiado a conversa, maldição!

Enfim, como Elijah gosta de dizer: não se chora sobre o leite derramado, chicoteia-se o culpado. E se o rei quer que ele respeite as regras do jogo, tudo bem, ele respeita as regras do jogo. A lei será cumprida. A rapariga terá — mais — uma última oportunidade de lutar pela vida.

Enviá-la para Whitecliff é uma sentença de morte, de qualquer das formas.

— Ponderarei no assunto — resmoneia o rei como quem não quer a coisa. Com o passar dos anos, Elijah veio a aprender que, na verdade, ele quer, sim, a coisa. E muito. — Por agora, enfiem-na de volta no buraco de onde a tiraram e deixem-me desfrutar do próximo combate.

Empinando o nariz, o monarca sacode a mão vazia, com a sua gene- rosa coleção de anéis partindo um brilhante raio de sol em infinitos feixes diferentes. Pela primeira vez em... sempre, Elijah sorri ao preenchê-la com um novo copo de vinho, cheio até à borda. O monarca aceita-o de bom grado.

— Quem sabe — o rei leva o cálice de ouro aos lábios — se ela morre amanhã e não temos de nos incomodar. — Dito isto, dá um gole maior do que a própria boca.

***

Mas Genevieve Silvester não morre. Nem nesse dia.
Nem no seguinte.
Nem no dia a seguir a esse.