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O som do choque metálico é constante. À volta, os comentários fazem-se ouvir enquanto os olhos não descolam do espaço da liça, terreno de torneios de tempos idos. No século XXI, a viagem no tempo faz-se até à Idade Média e os combates são tão reais quanto possível.
A Feira Casal São Pedro, em Dois Portos, concelho de Torres Vedras, foi pela terceira vez palco de combates medievais, a 14 de junho. Mas muitos outros locais no país também já acompanham esta modalidade. O 24notícias falou com os capitães das duas equipas presentes.
"O combate medieval é o mais perto que nós conseguimos estar, de forma segura, daquilo que era um combate medieval real"
Diogo Gouveia, capitão dos Serra Red Lions, explica que, no seu caso, tudo começou em 2017. "É uma modalidade que tem estado a crescer em Portugal, cada vez com mais equipas. E que, recentemente, deu um passo muito importante: todas estão juntas na APCOM - Associação Portuguesa de Combate Medieval.
João da Silva, capitão da Companhia do Punho de Ferro, juntou-se a este mundo dois anos depois, em 2019. "Tive conhecimento desta modalidade em conversa com o capitão de outra equipa, a Armis Nostrum, em Óbidos. E como na zona da minha área de residência, que é em Unhos, concelho de Loures, não havia nenhuma equipa, decidi avançar e criar uma".
Na prática, "o combate medieval é o mais perto que nós conseguimos estar, de forma segura, daquilo que era um combate medieval real. Ao contrário da recriação histórica, que são combates encenados — que também têm o seu mérito, têm o seu lugar nas feiras medievais, são entretenimentos para o público —, a nossa é uma modalidade desportiva, na maior parte das categorias full contact, ou seja, a pessoa pode dar golpes em todas as áreas do corpo do adversário, e há duas grandes divisões, as categorias individuais e as de grupo", aponta o capitão dos Serra Red Lions.
Do lado do capitão da Companhia do Punho de Ferro chega a enumeração dos diferentes tipos de combate individual. "Temos Espada e Escudo, Espada e Broquel, Arma de Haste, Espada Longa e Pro Fight. Especificámo-nos muito inicialmente no Pro Fight, algo semelhante ao MMA [Artes Marciais Mistas], mas armadurado, porque todos os elementos da equipa vêm de outras modalidades — principalmente artes marciais ou desportos de combate — e ganharam algum gosto ou pela vertente histórica, ou pelo comportamento de vestir uma armadura e utilizar armas que não deixam de ser réplicas, já que não têm gume nem ponta", explica João da Silva.
"Cada uma das modalidades tem a sua arma específica, com características específicas, e todas elas são regulamentadas de acordo com as regras das Federações Internacionais de Combate Medieval", acrescenta Diogo Gouveia, que realça que Portugal está já inserido na Buhurt Internacional e que aconteceu este ano o primeiro torneio oficial já a contar para o ranking.
Mas também existem combates de grupo. "Aqui no caso de Dois Portos fizemos um formato de demonstração de três contra três, mas que habitualmente em competição se faz de cinco para cinco, 12 contra 12, 30 contra 30 e já se fez 150 contra 150 — e essas, sim, são batalhas de campo, nos dias de hoje, o mais parecido a que nós conseguimos chegar quanto ao que aconteceria numa guerra medieval oficial", frisa o capitão dos Serra Red Lions.
Um hobby, mas com regras apertadas (e menos lesões)
Quando se fala em combate medieval, há regras a seguir. "Não só as armas, como também as armaduras e todo o equipamento que os combatentes utilizam, têm de seguir normas apertadas, por uma questão de segurança. É um combate muito intenso e quem teve a oportunidade de assistir realmente fica impressionado com a intensidade do combate e com os impactos", nota Diogo Gouveia.
"É importante todos estarmos bem protegidos. No final do dia queremos voltar a casa e temos os nossos empregos. Nós fazemos isto como hobby, é um desporto amador, todos temos as nossas profissões fora daqui, há professores, engenheiros, advogados, polícias, todo o tipo de profissões, que ao fim de semana são guerreiros medievais", acrescenta.
"Quem tem o equipamento devidamente adaptado a si tem menos probabilidade de sofrer lesões. Nós somos tanques autênticos dentro da liça"
Tal como em qualquer desporto, existe possibilidade de lesões. Contudo, embora por vezes aconteçam alguns imprevistos, até agora nunca foi nada substancial. "Esta deve ser das modalidades em que existem menos lesões. No futebol há muito mais lesões, em outras artes marciais também", considera.
"No caso da minha equipa, nós há uns tempos começámos a fazer judo e tivemos todos muito mais lesões do que temos no combate medieval. Estamos bastante bem protegidos, a modalidade está construída de forma a que as armas e as armaduras estejam verificadas por uma equipa que garante a segurança perante os combates", justifica o capitão dos Serra Red Lions.
"Quando ocorrem mais lesões, é devido à logística. Adquirir o material tem a sua ginástica, digamos assim. Quem está a começar a modalidade não tem logo o discernimento do que é que tem de arranjar, ou não está disponível financeiramente, e então há muito a união, até entre equipas, de emprestar material. Um tem umas luvas a mais e empresta, outro tem um capacete a mais e empresta. Mas o material, não estando adaptado ao combatente, também dá aso a que se criem algumas lesões, porque um elmo, por exemplo, que não esteja adaptado à face do combatente pode andar ali a dançar um bocadinho", completa João da Silva.
Para o capitão da Companhia do Punho de Ferro, "quem tem o equipamento devidamente adaptado a si tem menos probabilidade de sofrer lesões. Nós somos tanques autênticos dentro da liça e não se passa nada".
"Quando é por paixão é preciso investir um bocadinho"
Questionado sobre os custos deste equipamento, João da Silva faz a comparação com outro desporto. "Agora, qualquer pessoa, ao fim de semana, é adepta de ciclismo. Mas para se ir buscar uma bicicleta minimamente como deve ser larga-se entre 2.000, 3.000, 4.000 euros, se for preciso. Alguns mais até. Estou a falar do médio, não estou a falar do topo de gama, com quadros em carbono e coisas do género. E tenho a dizer que, com esse valor, 4.000 euros, vamos buscar duas armaduras completas, talvez não com o melhor dos aços", evidencia.
"Ciclismo, motociclismo, golf... Se calhar, agora, até a malta do padel gasta mais dinheiro em raquetes e material do que nós gastamos, ainda mais com o aluguer dos espaços", atira também Diogo Gouveia. E João da Silva remata o assunto: "É por paixão... quando é por paixão é preciso investir um bocadinho".
E é esta paixão que se reflete no que fazem. "Há qualquer coisa especial em poder recuar no tempo e passar um bocadinho por aquilo que passaram os nossos antepassados", reflete o capitão dos Serra Red Lions.
"Nós temos uma história medieval tão rica, somos o país que tem as fronteiras mais antigas desde a época medieval e conseguimos defendê-las desde aí. Temos muita história para mostrar e acho que uma das grandes formas também de divulgar a nossa história e a cultura é revivendo-a, demonstrando-a e passando-a a outras pessoas e a outras gerações", nota.
Nesse sentido, praticar combate medieval "é uma oportunidade única de quem vê desde pequenininho filmes e lê livros de cavaleiros e castelos. Fica lá o bichinho. Toda a gente quer ter uma espada em casa, não é?".
"Crescemos a levar com esse tipo de figuras e esse tipo de influências. Gosto de desportos de combate, gosto do armamento medieval, gosto da componente medieval, do facto de estar dentro de uma armadura. E se os outros acham que é ser tontinho... então ser tontinho é a nossa cena", destaca também João da Silva, da Companhia do Punho de Ferro. "Assumimos-nos como tontinhos medievais", esclarece depois Diogo Gouveia.
Quanto ao futuro, o objetivo é que a modalidade continue a avançar no país. "Temos estado a crescer bastante. E vemos cada vez mais impacto usando também as redes sociais. Temos muitas pessoas que vêm ter connosco e nos dizem 'olha, eu ouvi falar disto porque vi no YouTube, no Instagram ou no TikTok'. Se calhar, há quatro ou cinco anos, as pessoas chegavam mais por nos verem em eventos e hoje em dia não é tanto assim. E as gerações mais novas vivem uma grande parte do seu dia nas redes sociais, pelo que acabam por chegar até nós", conta o capitão dos Serra Red Lions.
No entanto, para João da Silva, é nos eventos que é realçado o impacto do combate medieval. "Sejam eventos oficiais ou eventos de demonstração, acho que têm a sua grande importância para a divulgação da modalidade porque é onde causamos mais impacto ao mostrar aquilo que sabemos fazer melhor".
Além disso, quando inseridos numa feira medieval, os combates fazem com que o evento "ganhe uma atração que tem um impacto muito significativo", já que a maior parte das pessoas nunca viu a modalidade e "ficam espantadas, porque estão habituadas apenas à recriação, não é? Porque é muito diferente, é dançar com as espadas, e aqui no combate a pessoa agarra-se à cadeira e à mesa e pensa 'afinal isto é a sério'", reflete por sua vez Diogo Gouveia.
"Quem fica a assistir depois acaba por perceber que o impacto é grande, mas que os combatentes estão a sair bem dos combates"
Por outro lado, as próprias equipas também ficam sempre a ganhar. "É mais um torneio para nós rodarmos, para termos experiência, para vermos onde estão as nossas falhas antes de irmos combater com equipas estrangeiras, por exemplo. E, parecendo que não, vem sempre alguém ter connosco perguntar onde é que treinamos e com que regularidade. Mesmo que nunca apareça, fica ali o bichinho ou vai falar aos amigos", frisa João da Silva.
Violência? Mais barulho do que outra coisa
Quem vê os combates medievais decorrer costuma deixar a nota de uma componente mais violenta. Porém, quem está dentro da liça não considera que assim seja. "Pode ser estranho principalmente quem não está habituado a uma modalidade de combate, qualquer que seja. Se vissem um combate de kickboxing, muay thai ou judo iam dizer a mesma coisa. Só não fazem tanto barulho como o combate medieval, pelas armaduras", evidencia o capitão da Companhia do Punho de Ferro. "
"São modalidades de contacto, seja como for. Até no râguebi pode haver mais violência, que há sempre umas cabeçadas, e qualquer desporto que envolva mais contacto físico causa impacto em quem vê", adianta.
Também o capitão dos Serra Red Lions destaca que "quem fica a assistir depois acaba por perceber que o impacto é grande, mas que os combatentes estão a sair bem dos combates".
"É um desporto que puxa muito, não só pela nossa capacidade física, mas também pela resiliência, porque o esforço que é exigido de combater com uma armadura que normalmente tem à volta de 30 kg é muito diferente de qualquer outra modalidade. Para quem gosta deste tipo de desafios e de história, para quem gosta da época medieval e quer ter a oportunidade de vestir uma armadura, acho que é uma oportunidade que não há em mais lado nenhum", conclui.
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