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Prólogo

Antes de sair desta casa, pela última vez, pouso uma carta, as minhas chaves e o livro cor-de-rosa naquela que foi, durante seis meses, a nossa cama.

Nesta carta, despeço-me dele e daquilo que fomos. Escrevi-a ontem à noite, enquanto chorava o que mais parecia ser um oceano, e assinei-a com o nome carinhoso que ele me chamava – Nô.

Não se deixem enganar, eu odeio-o. Aliás, não só o odeio como tenho a certeza de que deixá-lo é a única decisão que pode salvar a minha vida. Só assim não aparecerei a boiar no rio, como brinca o meu amigo Manel. Mesmo assim, o meu lado racional sabia que eu precisava de partilhar umas últimas palavras com ele relativas unicamente à nossa relação, e não às dinâmicas de partilhas.

A partir deste momento, vou chorar o luto da nossa relação apenas mais uma vez, mas lá chegaremos.

Podem estar a questionar-se sobre a razão pela qual decidi fazer o exercício doloroso de reviver tudo e de o retratar num livro. A verdade é que, a partir do momento em que saí daquela que foi a nossa casa, decorada única e exclusivamente com móveis que comprámos juntos, tentei genuinamente esquecê-lo: não falámos mais; não soube mais nada dele; não o procurei novamente e evitei, inclusive, lembrar-me da sua pessoa.

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No entanto, decorrido mais de um ano, ele continua a assombrar os meus dias e as minhas noites. Por vezes, vejo-o nalgum sítio e sinto logo o sangue a ferver e o corpo a ficar dormente. Como é que ele me encontrou? Só depois é que percebo que se trata apenas de um homem desconhecido. Já de noite, acordo inúmeras vezes a chorar, aterrorizada por sonhos em que ele me persegue novamente. Entendi, então, que precisávamos de um final.

Já vivi vários amores – nalguns, passaram-se anos e ainda quase dói estar afastada da pessoa; noutros, já não sentia nada antes mesmo de termos a «conversa final». No entanto, a única coisa que senti no fim desta relação foi um estado de total apatia. Ora, depois de muito refletir sobre o que me estaria a impedir de sentir o que fosse, conheci também o motivo que não me deixava prosseguir com a minha vida.

Se tivesse de caracterizar a nossa relação numa única palavra, seria «intensa». Isto, porque nunca tive uma experiência amena com ele ao longo destes anos. Às vezes, era intenso o quão feliz e em casa me sentia; noutras, era intensa a vontade que tinha de arrancar a pele do meu próprio corpo, para não ter mais de viver comigo mesma. Ele fez-me sentir de tudo, desde a mulher mais sortuda do mundo à maior merda que habitou a Terra. É assim que ele é – intenso. E foi assim que vivi durante dois anos – intensamente.

Livro: "A ilusão que amei"

Autor: Inês Teixeira Pinheiro

Editora: Singular

Data de lançamento: 12 de junho de 2025

Preço: € 17,75

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A minha amiga Chiara jura que o ato per si de acabar uma relação não a termina realmente; ela crê que existe um passo seguinte, que, para ela, se materializa no «sexo final», mas eu não podia discordar mais. Sexo é tudo o que não está confuso no fim de uma relação: ou a pessoa perde o encanto aos nossos olhos, ou há uma tesão nostálgica que surge e nos cola a essa pessoa, fazendo-nos sentir que precisamos dela. Não. Encontrar esta paz não tem que ver com sexo. Muito pelo contrário, é um processo emocional – é a aceitação final de que os sentimentos positivos e negativos que aquela pessoa nos proporcionou vão deixar de ser novidade.

É aceitar que não vai haver mais discussões, mais surpresas, mais sorrisos, mais abraços de consolo. Nada. O que vai restar, ao invés, são as memórias do que a pessoa foi para ti um dia.

E, nesse sentido, eu ainda não atingi o final, uma vez que mergulhei numa anestesia, com raras exceções, no segundo em que decidi pôr termo à nossa vida em casal, o que é raríssimo para uma pessoa tão emocional como eu.

O pior que ele conseguiu fazer foi transformar-me nele; numa versão feminina e mais sensível da sua pessoa. Assim, dei por mim a sentir o que ele sentia, a pensar como ele pensava, a agir como ele agia. Durante meses, converti-me nele e, quando deixei de permitir que tivesse esse ascendente sobre mim, demorei bastante tempo a encontrar-me. Sendo honesta, ainda sinto que certas partes de mim estão perdidas por esse mundo fora.

É precisamente esse o problema de correr o mundo com alguém ao nosso lado – inevitavelmente, em qualquer sítio por onde passamos, somos recordados do que foi viver aquela relação. Ou seja, fugir não é uma opção, porque as memórias do que nós fomos persistem por toda a parte.

Quando cessaram os maus-tratos e os momentos de agonia, ficou a memória do que foi vivê-los, acompanhada de um trauma imenso. Há que lamber as feridas! Assim, neste ato de amor próprio, urge aceitar o que vivi com ele, e, para isso, seria importante conseguir lembrar-me do que foi viver não só com, mas para ele. Por outras palavras, se quero ser capaz de racionalizar a nossa história, tenho de a saber contar.

O problema é que não me é possível visualizar essa história, devido a um nevoeiro de confusão que paira sobre ela. A nossa história tem um princípio, um meio e um fim, como todas, aliás. No entanto, quando a recordo, não consigo perceber onde encaixar cada sentimento em cada momento e em cada dia.

Para além de um elenco temporal, dizem que cada história tem duas versões. Não se trata de uma ser certa e outra errada, mas sim de ser contada do ponto de vista de cada interveniente. No entanto, a nossa não tem apenas estas versões. Acredito que haja aquilo a que ele chame de «o seu lado da história» ou, conhecendo-o demasiado bem, a Verdade, e, do meu lado, existem milhares de versões de tudo o que aconteceu entre nós.

Foi a herança da nossa relação: a incerteza. Incerteza do que fui, de quem sou, de como agi, de como amei, de como era amada, do meu valor, da minha inteligência, do meu amor próprio, do que deveria ter percebido mais cedo.

Por esse motivo, aqui me encontro – uma explosão de sentimentos e opiniões num só corpo de metro e meio a tentar viver cada dia, à medida que processo todos os momentos que passei com ele. Decidi deixá-lo aqui por escrito, para me obrigar a lidar com tudo o que aconteceu – o perfeito e o terrível, o assustador, o nervoso, o exaustivo.

Este ato torturante de reviver o que ele me fez vai atormentar o silêncio que tenho criado dentro de mim. Vai acabar este vácuo emocional que criei para compensar a intensidade de emoções que me fez sentir, porque aceitei que preciso de lidar com o passado, para que volte a funcionar tudo dentro de mim. Quero voltar a ser uma pessoa que se permite apaixonar e que consegue dormir sem ser assombrada por ele. Quero voltar a ser uma pessoa profundamente livre, que acredita merecer ser feliz.

Talvez escrever a minha breve vida com ele vá fazer-me não só recordar momentos que a minha mente decidiu apagar, como também iluminar os sentimentos que cada um me despertou. Afinal de contas, dizem que a nossa mente guarda e regista tudo, ainda que não nos consigamos lembrar, porque o trauma foi tão profundo que a adormeceu por alguns meses ou, por vezes, anos.

Sei que me vai custar reviver a nossa relação, porque, durante instantes, terei de voltar a cada sítio onde ele me deu vontade de desaparecer. No entanto, não posso continuar a fugir.

Enfim.

Bem-vindos à minha catarse.

Sejam eles quando forem, estes foram os meus dias com ele.