
Acompanhe toda a atualidade informativa em 24noticias.sapo.pt
Os antípodas, o outro polo, atraem-nos frequentemente. Assim, em busca de um sentido para o mundo e para as nossas vidas, preferimos as diferenças às similitudes, entre semelhantes o dissemelhante, não podendo resignar-nos a descobrir nos outros apenas o nosso reflexo, a viver e trabalhar só através da identificação. De facto, aprendemos mais sobre a apreensão de um mundo comum ao observar a procura conduzida por outros do que prosseguindo com dificuldade, sempre a dois passos da renúncia e à beira do abismo, a nossa própria investigação. É aí que a leitura nos alimenta, nos pode salvar do processo tortuoso, torturante, da escrita, e dar-nos força para continuar. Enfrentamos, de facto, os maiores perigos, aceitamos correr todos os riscos desde que se trate de levar o mais longe possível uma investigação, na qual o ser é inteiramente posto em causa, sempre a tentar decifrar e esclarecer através da anamnese, conforme o exemplo que nos foi transmitido por Montaigne, Chateaubriand, Rousseau ou Leiris.
Deste modo, é porque aparentemente ela se opõe, na sua forma, ao meu trabalho longo e labiríntico, e no entanto também ele em busca de uma verdade acerca do meu passado, que há vinte anos sigo com admiração a trajetória exigente e arriscada de Annie Ernaux, a sua escrita que não mente, dissecada até ao osso, pondo a nu a dor, a alegria, a complexidade de existir. Admiro que, de uma massa necessariamente complexa e profusa de sensações, pensamentos e sentimentos, ela consiga extrair a essência, escrevendo livros extremamente concisos, que parecem límpidos, mas nos quais a dificuldade dos procedimentos, da decifração, não é no entanto obliterada, estando sempre presente em filigrana e assinalada no próprio fio narrativo. Gosto das suas frases sem metáforas, sem efeitos, dos seus sílices afiados que operam em carne viva, ferem, e também que este movimento se tenha ainda acentuado nos anos mais recentes através de uma exploração cada vez mais arriscada, com uma precisão de entomologista, que vai até aos confins daquilo que aceitou dizer, acerca daquilo que dizemos ou não dizemos.
O constrangimento e a incompreensão, as reações de rejeição suscitadas por alguns que têm como ocupação ler, compreender e hoje a vilipendiam, e às suas explorações do ser como um todo, corpo e alma, provêm sem qualquer dúvida de motivos mais obscuros — políticos, misóginos ou conformistas — do que os da análise literária. Essas reações parecem-me um bom sintoma da resistência múltipla desencadeada a qualquer transgressão das fronteiras imutáveis, estanques ou tidas como tal, entre «o sabido, o conhecido» e outros territórios, intactos, inexplorados, os «territórios do Norte», tal como se estendem das fronteiras de Hong Kong até ao que era, ainda há pouco tempo, um outro mundo: a China. Quis, portanto, tentar que Annie Ernaux mostrasse quais as motivações profundas e as circunstâncias do seu gesto, da sua postura como escritora. Porque, pela minha parte, escolhi há muito tempo, como ela, o procedimento do condutor de caravanas, insensível aos latidos, e do gajeiro que nunca muda de rota nem falta ao seu dever: sei que é preciso, tal como o capitão Hatteras, perseguir tudo o que possamos dizer e sem virar costas. Tenho por único método o inconforto, único modo de não me limitar a reproduzir, de pelo contrário ultrapassar o que nos foi legado, ensinado, de realizar por fim o que nos dissuadiram de levar a cabo, e de assim forçar uma passagem. Para onde? Alguma vez o saberemos? Para uma verdade, sem dúvida: a nossa.
A entrevista, como outros géneros ditos «menores», não pareceu sempre apta a revelar, sob o efeito de uma solicitação exterior, o que na obra interrogada permanece muitas vezes implícito; estando, deste modo, pronta a abrir, talvez, algumas janelas novas. Na melhor das hipóteses, aquela forma pode mesmo conduzir a caminhos ínvios de que a obra não se serve. Daí este projeto antigo, ao qual Annie Ernaux em boa hora anuiu, com rigor e simpatia: trata-se, pois, de uma entrevista, no singular, uma vez que as suas diferentes fases estão encadeadas de modo a formar, ao longo de um ano, apenas uma interrogação dialógica, realizada inteiramente à distância, entre os nossos polos e continentes respetivos, segundo o ritmo próprio do correio eletrónico.
F.-Y. J., 28 de junho de 2002
Há seis anos que mantemos, Frédéric-Yves Jeannet, que vive nos Estados Unidos, e eu própria, uma correspondência ao mesmo tempo constante e espaçada. No seu livro Cyclone, publicado em 1997, eu reconhecera o envolvimento absoluto de um escritor numa busca cujo objeto, a ferida sempre viva, aparece e foge continuamente, e toda a beleza de uma escrita que retoma e mistura os mesmos motivos, lugares e cenas, numa sinfonia sumptuosa e dilacerada. Os livros seguintes, Charité e, mais recentemente, La Lumière naturelle, revelam a continuação dessa tarefa singular, sem quaisquer concessões. No ano passado, aquando de uma deslocação a França, Frédéric-Yves Jeannet perguntou-me se aceitaria fazer com ele uma entrevista sobre questões ligadas à escrita e aos meus livros, utilizando, por exemplo, o correio eletrónico. Seria algo de muito livre, sem duração definida nem finalidade precisa. Essa ausência de imposições, a própria incerteza do resultado final, a forma de diálogo inteiramente por escrito tentaram-me. Sobretudo, sabia que, pelo seu modo de viver a escrita, Frédéric-Yves Jeannet seria um investigador profundamente implicado. Não havia tantas diferenças, nos meios utilizados nas nossas tarefas respetivas, que as impedissem de me surgirem como uma oportunidade, uma espécie de garantia. Era na distância e divergência de pontos de vista que me poderia sentir simultaneamente mais livre e mais capaz de explicitar o meu caminho.
Durante praticamente um ano, sem regularidade precisa, Frédéric-Yves Jeannet enviou-me por e-mail um conjunto de perguntas e reflexões. Da minha parte, era raro responder imediatamente. Entre a formulação de uma resposta e o que se vai escrever estende-se um espaço angustiante, por vezes ameaçador. Durante uma entrevista oral, ainda que conduzida lentamente, esforçamo-nos por o ignorar e por o ultrapassar com maior ou menor facilidade e rapidez, é uma questão de hábito. Naquele caso, eu podia ter tempo para me familiarizar com esse espaço, para fazer surgir do vazio tudo o que penso, procuro, experimento, quando escrevo — ou tento escrever —, mas que permanece ausente quando não estou a escrever. Quando já tinha a sensação de ter agarrado algo de consistente, começava a escrever a minha resposta diretamente no computador, sem notas e com o mínimo de correções possível, segundo a regra do jogo que tinha imposto a mim própria.
Ao longo de toda a entrevista, não tive outra preocupação a não ser a da sinceridade e da precisão, revelando-se esta última mais difícil de conseguir do que a anterior. Não é fácil, sem a unificar nem reduzir a certos princípios, dar conta de uma prática de escrita iniciada há trinta anos. Deixar perceber as inevitáveis contradições. Mostrar pormenores concretos daquilo que, na maior parte do tempo, se esconde à consciência. O que liga as frases dos meus livros, lhes escolhe as palavras, é o meu desejo, e não posso ensiná-lo aos outros, uma vez que ele me escapa a mim mesma. Mas parece-me ser possível indicar qual o objetivo dos meus textos, transmitir as «razões» da minha escrita. Que elas provenham do imaginário não retira nada ao facto de verdadeiramente intervirem sobre a própria forma da escrita. Espero, simplesmente, ter conseguido exprimir algumas verdades individuais e provisórias — certamente a serem revistas por outros — acerca do que tanto ocupa a minha vida.
Percorri com curiosidade, prazer, incerteza por vezes, os caminhos abertos regularmente, com tenacidade e subtileza, por Frédéric-Yves Jeannet. Terei chegado, por essa razão, a outro lugar, como no voto que formulei no início da entrevista? Não, porque só a descida sem rede — talvez apenas como o amor — a uma realidade que pertence à vida e ao mundo, para extrair daí palavras que originem um livro, possui esse poder. Aqui, escrevi sobre a escrita, onde o mundo não estava presente. Há qualquer coisa de irreal quando se relata uma experiência de escrita que, no fim de contas, se não pode mostrar. Que se revela, talvez, de outro modo. Por exemplo, naquela imagem indestrutível de uma recordação que acaba de emergir mais uma vez:
É logo a seguir à guerra, em Lillebonne. Tenho, sensivelmente, quatro anos e meio. Estou a assistir, com os meus pais, pela primeira vez, a uma representação teatral. Passa-se ao ar livre, talvez no campo americano. Trazem para a cena uma caixa enorme. Fecham dentro dela, hermeticamente, uma mulher. Alguns homens começam a trespassar a caixa de um lado ao outro com espadas compridas. Aquilo dura interminavelmente. Na infância, o tempo do medo não tem fim. Por último, a mulher sai da caixa, intacta.
A. E., 8 de julho de 2002
De partida
Proponho-lhe iniciar aqui uma investigação sobre as modalidades e circunstâncias da escrita que deram origem à sua obra e lhe servem de base.
No começo destes diálogos que vamos ter acerca dos livros que escrevi e da minha prática, a minha relação com a escrita, devo falar dos perigos e limites de um exercício no qual, no entanto, me vou empenhar com uma preocupação de verdade e precisão.
Repare que não utilizei a palavra «obra». No que me diz respeito, não é uma palavra na qual pense nem que escreva, é uma palavra para os outros, como é, de resto, a palavra «escritor». São quase palavras da necrologia, pelo menos dos manuais de literatura, quando está tudo completo. São palavras fechadas. Prefiro «escrita», «escrever», «fazer livros», que evocam uma atividade em curso.
Estes perigos e limites são, pois, sensivelmente os mesmos que encontramos em qualquer discurso retrospetivo sobre nós.
Desejar esclarecer, encadear o que era obscuro, informe, no preciso momento da escrita, é condenar-me a não ter em conta os deslizes e a recuperação de pensamentos, de desejos que deram origem a um texto, a negligenciar o movimento da vida, do presente, acerca da elaboração desse texto. Quando se trata de recordar o momento da escrita, mesmo recente, a memória falha ainda mais amplamente do que em qualquer outro acontecimento da vida. No final, talvez me sinta também consternada, acabrunhada com toda a seriedade, a gravidade desta iniciativa de explicitação — que é um fenómeno surgido no século xx, anteriormente ninguém se explicava deste modo acerca do seu trabalho. (Não, já me esquecia, no século XIX, Flaubert, origem de todos os males!) Talvez eu tivesse, então, simplesmente, o desejo de me lembrar de uma rapariguinha a ler o folhetim da revista L’Echo de la mode ou a escrever cartas a uma amiga inventada, nos degraus da escada, na cozinha apertada entre o café e a mercearia, o desejo de dizer: deve ter começado ali. Eis-me já dentro do mito, o da predestinação da escrita…
Compreendo as suas reservas no que diz respeito a uma iniciativa como a da entrevista, em que a implicação é obviamente diferente da que surge na escrita; mas parece-me que este género realmente muito recente, ainda que existam exemplos mais antigos, como as conversações com Goethe, ou com Júlio Verne, pode ser concebido não apenas como uma explicitação a posteriori da trajetória que seguimos na escrita, mas, à semelhança do diário ou da correspondência, como uma investigação paralela à da escrita «literária» propriamente dita, investigação certamente arriscada, mas que permite dizer, face a uma solicitação, no âmbito de uma forma dialógica, o que a obra não diz ou exprime de modo diverso. Tentarei, portanto, levá-la progressivamente a explorar uma espécie de outro lugar, se com isso estiver de acordo.
Aquilo de que duvido, falando da minha maneira de escrever, dos meus livros, como lhe dizia, é da racionalização a posteriori, do caminho que vemos desenhar-se depois de ele ter sido percorrido. Mas se a entrevista me pode conduzir, como sugere, a outro lugar, porque não?, estou de partida.
* * *
Vejamos uma primeira incursão nesse «outro lugar», primeiramente no sentido mais literal. As suas numerosas viagens são muitas vezes mencionadas, mas quase nunca descritas nos seus livros. Deixam, pois, muito poucos traços na escrita, a não ser a um nível informativo, contextual. Que representa para si a viagem relativamente à escrita? Considera-se escritora apenas quando está na sua mesa de trabalho ou no computador?
Nos últimos quinze anos, por causa dos meus livros, tenho viajado bastante na Europa, na Ásia, no Médio Oriente, na América do Norte, realizando assim o meu sonho de infância, partir, ver o mundo. Com exceção de uma viagem a Lourdes, não saí da Normandia antes dos dezanove anos e só aos vinte e um fui a Paris pela primeira vez. Mas, muitas vezes, no meu quarto de hotel no estrangeiro, me espantava por estar ali e já não sentir alegria. Tinha a sensação de ter entrado num filme como figurante.
Existe o filme japonês, o coreano, o egípcio… Em viagem, não sinto as coisas com intensidade. Em viagens desse tipo, oficiais em suma, cujas condições são geralmente artificiais, os percursos marcados, não mergulho verdadeiramente no país. Era com a aventura da viagem que eu sonhava quando criança. Nestas, isso não existe. E, de resto, para viver as coisas verdadeiramente, preciso de as reviver. Veneza, onde fui uma dúzia de vezes, suscita páginas e páginas — no meu diário íntimo, apenas. É sempre nele que anoto as minhas impressões, os encontros, as coisas vistas. Mas nunca continuo, em viagem, um livro em curso. Não tenho tempo e não conseguiria. Todas as atividades que têm origem nas minhas viagens — encontros com estudantes, escritores, jornalistas — fazem-me viver fora de mim mesma, no seio da dispersão. Não é desagradável, são férias maravilhosas, no verdadeiro sentido etimológico, um período de vazio. Não aguento isso durante muito tempo, não mais de uma semana.
Principalmente se tiver um livro em curso. Neste caso, a prisão é o lá fora, e a liberdade o escritório onde me fecho. Nunca penso em mim como escritora, apenas como alguém que escreve, que deve escrever. Neste sentido, não há razão para fazer disso um caso.
__
A sua newsletter de sempre, agora ainda mais útilCom o lançamento da nova marca de informação 24notícias, estamos a mudar a plataforma de newsletters, aproveitando para reforçar a informação que os leitores mais valorizam: a que lhes é útil, ajuda a tomar decisões e a entender o mundo.
Assine a nova newsletter do 24notícias aqui.
Comentários